Os cães ladram, o barulho ensurdecedor do tractor lavrando a terra, logo junto da biblioteca ambulante, o galo a cantar, a energia da aldeia é protagonista nesta manhã, nas viagens e andanças com letras pelas aldeias da minha terra no Vale de Horta. Homens cuidam da terra, a enxada rasga a terra, a mangueira que se prolonga até ao ribeiro, expulsa a água que traz no seu interior. Na figueira os frutos aumentam o tamanho, o sol também tem a sua graça neste período. Será desta que a estação fica estável? Na rádio ouço que o calor vem aí, não quero que seja como na última vez, foi opressivo. Que não deixe de vir, mas ameno, acompanhado, como um refresco. Vale de Horta, 4 de maio de 2018.
Tarde abrasadora nas viagens e andanças com letras pelas aldeias da minha terra, na aldeia do Souto, estão trinta e dois graus de temperatura. O corpo torna-se trôpego no interior da biblioteca ambulante, não está preparado para esta tirania do astro rei. Debaixo dele formam-se castelos, são nuvens cinzentas , esbatem-se para o branco, tornando esta parte do dia asfixiante. Dia Internacional do Livro, quero que os livros, meus companheiros diários nas viagens, sejam manuseados e lidos, venham busca-los, para as suas histórias serem propagadas por todas as aldeias. Mesmo aqueles que não saibam ler, as ouçam das bocas de quem as lê, sejam comentadas, nos cafés, no trabalho, na rua, causem possibilidades de ultrapassagem para o isolamento e melhorias das suas aldeias.Souto, 23 de abril de 2018.
Hoje, o território que percorro nas viagens e andanças com letras pelas aldeias da minha terra, é o do norte do concelho. Palmeando as suas estradas e caminhos, vislumbro paisagens demasiadamente castanhas. Nalguns lugares a cor negra predomina, destroços de árvores de grande porte, cruzam-se derrubadas com outras de menor envergadura num solo que perdeu a seiva, a terra liberta odores acres, a vegetação carbonizada. Aos meus olhos vêm-me imagens de zonas bombardeadas que nos chegam através da televisão. Os livros que transporto, têm histórias, onde há paisagens, cheiros, pessoas, alegria, tristeza, guerras e paz! A biblioteca ambulante é personagem principal de histórias reais em dias diferentes, para pessoas genuínas, reais, com histórias de vida que não podem ser esquecidas! 20 de outubro de 2017.
A sinuosidade da estrada que me trouxe nas viagens e andanças com letras pelas aldeias da minha terra, ao Crucifixo e Tramagal, contrasta com as outras duas vias de locomoção alternativas, sendo uma delas já inadequada para o efeito, localizadas mais abaixo. A estrada férrea e a antepassada estrada fluvial. No passado século XVI, um rei que se apropriou da coroa portuguesa, visionário ao mesmo tempo, ordenou edificar no leito do rio uma obra de engenharia hidráulica, o canal de Alfanzira. Situado em território abrangido pelas viagens e andanças, permitiu na época que as embarcações alterassem a sua rota na direcção do canal a fim de evitar águas turbulentas e perigosas, após este desvio tomavam o rumo normal até aos seus destinos, sendo o principal Lisboa. A outra, ferroviária, continua a levar e trazer abrantinos dispersos, nos empregos e noutras ocupações. Também o rumo da biblioteca ambulante estacionou nesta tarde primaveril, onde o sol teima em jogar às escondidas!
Cinco anos de estrada, cinco anos de viagens e andanças com letras pelas aldeias da minha terra. A levar histórias a todos aqueles posicionados nas aldeias e lugares, onde obter, é relativamente mais difícil. Escrevo de livros e histórias, estou surpreendido com a adesão dos aldeões, seja como utilizadores do acervo da biblioteca ambulante, como visitantes curiosos, pela simpatia e humildade de todos. Muitos não sabem ler, não estão habituados, têm na oralidade o meio de comunicar as suas histórias, na sua maioria velhos, parcas reformas, a terra é a principal sustentabilidade econômica e cultural, no sentido de praticarem uma actividade ancestral, na sobrevivência do homem. Várias histórias foram escritas sobre as aldeias onde as viagens me levam , tantas vezes retorno aos mesmos lugares, tantas vezes volto a escrever das mesmas aldeias, isto traz-me alegria, apesar do seu isolamento, continuam lá, estão vivos, consentem que continue a realizar o meu trabalho, dando as histórias que levo, possibilitando a reunião de outras na minha memória. O meu obrigado a todos eles! 2 de maio de 2018.
