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Histórias à Beira Rio, viagens e andanças com letras pelas aldeias da minha terra

"Afinal, a memória não é um acto de vontade. É uma coisa que acontece à revelia de nós próprios." Paul Auster

Histórias à Beira Rio, viagens e andanças com letras pelas aldeias da minha terra

"Afinal, a memória não é um acto de vontade. É uma coisa que acontece à revelia de nós próprios." Paul Auster

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A carrinha de caixa aberta, avança lentamente no asfalto, adiante da biblioteca ambulante nas viagens e andanças com letras pelas aldeias da minha terra, dá sinais que vai desfalecer, a abarrotar de sacas cheias de azeitona, progride na mesma direcção das histórias, a aldeia da Chaminé, onde nesta altura o seu lagar não tem descanso. A sua fama de produzir bom azeite, suplanta os limites da freguesia onde está instalado, de quase todo o conselho chegam azeitonas para serem esmagadas e despegarem o seu precioso líquido. As histórias ainda não se desagarraram das prateleiras, é difícil apanhar azeitonas e ler ao mesmo tempo, quando esta actividade rural for interrompida por não haver mais azeitonas nas oliveiras,  todo o azeite depositado nas vasilhas, e a azeitona preparada e curtida para se poder comer nos próximos meses, recomeçam as visitas à biblioteca ambulante. A fila aproxima-se do início da aldeia, tractores, carrinhas, carros, camionetas, aguardam pela sua vez, entregam um dos estados da matéria, o sólido, levam outro estado da matéria, o líquido, afinal tudo não passa de um acto da física.

A manhã a tentar ultrapassar-me, eu a querer escrever o que tinha prometido ontem a mim mesmo, antes que a memória me venha a atraiçoar. Relacionado com um pequeno episódio que escutei, enquanto a biblioteca ambulante se demorava nas viagens e andanças com letras pelas aldeias da minha terra, na aldeia das Fontes. Conversavam do Carriço, pelo que entendi foi um aldeão que residia na freguesia, tendo como ganha pão, pequenos trabalhos quando solicitado para isso, além de possuir algum gado ovino e caprino, que lhe estabelizava as contas, vendendo as suas peles e a carne. Um copo oferecido era sempre bem vindo, personagem popular do lugar, foi um detalhe da história que me concentrou mais, o seu traje, habitualmente incluia um casaco que usava sempre pelos ombros e não vestido. Agora vem a parte hilariante, as duas mangas do casaco, sempre pendentes, com a singularidade das suas extremidades estarem sempre obstruidas pela execução de um nó, estavam atadas. O motivo ainda mais me espantou, esta vontade auxiliava o Carriço no transporte dos mantimentos, durante o dia quando necessitava de se alimentar, recorrria às mangas do casaco, retirava um chouriço, um queijo, um bocado de presunto, pão. Fazia magia, mas não tirava cartas!

 

 

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Na aldeia do Souto só o ruído proveniente dos ramos das árvores impelidos com violência pelo sopro do vento se ouve. Nem de perto, nem de longe se vê alguém, quem transita pelas ruas da aldeia, como a biblioteca ambulante, devagar, com o viajente das viagens e andanças a olhar de um lado para o outro, sondando. Um caçador de leitores, perscrutando ruelas, as quinas, os recantos da povoação,  percebendo que o frio desta vez vai ganhar, ainda por cima, uma massa considerável de nuvens, mais parecem uma grande muralha intransponível, se aproxima rapidamente, tapando o sol. A escassa temperatura enviada pelo sol extinguiu-se, o ar gelou e uns pingos de chuva rompem dos montes celestes. Os onzes graus centígrados não demovem aqueles que colhem azeitona, das oliveiras assentes nos socalcos íngrimes com vistas para o rio Zêzere. A terra é que manda, as favas, as couves, alface, alho françês, cenouras, nabos, nabiças, plantadas e semeadas. No intervalo, durante o crescimento no solo e subsolo, andam ocupados com outras culturas agrícolas, libertam o azeite, a água pé, prestam atenção às nogueiras aos castanheiros. Não há tempo para as histórias, nem para eles mesmos. Na aldeia das Fontes a noite cai, na Tasquinha d' Aldeia, agrupados alguns aldeões, olham para a televisão que transmite o jogo de futebol entre o Rosenborg e o Sporting, ao mesmo tempo dão goles sôfregos nas garrafas de cerveja. As histórias podem esperar!

