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Histórias à Beira Rio, viagens e andanças com letras pelas aldeias da minha terra

"Afinal, a memória não é um acto de vontade. É uma coisa que acontece à revelia de nós próprios." Paul Auster

Histórias à Beira Rio, viagens e andanças com letras pelas aldeias da minha terra

"Afinal, a memória não é um acto de vontade. É uma coisa que acontece à revelia de nós próprios." Paul Auster

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O outono chegou com o vigor do inverno, na Aldeia do Mato a biblioteca com as portas fechadas, a disponibilizar histórias aos leitores audazes que queiram enfrentar a chuva impelida pelo vento. Na cabeça do viajante das viagens e andanças, passam imagens de histórias a voar, arrancadas da sua árvore, pairando no ar, indo na direcção das habitações dos leitores. Tombando com estrondo nas portas, avisando-os que estão ali, que as leiam, que as arremessam aos vizinhos, que transmitam a passagem da biblioteca ambulante. 

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O vento leva tudo, despenteia os cabelos do leitor, desgrenha as folhas dos jornais, entra e sai violentamente na biblioteca ambulante. As copas das árvores debruçam-se, assim ficam sem conseguirem aprumarem-se. As histórias encolhidas nas estantes ouvem os assobios do vento, tanto que agora só querem ir dançar, rodopiar na ventania, ao som agudo da passagem do ar por entre as folhas. Este momento de festa não é para qualquer um, no seu lugar o viajante das viagens e andanças, observa a inquietação onde está envolvido. A instabilidade climatérica sobressai a cada dia que passa, a ausência de firmeza daqueles que lêem, talvez nunca leram nada, ou lêem só o que querem, pode trazer ainda mais insegurança à condição e qualidade da nossa existência futura. 

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Os campos estão adormecidos a esta hora da manhã, a velhice é perceptível na cor das folhas das videiras, a colheita da uvas já foram. Agora é tempo da fermentação antes da trasfega, para depois se entregar ao amadurecimento até o vinho se tornar bebível. Os raios solares ao tocarem na ramagem gem de algumas árvores, tornam-se resplandecentes, estão assim, e à medida que os dias avançam, os campos a ficarem ornados a ouro. Pelo cacarejar da galinha, acabou de pôr um ovo, ao longe um cão ladra, sons característicos do meio rural, território interior, onde as histórias são sempre a novidade. Um partir e regressar sem conta pelas aldeias da minha terra, a biblioteca ambulante, conhecida por muitos, é ainda original para outros que nunca entraram numa biblioteca onde as histórias estão acomodadas em pequenas estantes, fixas à estrutura do veículo, como se fossem órgãos de um corpo. Organismo que se completa com os vasos sanguíneos, as veias, as diferentes histórias que são canais de informação, conhecimento, prenúncio de outra vida para quem as ler. 

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A biblioteca ambulante está em estado de pausa debaixo do grande plátano na aldeia do Vale Zebrinho, o ar invade o espaço, inquietantando as histórias. O som penetrante do vento atravessando a copa da velha árvore, assemelha-se a um suspiro de alívio, uma convocação, finalmente a sua sombra tem utilidade. A pouca densidade populacional da aldeia não traz pessoas ao redor da imponente árvore, só a biblioteca ambulante poderá incluir esperança. Os sussurros do vento trouxeram dois jovens, entraram apreensivos, olhares curiosos percorreram as estantes, marcaram histórias, assentaram os seus nomes, saíram leitores. Obrigado. 

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O panorama visto do cimo do coreto inacabado, de aparência agradável, alcança a margem sul do rio, o casario ao redor do adro da igreja, a biblioteca ambulante. Ali estão as histórias que nunca se cansam das viagens sucessivas ao encontro de quem as queira ler, na demanda de leitores principiantes. Até os que nunca se afeiçoaram às folhas onde estão impressas as letras que formam as palavras, são bem vindos. As portas estão sempre abertas a todos, compareçam, nem que seja só para narrar uma história. 