Manhã envergonhada nas viagens e andanças com letras pelas aldeias da minha terra. Na Aldeia do Mato os aldeões despedem-se dum filho da terra, o preto é a cor dominante junto da igreja. Aos poucos uns partem, de uma maneira ou de outra, perante a ausência de nascimentos e da prostração do interior, as aldeias também podem ter os dias contados. Aldeia do Matos, 3 de abril de 2018.
Hoje, ao deixar o meu filho na escola fui admoestado por um agente da autoridade, ao entrar na rua circundante do estabelecimento de ensino, bem o vi (a primeira vez desde que o meu filho frequenta a escola) lá ao fundo girando os antebraços, como que a alertar, vem depressa, não interrompas a marcha. Há quatro anos para cá que enfrento (com outros pais) a fila de automóveis, diariamente no período de aulas, muitas com um quilómetro de extensão ou mais, até estacionar defronte do portão de entrada da escola. Sem prejudicar o "cortejo" parei para o meu filho sair, pediu-me logo ali, pois os colegas da turma estavam ali todos reunidos (no máximo dez). Arranquei, logo depois estava o agente, desta vez com outro movimento, o da mão, para cima, para baixo, abrandei sem travar. - Foi a última vez que fez isso! Disse com uma voz autoritária! Eu ainda tentei arranjar uma causa para o meu procedimento e lá fui à minha vida. Não tenho nada contra o agente da autoridade, executava o seu trabalho. Só que todos os anos o problema é igual durante as aulas para se atravessar a rua principal da cidade, via de entrada e saída da mesma, uns de passagem, outros como eu entregando os filhos nas escolas secundárias que distam uma curta distância entre elas. Isto para dizer que há mais de trinta anos está projectado uma via alternativa para a resolução deste inconveniente diário. Pagamos anualmente impostos e não são poucos, negociem, adquiram os terrenos. Mas não resolvam com autoritarismo.
Início de semana, nas viagens e andanças com letras pelas aldeias da minha terra, palmilhando a EN 2, na biblioteca ambulante com destino à aldeia da Foz. Via encaixada no centro de um longo vale espaçoso, ladeada por terrenos agrícolas e de algum montado. A ruralidade no seu explendor, com direito a informação, histórias e amizade! Foz, 23 de outubro de 2017.
Voltei ao vale que divide a charneca, não foi um regresso às viagens e andanças, foi relembrar um passado recente. Para o viajante das viagens e andanças se tornou demasiado longo, as saudades das viagens, de levar histórias, das pessoas, não se escoaram, ficaram as memórias. Foram elas que me empurraram de casa para o vale, para visitar as aldeias do Vale Zebrinho, Barrada e Pego. São lugares onde a biblioteca ambulante se demorou, em tardes longas no verão e curtas no inverno. Um regresso que mais não é um palpite, do retorno para muito breve da biblioteca ambulante, às viagens e andanças com letras pelas aldeias da minha terra.
Espero que ao receberes esta carta te encontres bem com a tua consciência!
Escrevo-te de uma cidade que em tempos atrás acordava com o sol batendo nas nossas janelas, os pássaros logo de manhã chilreavam de alegria saltando de ramo em ramo nas laranjeiras floridas, ao mesmo tempo que o perfume destas preenchia as ruas. As crianças percorriam-nas cheias de alegria, caminhando para a escola acompanhadas pelos pais, que seguiam depois para os seus trabalhos. Os jardins tinham gente usufruindo dos seus espaços, conversavam uns com os outros, as crianças brincavam perseguindo bolas. Uns passeavam os animais de estimação, debaixo das árvores as esplanadas eram ponto de encontro de famílias, e de amigos. Embalados pelo sopro suave do vento, conversavam, bebiam, numa sã convivência, os enamorados, andavam de mão dada construindo o sonho de uma vida a dois, ou mesmo vivendo amores de uma existência esporádica mas cheios de felicidade. Da minha janela, além do sol, o rio corria repleto de entusiasmo e fauna, homens seguravam canas, passavam horas olhando as suas águas na expectativa de surgir na ponta da linha, preso no anzol o peixe que poderia ser alimento nesse dia. Tio, escrevo-te porque o que relatei anteriormente já não existe, não há meninos nas ruas brincando, não há homens, não há mulheres, não há pássaros, não há risos e sorrisos, até as lágrimas secaram de tanto correrem pelos rostos destas pessoas que vêm a sua cidade destruída pelas bombas que caem constantemente, pelas armas que ceifam vidas de novos e velhos. Inocentes que pagam com a vida a crueldade de um tirano. Tio, peço-te que me deixes a mim e aos outros desta cidade, que possamos ir para a tua cidade, aí, na América, para continuarmos os nossos sonhos, ter trabalho, ter escola, ter novamente sorrisos, alegria, e mais importante, ter amor pelo próximo.