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Histórias à Beira Rio, viagens e andanças com letras pelas aldeias da minha terra

"Afinal, a memória não é um acto de vontade. É uma coisa que acontece à revelia de nós próprios." Paul Auster

Histórias à Beira Rio, viagens e andanças com letras pelas aldeias da minha terra

"Afinal, a memória não é um acto de vontade. É uma coisa que acontece à revelia de nós próprios." Paul Auster

07.02.20

"Desafio de escrita dos pássaros #2.2", É que isso de médicos, nunca fiando


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O som da música que crescia do rádio aos meus ouvidos, trouxe-me de volta, ao fundo a obscuridade da sala ainda permitia visualizar um azul desmaiado, tingido na parede fria. Até ali chegar percorri corredores indiferentes, deitado numa maca empurrado por alguém, onde só a cabeça e ombros se destacavam aos meus olhos. Vultos trajando vestimentas inteiriças da cor da parede, trazendo ao pescoço estetoscópios, não se cansavam de andar para lá e para cá. Mais consciente, pressuponho o cochicho de vozes femininas atrás da minha cabeça, fico a perceber que comentam as notícias de uma revista onde os assuntos destacados são as vidas de outras pessoas. Não estava assim tão ruim, para estarem assim relaxadas, abro os olhos, fechando-os rapidamente de seguida. O feixe de luz intensivo proveniente de um lampadário feriu-me a vista de tal maneira que não me atrevi abri-los de novo. Mas uma coisa não determinada chamou-me a atenção, vi o meu corpo nu, reflectido no quebra-luz, ali estava exposto, se tivesse intenção de escapar, não podia fazer nada, não sentia as pernas, tinha o tronco cheio de ventosas às quais se uniam fios, no braço entrava um líquido através dum tubo de plástico. Ao meu redor de cara tapada, homens e mulheres usando uma toca na cabeça e luvas nas mãos que seguravam objectos cortantes. Não era o matadouro, mas cortavam a minha carne, sentia o bisturi a rasgar, mas não tinha dor. É que isso de médicos, nunca fiando, acabei por expressar a minha dúvida. O espanto generalizou-se à equipa, prontamente resolvido com a abertura da pequena torneira presa ao tubo de plástico. Voltei ao torpor inicial, sem deixar de os ouvir, alguns impropérios eram proferidos quando algo não corria como queriam. Novamente os meus olhos se fixaram no quebra-luz, mexiam, puxavam, tornavam a cortar mais abaixo, a carne era de um vermelho rosado, não conseguia desviar os olhos. Só quando o som semelhante ao de agrafos a espetarem-se na carne é que desisti de olhar. Aquele som metálico torturava-me um pouco, tive de o suportar umas quantas vezes ainda. No final deram-me os parabéns, a intervenção tinha corrido bem, colocaram-me na maca que me trouxe, ficaram preparados para o próximo. Eu permaneci expectante que as minhas pernas voltassem a ter vida outra vez. É que isso de médicos, nunca fiando!

07.02.20

Numa livraria perto de si


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Wook.pt - Um Terrível Verdor

Sinopse

«O pior aspeto daquela concentração de massa não era o modo como alterava o espaço, nem os invulgares efeitos que provocava no tempo: o verdadeiro horror — disse-lhe — era o facto de a singularidade ser um ponto cego, fundamentalmente incognoscível. Como a luz não era capaz de sair desse lugar, nunca conseguiríamos vê-la com os nossos olhos. Mas tão-pouco poderíamos entendê-la com a nossa mente, uma vez que, na singularidade, a lógica matemática da relatividade geral deixava de ser válida. A Física perdia todo o sentido.»

Poderá a resolução das equações de Einstein levar à contemplação de um abismo inimaginável para a mente humana?
Ou a descoberta de uma fórmula salvar a Humanidade da fome e, ao mesmo tempo, servir como uma das mais diabólicas armas de destruição do nazismo?
Poderá o sonho do absoluto conduzir ao mais terrível dos pesadelos?

Em quatro magistrais relatos, cruzando ficção e realidade, História e Ciência, esperança e terror, Benjamín Labatut compõe um verdadeiro labirinto literário através da vida de físicos, matemáticos e astrónomos, de personalidades esquivas e excêntricas, indivíduos sempre entre o génio e a loucura que, para o bem e para o mal, revolucionaram e moldaram o século XX, marcando o momento em que a Humanidade deixou, finalmente, de entender o mundo.

