Todos os dias quando acordo, a minha primeira vontade é dirigir-me à janela do quarto observar o rio. A serenidade com que me acena lá em baixo conforta-me, diariamente as manhãs têm início com uma caminhada ao rio, ele fala comigo e eu com ele. Tem alturas que quase tocamos as mãos, noutras bem nos esforçamos a distender os braços sem resultado nenhum. Muitas vezes os lamentos do rio provocam-me tristeza, houve um tempo que não trazia água nenhuma no seu leito, cheirava muito mal, temi pela sua sobrevivência. Depois os atos e atitudes, de quem lhe proporcionava mau estar modificaram-se em consequência de vozes exaltadas, que como eu também amam o rio. Aparentemente a normalidade regressou, embora em certas manhãs ele se queixa que as suas águas poderiam estar mais limpas, há dias atrás confessou-me que tem saudades dos pescadores que se abeiram dele. Dos lançamentos das linhas de pesca que atingem distâncias longas, os peixes são matreiros, muitos são desconfiados e não se iludem facilmente pela minhoca com trejeitos e movimentos sensuais que se bambaleia toda vaidosa no anzol. Disse-me que as lampreias este ano estão mais folgadas, rumores vindos da superfície, segredaram-lhe que está difícil saborear o vertebrado aquático ciclóstomo, em virtude do comércio da restauração estar encerrado. Também os patos Mandarins, exímios nadadores, não se cansam de atravessar o rio entre as duas margens, trazendo à memória as canoas deslizando rio acima e rio abaixo, impulsionadas com vigor por remadores com movimentos regulares atingindo grandes velocidades. Hoje não fui ao rio, uma das raras ausências, motivada pela chuva persistente, mas acenei-lhe, distraído e alegre pela água que cai, preenchendo mais o seu leito, lá bracejou, com um ar de interrogação, hoje não vens?