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Histórias à Beira Rio, viagens e andanças com letras pelas aldeias da minha terra

"Afinal, a memória não é um acto de vontade. É uma coisa que acontece à revelia de nós próprios." Paul Auster

Histórias à Beira Rio, viagens e andanças com letras pelas aldeias da minha terra

"Afinal, a memória não é um acto de vontade. É uma coisa que acontece à revelia de nós próprios." Paul Auster

Liam às escondidas...

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Com a cegueira de ler nem me deitava, foi uma das frases que disse. Estas e muitas outras que me seduziram, no  tempo em que as mulheres liam às escondidas até que a alma lhes doesse. Ainda jovem, tirava livros do pequeno volume deixado pelo tio numa mesa. Livros estes que trazia para a aldeia e distribuía pelos rapazes, histórias que não ficavam por aqui, sem interrupções eram trocadas depois de lidas por uns e outros até se esgotarem. Voltando ao início , onde a mulher jovem, e velha hoje, lia em segredo após a mãe cansada de um dia de trabalho no campo, espalhava o carvão ardente, o que restava da lenha  que aqueceu a cozinha, antes de se ir deitar. Quando esta pregava o olho e não era preciso muito tempo, a jovem voltava a juntar as brasas e lia até que a alma lhe causasse dor. Houve um dia que o tio lhe questionou se ela andava a ler, disse que sim e qual o problema, perguntou ela. Problema não há nenhum respondeu o tio, mas tenho que te ensinar umas coisas acerca da leitura. Nem tudo o que lês nos livros é verdade, disse o tio, e ainda disse mais, não faças da tua vida o que as histórias te dizem. Uma cumplicidade que ficou para a vida, segundo ela, o tempo passou, foram sessenta anos, e ainda continua a gostar de ler, não principia uma história, sem terminar outra.

Um guardador...

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A condição social presentemente não é a melhor, o desconforto psíquico, a aflição, escoltam muitas pessoas diariamente. As paragens laborais pelo motivo que todos sabemos, somando a crueldade dos compromissos bancários, instituições de crédito na hora de cobrar, o afastamento e tantas outras situações que acontecem não só nas aldeias da minha terra mas na generalidade do país. A lentidão, os retrocessos da normalidade, alertam o viajante das viagens e andanças, quando alguém se aproxima e desata palavras sobre isto e aquilo, ouvindo tenta perceber que palavras são estas. Aconteceu hoje mais uma vez, no itinerário da biblioteca, foi surpresa, leitor habitual dos jornais, de histórias, mas a necessidade foi tanta de expor o sentimento que agonia a sua consciência. No início não estava preparado, pois este imprevisto não deveria acontecer nesta pessoa, mas estava ali mesmo à minha frente, o tempo passou, ele desabafou, foi um momento que não vou esquecer. No final, na abalada da biblioteca ambulante, agradeceu. Agradecido estou eu, pela confiança em alguém que chega para trazer histórias e parte como um guardador do que há mais de escondido.

Mesmo a pouca vontade de ler

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A chuva agarrou a biblioteca ambulante, a manhã ainda sorriu, mas foi de pouca dura, as duas chegaram unidas à aldeia do Vale das Mós. Foi de mãos dadas que as viram chegar, os homens fumavam cigarros debaixo da lona que cobre o acesso ao café, de olhar tristonho viraram as cabeças à passagem da biblioteca ambulante. Lá dentro as histórias não prevêm que o dia seja de leitores a aparecer com vontade de as levar. Está frio, a água gelada que escorre abundantemente das nuvens alavanca seja o que for, mesmo a pouca vontade de ler.

Num instante ficou sobrelotada....

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Um frio penetrante persiste teimosamente na aldeia do Vale de Açor, está tão afiado que o cheiro da lenha a ser consumida nas lareiras ou fogões ocupa toda a aldeia. Só o café bem quente no termo me aquece, apesar dos membros começarem a ficar enregelados O sino da pequena igreja dá onze badaladas, não tarda chegará o leitor deste lugar, a sua mulher já por aqui passou, avisando que não se demora. Enquanto espero, vem-me a imagem da tarde de ontem, a biblioteca ambulante captando novas leitoras. Num instante ficou sobrelotada, as histórias desarrumadas, utentes da Associação Cres.cer ocupam uma vez por semana uma tarde ou manhã, consoante as aldeias onde a associação desenvolve o seu trabalho com estas pessoas. A biblioteca ambulante está intrometida, por momentos rouba algum tempo, no caso deste grupo, ocupado entre trabalhos manuais e mexericando no alheio, têm agora oportunidade doutro alheamento, a leitura.

Antes lessem...

