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Histórias à Beira Rio, viagens e andanças com letras pelas aldeias da minha terra

"Afinal, a memória não é um acto de vontade. É uma coisa que acontece à revelia de nós próprios." Paul Auster

Histórias à Beira Rio, viagens e andanças com letras pelas aldeias da minha terra

"Afinal, a memória não é um acto de vontade. É uma coisa que acontece à revelia de nós próprios." Paul Auster

Desejo de aprender mais ainda

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Desafiando o calor, a biblioteca ambulante ruma na direcção das aldeias da Chaminé e Água Travessa, nas viagens e andanças com letras pelas aldeias da minha terra. Atravessando a ponte que permite a transposição sobre o rio, olhando cá de cima, as suas águas voltam a subir, os dedos das mãos dos homens que o amansaram empurraram o botão, transmitindo á barreira que o detém que se feche. O contrário também foi efectuado, e num abrir e fechar de olhos as águas quase se sumiram por completo. A subida do nível das águas é penosa, a agonia daquela que foi a mais longa via fluvial a percorrer o país é visível, a quem por aqui passa. Quando a normalidade artificialmente estabelecida das águas estiver concluída, a montante forma-se um espelho de água, alargando-se o mesmo até ao obstáculo que trava as águas. Sobrepõe-se a imagem de um rio na sua melhor vitalidade, afogando-se o momento menos bom do rio. Afogam-se os gritos de revolta,  os lamentos a insatisfação dos peixes, por melhores condições aquáticas, mais liberdade para nadar, águas livres de poluição e mais transparentes,  evitando as desigualdades e privilégios entre os cardumes nas condições de vida e ao desenvolvimento das suas espécies. A juzante, depois da barragem o rio emagreçe, até perder de vista. A leve aragem foi uma surpresa, sacudiu o ar bafiento instalado, a terra amarela reflecte o brillho do sol, ferindo  a vista. Volto novamente á estrada, em Água Travessa as histórias são  esperadas por quem tem por elas uma companhia e desejo de aprender mais ainda.

Dia da Espiga

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Outra tarde de calor,  mágoa é palavra para esquecer nos próximos meses nas viagens e andanças com letras pelas aldeias da minha terra, perante os dias tórridos que nunca mais acabam. O corpo habitua-se, só no início se demora a entranhar esta desordem climatérica. A biblioteca ambulante nesta Quinta Feira de Ascensão, por agora demora-se na aldeia do Souto, popularmente esta quinta feira é denominada por dia da Espiga. O costume de ir ao campo colher espiga de vários cereais, flores silvestres e um ramo de oliveira, atados por uma palha, formando um pequeno ramo, seguindo a tradição de colocar atrás da porta o ano todo até ser substituído. Por aqui, talvez fossem ao campo de manhã, normalmente nos dias de hoje são as escolas com os seus alunos que organizam estas romarias, lembrei-me agora, que nesta aldeia a escola cessou a função de educar, as poucas crianças que ainda residem na aldeia, frequentam a escola noutra aldeia aqui perto. As histórias prosseguem, penetrando na freguesia das Fontes, no lugar de Sentieiras do Souto, tendo o rio Zêzere como apaguizador do tormento irradiado pelo sol. Já na aldeia das Fontes, além da biblioteca ambulante com as  histórias, outro veículo abastece o café, bebida levemente alcoólica, cerveja, impulsionadora quando bebida em demasia de histórias. Histórias estas contadas e recontadas cada vez que tropeçam nas memórias dos intervenientes. Histórias alegres e tristes semelhantes ás da biblioteca, que dão vontade de rir e chorar.

Sem saberem bem o que procuram

 

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O rio vazou, sem encalhar a biblioteca ambulante progride nos meandros asfaltados do curso da estrada que a conduz nas viagens e andanças com letras pelas aldeias da minha terra, à aldeia do Crucifixo e ao Tramagal. Até o rio já amansaram, os patos Mandarins que se espraiavam de manhã bem cedo nas margens, lavando a penungem, aproveitando os primeiros raios solares para se aquecerem, não se avistam. Os peixes acompanharam a descida abrupta das águas, evitando assim ficarem atolados no lodo do leito do rio. Ficou o cheiro nauseabundo do apodrecimento das algas e de restos poluentes ali depositados. Não querem ouvir o grito de revolta, da natureza, de quem assiste calado, impotente, ao mesmo tempo esperançoso no regresso de águas libertas de toxidade, transparentes, consentindo o retorno dos peixes nadando, dos patos mergulhando, de homens flutuando, movimentando os seus membros espontaneamente. Com estes pensamentos decalcados, volto ao calor da tarde, enquanto a biblioteca ambulante estaciona. Na sombra, na suave corrente de ar desenvergonhada que passa, a pequenada vira as páginas das histórias, alguns sem saberem bem o que procuram, caracteres desconhecidos, ilustrações representado figuras conhecidas, tudo isto ainda baralha um pouco, mas é o princípio, para eles e para a biblioteca ambulante.

Jardim das letras

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São os olhares perdidos, estampados nos rostos de homens sentados na esplanada do café do largo, que recebem a biblioteca ambulante na aldeia da Concavada. O calor desta tarde nas viagens e andanças com letras pelas aldeias da minha terra, deixa o viajante sem vontade de escrever, cada movimento com a mão segurando a caneta, elaborando o rascunho, o esforço do cérebro preguiçoso na procura das palavras certas, na transmissão da ordem de continuar a deslizar o aparo no que resta da folha em branco vai para além do normal. Os 40 graus deitam abaixo alguma motivação. Mas as histórias protegidas nas suas brochuras coloridas, como flores num jardim onde o fremir das asas das abelhas  pousando nas pétalas se faz ouvir, sugando o melhor que a flor dá, estimula a continuar, a cheirar o papel onde estão impressas as mensagens  de quem escreve, a ver os rostos de espanto dos mais pequenos virados para as estantes animadas, a curiosidade dos mais velhos, o saudosismo de quem já frequentou a outra. Assim espero que aconteça no meu jardim das letras, que os leitores venham sorver as letras, as palavras, as histórias inteiras.

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