Elsinore, Janeiro de 2020

06.02.20

São estrelas na aldeia que as recebe


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A aldeia de Sentieiras fica localizada num declive acentuado, onde as suas casas arriscam a altura ao longo do mesmo. Aqui também há quem se atreva a ler histórias, ou melhor, existem leitores, e sempre que a biblioteca ambulante estaciona junto do Mercadinho da Fonte, trazem e levam histórias. É o ponto de encontro destas pesoas e local de paragem para quem por aqui passa, seja em trabalho, ou lazer. A biblioteca ambulante não é diferente dos outros todos, e sempre que alcança este lugar, estaciona. A noite oscilou não sei onde, mas prevejo a sua queda a qualquer momento, os candeeiros de iluminação pública não tarde nada emitem feixes de luz, promovendo a claridade e a segurança nestas pessoas. As luzes da biblioteca ambulante destacam-se, espalhando ao mesmo tempo o brilho das histórias, que são estrelas na aldeia que as recebe.

06.02.20

Não conhecem a qualidade das outras histórias


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A tarde está como o viajante das viagens e andanças, sob a acção de algum anestésico, a energia não é muita, o corpo ainda recupera da moléstia que o atacou há dias atrás. O resto do dia, não tem vontade de prosseguir na sua rotação, não tem força, aparenta estar estagnado. Mas não será assim, as viagens e andanças com letras, continuam nas voltas sucessivas em torno do crescimento da leitura  pelas aldeias da minha terra. Casais de Revelhos é a aldeia que se segue no itinerário, não fica longe, é logo ali adiante, no contorno que limita a cidade. O sol há muito que se escondeu, ou foi vencido pelas nuvens, a temperatura amena traz gente à rua, não os vejo mas ouço-os. Só não se aproximam da biblioteca ambulante, não criaram hábitos de leitura, gostam mais de criar histórias de uns e outros, passam o tempo naquilo. Não conhecem as qualidades das outras histórias, as que estão arrumadas no interior de coberturas de papel resistente, com as suas cores apelativas. Seria mais interessante voltarem a segurar as histórias, não aquelas que por dever tiveram que utilizar, para prosseguirem com a escolaridade obrigatória. Mas aquelas que causam prazer, emoções e saberes. Deixariam a vida alheia tranquila, discutiam os enredos, liam em casa, aconselhariam outros, acostumavam-se a frequentar a biblioteca ambulante.

06.02.20

Numa livraria perto de si


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Wook.pt - Monstros Fabulosos

Sinopse

Desde a infância, há personagens de livros que começam a fazer parte da vida de quem gosta de ler. Depois, e apesar de nós, os leitores, envelhecermos, e de elas, as personagens, teoricamente ficarem na mesma, vão crescendo connosco, sofrendo mutações, fazendo companhia a outras que vão surgindo e ganhando significado para lá dos livros de onde saíram, como amigos de longa data com quem se partilha experiências e emoções. O bibliófilo Alberto Manguel apresenta neste livro, com erudição e humor, mais de 30 das suas personagens preferidas, desde o Jim de Huckleberry Finn ao monstro de Frankenstein, passando pela Capuchinho Vermelho ou pelo marido da Madame Bovary. Através desta partilha, desafia cada leitor a explorar as suas relações pessoais com este tipo de «monstros» imortais e amorosos, e com o tanto que estes transportam em si da condição humana.

«Aprendi a minha experiência do mundo — amor, morte, amizade, perda, gratidão, desconcerto, angústia, medo, tudo isto e a minha própria identidade em mutação — com personagens imaginárias que conheci nas minhas leituras, muito mais do que com a minha misteriosa cara no espelho ou o meu reflexo nos olhos dos outros.» — Alberto Manguel, Prefácio.

Tinta da China, setembro de 2019

05.02.20

As histórias não ficaram defraudadas


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Prego a fundo, foi mais ou menos assim que a viagem da aldeia do Tubaral se realizou na direcção das Mouriscas. A tempo de chegar à hora planeada na Escola Profisional de Desenvolvimento Rural de Abrantes, com o intuito de captar novos leitores. As histórias não ficaram defraudadas durante a permanência no espaço da escola, houve visitas e olhares namorando os enredos, também alguma audácia foi visível, ao puxarem as histórias dos seus lugares. Houve quem nunca tivesse experimentado ler uma história, e o mais importante aconteceu, levaram histórias para decifrar o seu conteúdo, reunir as letras e os sinais gráficos. Agora no local onde sempre estacionou, ao lado da Junta de Freguesia, a biblioteca ambulante é cercada pelo fumo originário de uma queimada, não muito afastada do sítio onde está parada. Nunca estão quietos os aldeôes, há semore qualquer coisa para receber cuidados na agricultura, até a claridade permitir não dão descanso ao corpo. E as histórias tão próximas!

