Chuva e muito frio mimam a manhã nas viagens e andanças com letras pelas aldeias da minha terra. Não vi a temperatura pela manhã, não estava frio, agora não posso sair da biblioteca ambulante, na aldeia da Ribeira do Fernando o vento, a precipitação, os 9º centígrados, uma união que não permite veleidade. O José teve o arrojo de se aproximar com a história, entrou num pulo, estava por acabar a leitura, não tinha tido tempo de a terminar. Perscrutando o seu olhar percebi a sua angústia, disseram-lhe pelo telefone, que havia outro leitor que a ambicionava. Não pode ser, respondi! Terá de aguardar que o José a acabe, disse! Com a renovação da história efectuada, o José lá foi à sua vida, agora venham as oportunidades para encerrar a história. Quem está longe tem dificuldade de compreender e conhecer o modo de vida rural, já o escrevi aqui, não são as pessoas que comandam os seus destinos é a terra. Em primeiro lugar a lavoura, a subsistência, outros poderão alcançar rendimento, mas mesmo assim não pode haver interrupções durante o período de semear, plantar e colher e manter. Muito bons são eles, não descuidam de obter conhecimento, de saber mais com as histórias, para isso temos de ser condescendentes.
Ainda a numeração no calendário não tinha transposto o décimo segundo dia do mês já a água não parava de cair, sem grande estrondo, fina e gelada. Continuou apesar das pequenas pausas as nuvens nunca deixaram de lançar água. Nem assim a biblioteca ambulante desiste das viagens e andanças com letras pelas aldeias da minha terra, dos leitores, dos encontros e desencontros. Na aldeia da Carreira do Mato, uma surpresa agradável, o som da gaita de beiços do amola tesouras entrou nos ouvidos do viajante das viagens e andanças, a melodia cada vez mais próxima trazia a companhia de uma bicicleta, equipada com uma pedra de afiar, tesouras, facas, de tudo o que é instrumento cortante, empurrada por um homem ainda novo. Muitas vezes ainda jovem, um homem assim percorria a rua onde cresci, uma oportunidade para a minha mãe e todas as outras mães que não tinham ofícios, afinassem as ferramentas que cortavam as sobras de tecido, com que preparavam as refeições. Que saudades! Por pouco convocava o homem da gaita de beiços, para viajar na biblioteca ambulante a anunciar o regresso das histórias às aldeias, o som maravilhoso enviado pelo aparelho suscita a curiosidade. Não são uma nem duas, as cabeças que surgem de portas ou janelas, espreitam as histórias, traídas pelo som daquele que aguça.
O ressurgimento do sol nas viagens e andanças com letras pelas aldeia da minha terra, torna os campos mais brilhantes, os traços de luz ao atingirem as gotas de orvalho nas ervas que agora capturam baldios e hortas, alteram a visão ao redor do viajante das viagens e andanças. Tapetes de cristais cobrem as paisagens que ladeiam a estrada que leva a biblioteca ambulante à aldeia da Pucariça. A azeitona já foi colhida, são muitos os indícios, ramos espalhados, hastes decepadas, estéticas diferentes, mais do que isso, ordenar o crescimento, fortalecer as árvores. É isto que as histórias pretendem, cortar a inacessibilidade à informação com conceitos diferentes, transmitir confiança, solidificar a presença da biblioteca ambulante nas aldeias cativando mais leitores. As primeiras nuvens da manhã despontam tapando o sol, logo uma aragem se levanta, como se fosse lâminas a rasgar a carne. Provavelmente anunciam o regresso da chuva!
Não me recordo onde estive, onde estou, sempre fui nómada, o tempo de paragem sempre foi curto. Muitos lugares, uma multidão espalhada como grãos de areia, quase nada. Continuo bambaleante, não estou ébrio, sinto-me só esquisito, espoliado, estou nu. Despido das histórias que sempre me cobriram, que me ensinaram, que me deram asas à imaginação, que me desenvolveram, que me deram um ofício. Que vaidoso eu era dando as histórias, tantas vezes nos mesmos lugares, às mesmas pessoas que nunca se cansavam de se vestirem com histórias novas, do nada surgiam outros, ouviam que alguém tirava a nudez aos iletrados, que nunca ou quase nunca tinham vestido algo tão bom, que os protegesse da apatia, da indiferença. Estremeço, abro os olhos envolvendo o que me rodeia, está tudo na mesma! Não, estou com mais força, com mais vontade para nunca ficar descoberto nos sonhos.
Foi na renovada estrada de acesso à aldeia do Tubaral, que a biblioteca ambulante com as histórias estacionou no Largo S. João de Brito, nas viagens e andanças com letras pelas aldeias da minha terra. A carrinha da padeira foi a primeira a parar no lugar mais movimentado da aldeia, onde se recebe e dá boas e más notícias, onde os enredos, confusões ou tricas, como lhes queiram chamar, ganham dimensão na transmissão de boca em boca. No café do Lola, uma velha comenta que a padeira não tem fregueses. Andam na azeitona, diz o viajante das viagens e andanças, a conversa pouco mais se desenvolveu, de volta ao largo, a padeira entrega um saco com trés ou quatro papo-secos, a uma mulher. Afinal a venda do pão garante a permanência da padeira, antes de prosseguir para outra viagem no intuito de esvaziar a carrinha, teve tempo de visitar a biblioteca ambulante, com olhar atento percorre as estantes. As histórias dão nas vistas, querem ser seleccionadas, não foram todas, mas uma teve sorte de ser eleita. Foi assim que vi a padeira caminhar no sentido da sua carrinha, numa das mãos segura o seu pão, que a alimentará nos momentos livres dos próximos dias.