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Histórias à Beira Rio, viagens e andanças com letras pelas aldeias da minha terra

"Afinal, a memória não é um acto de vontade. É uma coisa que acontece à revelia de nós próprios." Paul Auster

Histórias à Beira Rio, viagens e andanças com letras pelas aldeias da minha terra

"Afinal, a memória não é um acto de vontade. É uma coisa que acontece à revelia de nós próprios." Paul Auster

30 Ago, 2019

A terra está viva

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Após a penumbra na ponte das Areias a biblioteca ambulante entra no vale, estendido á sua frente, ladeando a estrada o milharal amadurecido aponta ao céu. Quem ande no seu encalce, num instante desiste, pouco depois volta a acreditar, a sua ocultação motivada pela dimensão vertical do cereal, não é mais que um engano. Prudentemente desliza pelo asfaslto, no interior o viajante das viagens e andanças, atento ao que acontece ao longo da depressão natural, progredindo até á aldeia de Bemposta onde se divide, terminando nas aldeias do Vale das Mós e Chaminé. A biblioteca ambulante com as histórias nas viagens e andanças com letras pelas aldeias da minha terra, conclui o itinerário na aldeia do Vale de Horta. A terra está viva, tem brilho, as plantas vaidosas cheias de frutos coloridos, os galhos vergados dos marmeleiros roçam na terra poeirenta, tem maquinaria agrícola, tem pessoas que a amanham, tem gado, tem histórias todos os dias atraíndo aqueles que a pisam.

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O Gregório é o único leitor na aldeia de Vale de Açor, desde que as viagens e andanças com letras pelas aldeias da minha terra por aqui atravessam. Na permanência da biblioteca ambulante sempre reclinada na paragem dos transportes públicos, é o único que leva e devolve histórias. Ainda assim as histórias superam os transportes públicos, a estrutura que abriga os aldeões que pretendem partir, nunca teve presenças no período de aproximação às histórias. Leitor dedicado, também ele tem histórias, quando incorporou um dos muitos batalhões que lutaram nas antigas colónias. No café do qual é proprietário, presas e emolduradas algumas fotos são testemunhas dessas memórias que nunca esquece, que prosseguirão até ao final da vida. A manhã segue o seu curso, no interior da biblioteca ambulante o ar é agradável, aptece prolongar a estadia na companhia das histórias. O vento quis ler, as páginas do jornal Público abriram-se, um artigo no qual me firmei, dedicado ao encadernador Ilídio, homem que salva histórias, antigas e contemporâneas, danificadas, que precisam de melhorar o seu aspecto, ( cirugia estética ), querem voltar a seduzir outra vez. O manuseamento ao longo dos tempos, esquecidas nas prateleiras de bibliotecas, em mãos delicadas, rudes, grandes, pequenas. leituras que causam aprendizagem, conhecimento. Realidades e ficções, comovem e alegram todos os que lêem, desgastaram-se, só a intervenção de um especialista as pode salvar. Rodeado de guilhotinas e prensas este homem através da sua arte mantém a esperança na continuidade da leitura destas histórias. Os cartões as cartolinas, tesouras, agulhas, facas, alicates, réguas, eaquadros, lápis, pincéis, colas, tecidos, peles, cordas e fios, são os objectos participantes na recuperação das histórias. O Ilídio faz o resto com muita perícia e paciência, muitos tesouros da literatura cruzam a sua vista, histórias de relevância sentimental, histórica, de valor monetário, transpõem séculos, são histórias viajantes.

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Na aldeia da Ribeira do Fernando a mansidão da manhã contangia, tonalidades do outono  inauguram este novo dia de viagens e andanças com letras pelas aldeias da minha terra, sítio outrora esmiuçado por povos conquistadores de passagem, tendo mesmo alguns parado para sempre nos actuais campos aqui perto. Na proximidade da ribeira que baptizou a povoação surgiram á luz do dia objectos domésticos acusando a presença dessas populações. Tudo o resto mantem-se igual, a vida corre ao seu ritmo, as pessoas no Café Desvio são as mesmas, sentadas olham para a televisão esforçando o pescoço, os mexericos são assíduos ( estudos recentes confirmam que pode estimular a coesão social ),  encostados ao balcão trabalhadores reforçam os estômagos, serenando os mesmos bebendo vinho e cerveja. O sol ganha altura, a temperatura detestável, ainda assim um leitor entrou na biblioteca ambulante, solicitou orientação na selecção de uma história, prontamente o viajante das viagens e andanças acedeu. A eleita foi  Estuário escrita por Lídia Jorge, confio não defraudar o leitor, é sempre um risco, é uma história que se adapta ao perfil, nascido em terras do Demo as mesmas do autor do romance, também ele calcorreou muito chão até estabilizar na aldeia. O padeiro toca a buzina, como por encanto surgem as mulheres rodeando a carrinha, ali se demoram, no falatório com vozes estrídulas, esquecendo a preparação do almoço. 