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A padeira que vende o pão, o viajante das viagens e andanças com letras que cede as histórias sem pedir nada em troca, estão sempre no limitado largo São João de Brito, na aldeia do Tubaral. Uma traz o papo-seco, a carcaça, a broa de milho, o pão alentejano, o pão de centeio, o pão de Deus, o caracol. Nem sempre os há, mas quando estão adicionados, os bolos, o rim, o palmier, o guardanapo, a bola de Berlim, o mil folhas e o pastel de nata, são cobiçados de um modo insaciável. Compreendo, ao chegar à aldeia, a padeira já permaneceu noutras ainda o sol estava por nascer, aqui os bolos muitas vezes já são escassos ou raros. Assim a luta pela sua posse é digna de observar, no que diz respeito à biblioteca ambulante, não há combate. Embora haja um número considerável de histórias para todos os gostos, ficção, narrativa, poesia, teatro, áudio e visual. Extensas, curtas, variados formatos estão colocados descaradamente, ao alcance de quem os queira levar e apreciar nas suas casas. Não são as papilas da língua, no caso do pão e dos bolos, mas as histórias geram sentimentos perpetuados na leitura das suas páginas. Não se consomem, ensinam-nos, permanecem connosco até ao fim.

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Debaixo da chuva, com o barulho ensurdecedor dos pingos grossos a soar nos ouvidos do viajante das viagens e andanças, assim foram as deslocações no primeiro período do dia pelas aldeias da Foz, Água Travessa e Chaminé. Apesar da tempestade que se abateu, os leitores apresentaram-se com as histórias para devolver, abrigados no interior da biblioteca ambulante, dialogavam, adoptando novas histórias para lerem até ao próximo regresso às suas aldeias. Agora, de tarde, o sol é um lutador solitário, a tentar romper as nuvens espessas, na mesma condição está o viajante a tentar entrar com ímpeto na existência das pessoas de Alferrarede. Dar-lhes uma rotina diferente, com histórias oferecidas, que os farão ser possuidores de mais conceitos, de outra força moral. 

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A vindimar histórias, um cacho, bago a bago, espremer até ao sumo, assim se devoram as histórias, as uvas. São horas em pé, apoiado sobre os calcanhares, de tesoura na mão, cortando o cordão que une o cacho à planta. Sentado, deitado, na postura que mais lhe servir, a separar, folha a folha, a ler a comprimir palavras e frases. Uns aproveitarão o líquido derivado das uvas espezinhadas, outros ganham saberes adquiridos na leitura. A simultaneidade é possível quando a biblioteca ambulante os atrai, há tempo para colher uvas, há tempo para compreender. 

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Não existe regularidade na leitura, exceptuando uma escassa minoria nas aldeias da minha terra, é com prazer que o viajante das viagens e andanças oferece o jornal local, só para os observar a ler. Alguns estão debruçados de tal modo, parece que querem engolir as letras, mal se lhes vê o rosto. Sabem decifrar o conteúdo escrito, muitas vezes o movimento dos lábios a soletrar expõem a ausência da leitura no quotidiano destas pessoas. Ou mesmo a dificuldade na capacidade de entender o significado das frases. O jornal vai com eles, dobrado, debaixo do braço, na mão, nas suas casas não sei se mais alguém o lê. É uma peugada deixada pela biblioteca ambulante nas aldeias onde permanece periodicamente, é uma esperança, uma sedução aos prováveis leitores. 

08 Set, 2021

As histórias...

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O meio de transporte na qual estão as histórias não abranda, a consequência de contínuas viagens pelas aldeias da minha terra estimula o desgaste de alguns componentes que mantêm o veículo em andamento. Foi o que aconteceu hoje no início de outro percurso, um pneumático não estava em condições de percorrer a sucessão de acontecimentos que o esperavam nas estradas das viagens e andanças. Assim houve necessidade de recorrer a alguém que se dedica exclusivamente a operar com estas anomalias. As histórias entraram assim num enorme local, específico para consertar pneus, não foi muito tempo desperdiçado, a entrega das histórias aos leitores não ficou lesada. Conseguiram igualmente atingir as aldeias e os leitores determinados no itinerário. 

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