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Onde a terra começa a espreguiçar-se e a estrada foge, tractores puxando alfaias mecanizadas revoltam as terras no Salvadorinho. A terra tem que ser mexida, assanhada para receber sementes novas, não tem sequer tempo para descansar na agricultura dos dias de hoje. Assim estão as pessoas, não lhes sobra intervalos para lerem, muitas vezes a resposta que dão é que têm muitos livros em casa, que o tempo é curto para estarem com um livro na mão. Já basta aqueles que infelizmente não sabem decifrar as palavras, ou não as compreendem, ainda tenho que ouvir vozes a jurar mil e uma coisas para perderem oportunidades de possuírem histórias. A televisão, as novelas, antes lessem romances de cordel, sãs as flanelas que os agasalham à noite em casa. Os mais novos recorrem aos jogos e a sei lá mais o quê, pois em muitas aldeias, as comunicações são o que são. Todos os dias o viajante das viagens e andanças os atiça com as histórias, para lhes lembrar que podem ser diferentes, mesmo a ver telenovelas.

 

Nesta pressão social...

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Lá fora, o mundo anda em contestação, noutra latitude os que perderam as suas raízes são usados como armas de arremesso e colocados no limite de territórios de modo a provocar conflitos. Andamos presos por filamentos, a crise energética associada ao clima, por cá o vírus que abre noticiários volta a ser destaque, se é que alguma vez deixou de o ser. Globalmente anda tudo virado do avesso, a hostilidade que é característica nalguns povos está cada vez mais saliente nas mãos de homens que administram governos nada democráticos. Levantam-se muros, a crueldade apodera-se nas pessoas pressionadas de medos de coisas nenhumas. Nesta pressão social e na estrada, nas viagens e andanças, a biblioteca ambulante continua a provocar a diferença naqueles que a usam através das histórias. Sem agitação as aldeias mantêm-se anónimas, as charnecas embora sendo barreiras transponíveis, cuidam naturalmente de quem  fica. Aqui só o vento se destaca levando à sua frente folhas amarelas e deformadas pelo tempo.

 

Iniciam a leitura...

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Gente da minha terra, pela primeira vez contactam as histórias na  biblioteca ambulante, tantas foram as oportunidades, as viagens, partidas e regressos nas suas aldeias. A consequência à acção de não desistir está a dar rebentos, iniciam a leitura na biblioteca ambulante, surpreendidas com a oferta que esta proporciona (culinária, croché, rendas, a Cristina da televisão) a todas as pessoas.  Só de as observarem ficam de olhos esbugalhados, diálogos incompreensíveis, falam todas ao mesmo tempo, tentam encontrar histórias que possuam letras maiores, a vista cansada, pequenas anomalias da idade avançada, obstruem a visibilidade. O viajante das viagens e andanças não consegue estar quieto, de um lado para o outro, em cima, em baixo, nas estantes perseguindo histórias que as possam satisfazer. Mãos de trabalho que de um momento para o outro não imaginariam segurar histórias, umas atrás das outras, sem saberem qual ou quais levar para casa. Uma manhã cheia de ouvir as histórias que todas tinham para desprender das memórias, a biblioteca ambulante é isto que recebe, adicionando a amizade que fica para sempre.

É bom saber...

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As luzes reflectidas no rio iluminam outro dia de viagens e andanças com letras pelas aldeias da minha terra, algumas irão interromper a marcha da biblioteca ambulante. No interior da charneca, no carrossel da estrada, serpenteando planaltos e colinas, as aldeias surgem sob o olhar morno do sol. Os habitantes estancados em pé ou sentados, junto das suas casas, nos sítios marcados pela presença da biblioteca ambulante, da padeira, onde acontece tudo nas aldeias, aquecem os ossos gastos. De mãos nos bolsos, boinas a tapar o sobrolho, xailes ou casacos tapando os ombros e as costas, assim estão eles, homens e mulheres, aguardando uns e outros, entram na biblioteca, atiram a responsabilidade da selecção da história ao viajante das viagens e andanças. Saem na direcção da outra, sem nenhum preparo, entregam o saco e a padeira coloca o pão. Tem memorizado a quantidade e o género de pão que cada um pretende, padeira e bibliotecário não estão distantes no conhecimento que têm dos que fazem uso dos bens que dão. Hoje escutei duas leitoras a comentarem as histórias que tinham lido, é bom saber que os diálogos nas aldeias estão a ficar variáveis.

No sabor que dão a ler

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Após ultrapassar os pés da cidade alicerçada no cimo do outeiro a estrada escapa-se na planície em direcção à aldeia da Foz. Sem ser o drama baseado numa história verídica «Fuga para a vitória», filme onde Sylvester Stallone, Michael Caine e Pelé, o futebolista foram intérpretes. A biblioteca ambulante afasta-se rapidamente para conquistar leitores com uma história de cada vez, não quer perder os que estão sempre presentes todas as vezes que se fixa por momentos nas ruas e largos das suas aldeias. Ao contrário do que muitos determinam, têm sempre que fazer, atarefados a trabalhar no campo, cuidando dos animais, pedaços de terra que possuem, esta não pode ser desprezada, o tempo é que comanda a vida no campo. Aparecem soturnos, risonhos, deixando sempre algo por fazer nas hortas em casa, mas na biblioteca ambulante há sempre algo para falar, quando se juntam as conversas ficam animadas. Os assuntos abordados dos seus afazeres são idênticos, só as histórias que levam é que se diferenciam no sabor que dão a ler.

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