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Sopra um vento frio, as histórias nos seus lugares apostam na união, a roçar umas nas outras, rapinam enredos mais quentes de umas para partilhar com outras mais frias, equilibrando assim a temperatura nas estantes da biblioteca ambulante. «Histórias de verão, Contos de Inverno» do escritor David Lodge; «Contos de inverno, ou Novos contos de inverno» da escritora Karen Blixen; «Verão quente» do  Domingos Amaral; ou a mais recente história do escritor João Tordo, «A noite em que o verão acabou». São exemplos em como as histórias sobrevivem perante os infortúnios dos fenómenos atmosféricos. Na biblioteca ambulante, o viajante das viagens e andanças, face às mesmas adversidades, cobre o corpo com vestuário adequado, camisolas de lã, blusão ou casaco, tem dias em que coloca luvas, deixando de fora as pontas dos dedos, para ter liberdade para manusear as histórias, ou escrever, meias grossas para proteger os pés, de vez em quando não chega, isto no inverno. No verão, são as bermudas as favoritas, os pólos de algodão, as camisas de meia manga, mas ainda assim não se livra do líquido secretado pelas glândulas sudoríparas, apesar da água fresca ingerida ajudar.

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O sol ainda tentou, mas o enfraquecimento da temperatura sente-se nos ossos, é o frio o personagem principal do dia e das histórias de hoje, nas viagens e andanças com letras pelas aldeias da minha terra. Pelo menos o viajante das viagens e andanças foi às gavetas do vestuário de inverno escolher uma camisola que o possa agasalhar mais logo, quando rumar para as aldeias do Souto e Fontes. Situadas em relevos altaneiros, observando o rio Zêzere com orgulho, estas aldeias com população maioritariamente envelhecida resistem, para isso contam com alguma juventude, não muita, mas com idade primaveril, que impede o declínio das comunidades. As histórias a partir de hoje tornam-se em abafos, quem as lê não teme os dias curtos e as noites geladas, página a página, como se fosse pequenos galhos de árvores secas atirados para a lareira, avivar o fogo, estimular a curiosidade na continuidade da leitura das histórias.

06 Nov, 2019

Mãos

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Nuvens baixas e cinzentas atravessam o espaço terrestre das viagens e andanças com letras pelas aldeias da minha terra. A biblioteca ambulante ganha ânimo no cais das partidas e chegadas, as histórias sacodem o pó das brochuras, amaneiram as páginas, aprumam as posturas, estão desimpedidas para os leitores da aldeia do Crucifixo e vila do Tramagal. Mãos pequenas, mãos grandes, mãos rudes, mãos macias, mãos novas, mãos velhas, esperam pelas histórias. Muitas partes côncavas já têm saudades de possuir as lombadas poisadas. Também as há, que ainda um pouco à pressa, terminam a leitura de um capítulo atrasado, a história não para quieta, impulsionada de uma mão para a outra, a biblioteca ambulante aproxima-se. No Crucifixo o céu não tarda a desabar a sua cor triste é sinal de que muita água vai cair no resto da tarde. No Tramagal não tombou nada, subiram as crianças do Jardim Escola, foram as primeiras a inundar a biblioteca ambulante com  impetuosidade contagiante, não deixam o viajante das viagens e andanças indiferente. Pulam, choram, riem, das histórias nem se fala, as letras e as palavras embrulham-se de tal maneira que trocam de enredos. Instala-se o pânico, as ilustrações deixam de ver os lugares habituais, os diálogos não são os mesmos. Quando tudo estava a derrocar  a professora com a sua experiência acalmou os gaiatos, e o viajante das viagens e andanças estabeleceu a verdade nas histórias.

 

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A noite quase alcançava a biblioteca ambulante, no seu curto percurso entre as aldeias da Concavada e do Pego, ainda assim foram as histórias a permanecer à frente. As pancadas  do relógio na torre da igreja dão as seis horas, não fosse a iluminação pública, a escuridão seria assustadora, o para-brisa da biblioteca ambulante está saturado de minúsculas gotas de água, parecem ser cabeças de alfinetes, mas tudo não passa de chuva. A temperatura combalida, possivelmente a forçar as lareiras a animar os lares, e as chaminés a engasgarem-se com as primeiras fumarelas no Outono. As histórias iluminadas com a luz artificial, projectadas do tecto da biblioteca ambulante, atingem os olhares de quem passa no passeio, até os ocupantes dos automóveis afrouxam a marcha, olham atentamente para o interior,  voltando logo depois a acelarar. O João até ao momento foi o único leitor a ficar, tirou, folheou, voltou a colocar histórias, estas de cada vez que eram exploradas pelos seus olhos, entusiasmavam-se, as letras aproximavam-se pulando das páginas que avançavam vagarosamente, empurradas por dedos experientes no manuseamento das histórias. Depois de ter repetido os mesmos movimentos inúmeras vezes, saiu com as histórias selecionadas que o acompanharão no período de afastamento da biblioteca ambulante da sua aldeia.