05.02.20

Oh! Senhor arranje-me um jornal


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A última noite não foi das melhores, o arrefecimento abrupto no final da tarde de ontem, provocou uma pequena moléstia na garganta do viajante das viagens e andanças. Mas não foi impedimento para que as viagens e andanças com letras pelas aldeias da minha terra, permaneçam na aldeia do Tubaral. O sopro do vento é mais audaz que nos últimos dias, o sol é o que nos valha, aquecendo este que escreve, e as histórias. Não sei se surgirá algum leitor, o trabalho está em primeiro lugar, o café está encerrado, na última vez que a biblioteca ambulante ficou no Largo S. João de Brito, aconteceu o mesmo. Um homem protegendo a cabeça com um chapéu aproximou-se do largo para retirar correspondência de uma das muitas caixas de correio instaladas no local, rasgou o envelope e sem perder tempo pôs-se a ler o papel. Finalmente duas mulheres com um andamento fatigado, acercaram a biblioteca ambulante. - Oh! Senhor arranje-me um jornal.  Solicitou uma delas. Dito e feito, cada uma levou o seu jornal local, distribuído gratuitamente pela concelho.

05.02.20

Numa livraria perto de si


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Wook.pt - Leão, O Africano

 

Sinopse

 

A autobiografia imaginada de uma apaixonante figura histórica: o geógrafo Hasan as-Wazzan, que ficou conhecido como Jean-Léon de Médicis, ou Leão, o Africano. Em 1518, no regrasso de uma peregrinação a Meca, o embaixador magrebino é capturado por piratas sicilianos que o oferecem de presente a Leão X, o grande papa da Renascença. A sua vida, feita de aventuras, paixões e perigos, é marcada pelos grandes acontecimentos do seu tempo: durante a Reconquista, encontrava-se em Granada, de onde teve de fugir à Inquisição, acompanhado pela família; esava no Egipto aquando da sua tomada pelo Otomanos; na África negra, durante o apogeu de Askia Mohamed Touré; e em Roma no período áureo do Renascimento e no momento do saque da cidade pelo soldados de Carlos V. Figura do Oriente e do Ocidente, homem de África e da Europa, Leão, o Africano viveu em pleno o fascinante século XVI.

Quetzal Editores, Janeiro de 2010

04.02.20

Ali estão


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Atrás de mim, melhor escrevendo, à frente da biblioteca ambulante a esplanada do café está cheia de freguesia. Digo atrás de mim e à frente da biblioteca ambulante, porque o banco do passageiro é rotativo, para o viajante das viagens e andanças ficar localizado de frente para os leitores. Dando seguimento ao que escrevia numas palavras atrás, a clientela não se cansa de dialogar, mangas arregaçadas, também eles aproveitam o abraço dos últimos raios do sol. Uma voz ou outra arrastam-se misturadas nas outras, há gargantas com necessidades diferentes, por isso, há que molhá-las com cerveja fresca. Outras fazem-ser ouvir mais alto, querem tomar a dianteira com outras opiniões, ou passar à frente com outro assunto. Ali estão, fumando sem parar,  com o olhar ausente da biblioteca ambulante e das suas histórias.

04.02.20

Não se cansa de abrir rasgos


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O sol demorou a descobrir as viagens e andanças com letras pelas aldeias da minha terra, só ao início da tarde as encontrou no sentido da aldeia da Lampreia. Os seus raios envolveram as histórias e o viajante das viagens e andanças num longo abraço, há muito tempo que não sentia este aperto tão afectuoso. O abraço estendeu-se a sul do rio Tejo, as flores amarelas e brancas salpicam as planícies, os rebanhos, as manadas, andam prazenteiros nos terrenos abastados de ervas frescas. No alto dos ninhos, as cegonhas são sentinelas deste vasto território, são poucas as palavras que escrevo para descrever o que sinto e vejo. As histórias querem abrir as suas páginas, soltar as letras, semear palavras e plantar frases, encher as terras de conhecimento. A biblioteca ambulante abre os acessos, os mais difícieis, são teimosamente abertos as vezes que forem necessárias. O arado literário não se cansa de abrir rasgos, de cravar profundamente, sementando constantemente.