Meio dia cerrado, de tarde o sol alastrou-se trazendo alma às viagens e andanças com letras pelas aldeias da minha terra, o destino Chaminé e Água Travessa. Subtilmente molhado o dia todo derivado da orvalhada, das baixas temperaturas, o asfalto ultrapassa-se com precaução, ainda assim a tarde está amena na primeira aldeia a ser visitada pela biblioteca ambulante. Na aldeia de Água Travessa, despontam leitores repondo histórias, retirando outras, até outro dia voltarem outra vez. Quem também chega é o frio, a impressão de uma força aproximando-se devagar, ao atingir-me os membros inferiores ganha avanço rapidamente, sentado no interior da biblioteca, não tenho maneira de me opôr, como se agulhas de gelo se espetassem pelo meu corpo, finalmente o centro nervoso é absorvido por este movimento silencioso. Só não atinge as histórias, as letras, as palavras, as frases, não se deixam conquistar, muito menos extinguir, desde as primeiras caligrafias, independentemente onde se tenham registado. Estão gravadas nas memórias, nos livros, na oralidade, tendo a biblioteca o dever de as preservar e difundir.
De portas fechadas a biblioteca ambulante na aldeia das Fontes espera que aconteça alguma coisa, que chegue alguém, uma história que se esgueire, que seja exposta numa qualquer casa da aldeia, provoque alterações, faça reflectir, imaginar, sonhar. Uma história que construa a existência de quem a leia.
O inverno desabou nas viagens e andanças com letras pelas aldeias da minha terra, desde o princípio do itinerário. Neste momento a biblioteca ambulante na aldeia do Souto, está debaixo de forte temporal, uma névoa aproveita-se da povoação para se alisar. A rede de comunicações tem quebras frequentes, a história que conto é por isso morosa, tem altos e baixos, são percalços que acompanham diáriamente as viagens. As histórias esta tarde não deverão livrar-se das prateleiras que as apoiam, mais logo, na aldeia das Fontes os leitores regressam a suas casas de noite, se a teimosia da precipitação continuar, não creio no surgimento de qualquer um deles.
O largo está engalanado, a tapeçaria folhosa atinge todo o espaço em redor da biblioteca ambulante, no palco a biblioteca, como se fosse uma maestrina, prepara-se para reger. Ao dispôr dos tramalaguenses, poesia, romance, músicas, filmes, histórias de pensar, histórias de encantar, histórias de chorar. Todo este conjunto de letras, imagens, ilustrações, sons, celebram uma grande orquestra. Os instrumentos compostos pelos vários suportes de informação bem engrenados, suscitam nos locais a curiosidade, causando a sua aproximação, gostam do que ouvem e vêm. Terminam a permanência levando para suas casas, um livro, um disco compacto, um disco digital de vídeo, ou nem levar nada, para alguns basta uma conversa, um sorriso, um cumprimento com gestos ou palavras.
O adro da igreja na aldeia do Crucifixo fervilhava, jogar à bola, jogar ao berlinde, são resultados de não haver escola e a tarde estar desimpedida de qualquer elemento natural perturbador das brincadeiras. A biblioteca ambulante também não foi esquecida, ainda a respiração retomava o ritmo, já eles remexiam nas histórias arrumadas nas prateleiras. Arrancar, virar com as mãos apressadamente as folhas, tentar acertar ao colocar novamente nas estantes. As histórias andavam numa confusão saudável, o viajante das viagens e andanças com letras pelas aldeias da minha terra, grato pelo efeito que provocam nos pequenos leitores.
Na estrada, na direcção da aldeia do Pego, em sentido contrário os automóveis são denunciados pelas suas luzes, falta pouco para a noite se mostrar. Na aldeia o regresso a casa dos pegachos é evidenciado pela circulação de viaturas sucessivas a circular perto da biblioteca ambulante. Logo depois são os leitores a entrar na biblioteca, cheios de curiosidade por histórias novas.