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O azul matinal amansou a cor pardacenta das últimas manhãs, as viagens e andanças com letras pelas aldeias da minha terra rumam para a aldeia da Carreira do Mato, altiva perante o Rio Zêzere mais folgado nesta região. A vista seduz quem por aqui viaja, convida a permanecer, a degustar os sabores do rio e da terra, as histórias ficam suspensas nas mãos dos leitores que as aproveitam no limite das margens, nas sombras das árvores que molham as raízes no curso de água. A pesca e outras modalidades aquáticas são soberanas nestas águas tranquilas de temperatura agradável. A biblioteca ambulante deixa um rasto de histórias nestas estradas de recorte fincado nas impulsivas vertentes. Lá em baixo os barcos flutuam apressados desenhando nas águas círculos que abrandam rapidamente para criar ondas direcionadas às margens nas quais se despedaçam. Na aldeia os enfeites da festa mantêm-se apelativos aos forasteiros, como as histórias protegidas nas suas brochuras coloridas namorando os leitores. É óbvio que quem vê caras não vê corações, por isso é que a biblioteca ambulante abre as suas portas, libertando o seu espaço a quem queira explorar as histórias durante o período de permanência nas suas aldeias. Podem não alcançar imediatamente o pretendido, mas com paciência encontrarão nas histórias o caminho para continuarem a sonhar.

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O dia rompeu com a manhã ameaçada por nuvens negras no horizonte, proclamadora de trovoada, não será impeditiva de outras viagens e andanças com letras pelas aldeias da minha terra. Assim lá fomos, o viajante das viagens e andanças, a biblioteca ambulante, as histórias, na aldeia da Pucariça, não se ouve o troar, o de arrastar algo muito pesado. Rasgos de cor azul vislumbram-se do local onde as histórias se demoram por leitores, aqui quase nunca surgem, andam escondidos, não querem, geograficamente a aldeia alonga-se de um lado e outro pela estrada adiante que a atravessa, as habitações intervalam com  hortas,  terrenos sem descrição. A biblioteca ambulante junto do templo e no ponto médio da aldeia é um farol que todos não querem ver, mas que de maneira inesperada, um dia virão ao encontro da claridade das histórias na tentativa de um amparo. As histórias são para isso mesmo, conforto, orientação, contentamento nas suas leituras.

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Traga esta, traga aquela, foram mais ou menos estas as palavras com que os utentes, recentes leitores da biblioteca ambulante, do Centro de Dia de Alvega, se desprenderam do viajante, das viagens e andanças com letras pelas aldeias da minha terra, insinuando histórias novas. Foi notória a visita destes leitores, enfrentando a temperatura nos 40º, apoiados em muletas e andarilho, entusiasmados com as histórias na sua terra. O largo do coreto está ocupado por barracas de comes e bebes, mesas espalhadas o palco onde os artistas irão esticar os gorgomilos, tirando os aldeões pregados das cadeiras para dançarem ao compasso das melodias. A música e as letras bem temperadas já se fazem ouvir no conjunto de aparelhos sonoros espalhados em redor do recinto. Também as famosas ilhas encarnadas, posicionadas estratégicamente, estão atestadas do precioso líquido dourado, criado na Vialonga, chega a todo o interior do país nas suas romarias, proporcionando felicidade, ousadia, soltando línguas aprisionadas nos que são  inseguros. Mas pode trazer despertares dolorosos a quem se esqueça que o mundo não acaba no dia seguinte. Também a visita de um leitor da outra biblioteca ambulante, dirigida pelo viajante José Dinis,  patrocionada pela Fundação Gulbenkian,  percorreu anteriormente estes caminhos com outras histórias, entrou surpreso com a presença desta biblioteca. Ainda resistem? Foram as primeiras palavras! Claro estas máquinas infernais ( palavras de Nuno Marçal ) estão de pedra e cal, e mais se espalharão brevemente pelo território nacional. Foi estimulante a presença deste leitor de visita á sua terra, cresceu a ler com a outra, e ficou tomado de forte amor por esta.

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