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Histórias à Beira Rio, viagens e andanças com letras pelas aldeias da minha terra

"Afinal, a memória não é um acto de vontade. É uma coisa que acontece à revelia de nós próprios." Paul Auster

Histórias à Beira Rio, viagens e andanças com letras pelas aldeias da minha terra

"Afinal, a memória não é um acto de vontade. É uma coisa que acontece à revelia de nós próprios." Paul Auster

23 Set, 2019

A agasalhar os nus

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Com o verão a ficar despido, as viagens e andanças com letras pelas aldeias da minha terra, continuam vestidas de histórias, de roupas coloridas, de roupas quentes e frescas, umas inteiriças, outras curtas, largas e apertadas, consoante as queiram escolher. Indumentárias que aquecem corpos desnudos de literacia, na totalidade das aldeias das viagens e andanças, a biblioteca ambulante desenvolve um trabalho de costureira e alfaiate ao mesmo tempo, tira medidas, oferece o que veste melhor, mais curta naquela, aquele   mais folgado. Assim vai consolidando os  guarda-roupas, os guarda-fatos,  cada vez mais clientela, até mesmo aqueles que se prestam a deixar copiar não deixam de andar na passarela, levam as histórias a quem ainda não sabe. Hoje na aldeia da Bairrada, amanhã na aldeia de Sentieiras, e por aí adiante a costurar histórias, a agasalhar os nus!

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A chuva voltou acanhadamente ás viagens e andanças com letras pelas aldeias da minha terra, assim estão os leitores da aldeia de Martinchel, retraídos com a leitura. Na biblioteca ambulante, o viajante das viagens e andanças observa raras as pessoas, uma duas, usaram o serviço do multibanco defronte da biblioteca ambulante no outro lado da estrada. Aqui o dinheiro é o grande rival das histórias ( agora mesmo, uma homem levanta dinheiro no ATM ), a biblioteca ambulante além das histórias devia permitir outros serviços concorrentes. Dar dinheiro não é possível,  consentir acessibilidades pode ser realizável, pagar a água, pagar a luz, adquirir bens conectado com a internet, contar, recontar histórias. Pode rir, pode chorar, até impressionar, as histórias estão mesmo á mão de quem passa sem parar, atentos á estrada, mãos no volante, uns devagar, outros apressados, cigarros presos nos lábios, pensamentos distantes. Há quem se esforça e roda a cabeça no sentido da biblioteca ambulante, um olhar rápido, nostálgico, de saudade de uma infância que já foi, de surpresa. É sempre assim nos dias em que as histórias visitam a aldeia.

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Opostamente a tarde nas viagens e andanças com letras pelas aldeias da minha terra, resiste ao avanço do outono na parte inicial do dia. Séculos atrás foi um casal rodeado de charnecas, por aqui alicerçaram, está transformado numa aldeia, desunida topograficamente por um espaço intermédio lotado de várias hortas bem delineadas. No Brunheirinho a escassez vai para além dos leitores, voltam ao anoitecer, dão uma espreitadela na horta, nos animais de capoeira, recolher o gado ovino e caprino, quando a necessidade urge ainda usam a enxada para revolver a terra, utilizar a extinguível água do poço para animar as hortaliças, não têm tempo para mais nada. As histórias são subestimadas inconscientemente, não sabem ler, muito trabalho agrícola, a renitência, até a vergonha. Adolescentes quase nenhuns, tem dias em que se aproximam, têm temporadas em que se afastam, a biblioteca ambulante permanece teimosamente unida junto da outra fonte, cuja água refresca quem tem sede. A sensação causada no viajante das viagens e andanças pela falta de leitores é igual á sede pela privação de água, a diferença está no que corre na bica e na biblioteca ambulante, as histórias nunca se acabam!

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A corrente de ar torna a permanência da biblioteca ambulante na aldeia das Bicas cheia de boas sensações, a Paulina foi a primeira, a leitura gastronómica é a sua preferida, o viajante das viagens e andanças aprende sempre algo sobre o assunto, no qual ela não tem papas na língua, os diabetes obrigam-na a cozinhar preventivamente em relação a alguns condimentos, mas não a afastam das panelas. O Nelson com a tez marcada pelas borbulhas entregou obras da 7ª arte, foi de mãos livres, o início das aulas restringe a vinda de pequenos leitores ao encontro das histórias da parte de alguns pais. A minha incompreenção pela atitude desastrosa do impedimento à leitura no período escolar continua a não ter uma explicação razoável, cresci a ler histórias, ainda não larguei a dependência. As viagens e andanças com letras pelas aldeias da minha terra vão terminar na aldeia de São Miguel do rio Torto, as sombras motivadas pela direcção declinante do sol conquistam o largo, os ramos das jovens árvores são sacudidos pelo vento que acabou de se estabelecer na aldeia. Apesar de colocar à mostra as histórias, a biblioteca ambulante não é muito assediada por quem queira ler, por estar próxima da cidade, esta nem livrarias possui no seu centro nevrálgico, não foram acostumados. Os mais velhos, os que têm só a instrução primária, são os mais intrometidos nestas coisas de unir letras, das histórias, do querer voltar a ler outra vez, aproveitam o momento.

 

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Não é compreensível a tarde de hoje nas viagens e andanças com letras pelas aldeias da minha terra, o céu apresenta-se inquietante a norte, a sul resplandece. No largo o café Areias tem as portas abertas, da penumbra do seu interior não avisto fregueses, no espaço defronte os poucos automóveis circulam sem parar. Fogem do aborrecimento de ter que permanecer onde não há nada, trabalho, comércio, escola, agitação social. Raros, são os que não se afastam da biblioteca ambulante, ainda vêm, escolhem histórias, usam o viajante das viagens e andanças a recomendar contos, romances, poesias. Que lhes relate histórias da cidade, cada vez mais se demoram a voltar, não têm vontade, a vista fatigada pela longa existência embaraça a leitura. Andam curvados, as poucas horas de distração são nas hortas, dissipam os pensamentos apavorantes por entre os legumes, árvores de fruto, muitos deles abalam de vez quando a lâmina afiada da enxada se enterra totalmente na terra seca, uma, duas, as que forem precisas para dar forma a um canteiro. Mais tarde, noutro dia qualquer, voltam, aliviados observam a obra, as pequenas couves hirtas conseguiram alojar os frágeis caules, na consoada serão deleites dos filhos, noras e netos.

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Sobre o vale pairam nuvens grosseiras, não muito altas, avançam lentamente até as perder de vista no horizonte. Terra fendida, leitos onde correm seixos em vez de água, assim está o panorama nas viagens e andanças com letras pelas aldeias da minha terra. Subitamente na aldeia do Vale Zebrinho, no lugar onde a biblioteca ambulante permanece, uma grande quantidade de pó cresce na direcção das histórias, um rebanho desgarrado vindo da charneca atravessa a estrada, na sua peugada uma mulher de passo acelarado, agita um pau na mão, grita impropérios aos animais. Algumas ovelhas experimentam a ira da mulher quando o pau pousou com força no lombo, mais atrasado um rafeiro alentejano com a língua pendurada, de expressão enfadonha, arrasta as patas no mesmo rumo. O calor libertou a aldeia das pessoas, enfraquecida populacionalmente, os que restam estão protegidos sob as telhas do casario. A copa do grande plátano iniciou a troca da cor verde para as tons amarelo e castanho, a exemplo das outras  ao longo do vale, contrariamente ao plátano, ninguém substituiu as histórias na aldeia. A biblioteca ambulante confrontada com o insucesso, segue no destino da aldeia de Arreciadas.