A maior flor do mundo é toda a obra de José Saramago, parte desta está na biblioteca ambulante a celebrar o dia do seu nascimento. São pétalas arrancadas na força do vento, levando-as por este mundo fora até se dispersarem nas aldeias da minha terra. Histórias sem divisões no tempo, que se expandem sem parar até ao fim. Histórias que todos deveriam ler, por isso se destacam nestes dias, para serem divulgadas pelas gentes da minha terra.
As queimadas que se fazem notar no meio dos campos, nas hortas próximas das casas, onde a estrada que leva a biblioteca ambulante, rasga a tranquilidade das aldeias e lugares, parecem fumarolas como as que ocorrem nas regiões vulcânicas. Partes lenhosas das recentes podas efectuadas nas oliveiras após a colheita da azeitona ardendo, transformam repentinamente o olhar do viajante das viagens e andanças com letras em fantasia. Os campos são agora os da região ocupada e controlada por Sauron, no sudeste do noroeste da Terra Média. Imaginada por J. R. R. Tolkien, na história «O senhor dos anéis». Só faltam as árvores mais velhas serem os Treebeards a caminhar lentamente e dialogando com o viajante das viagens e andanças. Envolvido na demanda de alterar as pessoas com as histórias que transporta no veículo mágico que se desloca nas asas do vento. Com a ajuda destes entes e a contínua insistência de voltar empurrado pelo ar em movimento às aldeias, sempre lutando contra a impossibilidade, a capacidade e à aversão de ler. Quem as ler obtém outra formação pessoal, passará a ser um leitor. A existência deixará de ser sombria, outra luz pairará no horizonte da região.
Para onde estarão a olhar, permanecem no tempo primaveril, o outono ainda não é para eles. Olharão para as histórias que ainda não sabem decifrar, as mesmas que os encaminharão um dia, seria bom se assim fosse. Creio que as incentivam nas escolas, nas bibliotecas escolares, não quero acreditar que as histórias estejam só por estar, para sabermos que existem. E depois nas suas casas, no seio das famílias, possuirão regularidade na leitura. Já bastou o ensino onde a violência física exercida naqueles que não detinham a faculdade de compreender imediatamente, acabou por os afastar definitivamente das histórias e do prazer que dão a ler. É na ressaca desse ensino que continuamos no que concerne à leitura e não vejo melhorias ou acções da parte do poder. Há vontade, há isto e aquilo no acesso à leitura, até há bibliotecas sobre rodas, todos os dias ando junto das pessoas e sou testemunha que as histórias para muitos deles não têm valor. Não as compreendem, nunca leram uma só que fosse, como é possível encontrar pessoas assim nos tempos actuais. E não é só nas aldeias da minha terra, é nas aldeias todas, é nas cidades é no país. Como poderemos um dia ser como eles estão constantemente a prometer se não há instrução, determinação para pôr todos a ter satisfação a ler.
Come-se castanhas assadas na aldeia da Concavada, no largo, sentados junto a uma mesa alguns locais não se esgotam de as levar à boca e engolir, acabadas de assar no resto do carvão que tostou os frangos antes do almoço. Defronte da biblioteca ambulante, no lado oposto, a viatura que traz a fruta e os filhos das galinhas preparados para o grande assador tem o fim de um dia de negócio à vista. Amanhã será outro dia, outra aldeia, assim como a biblioteca ambulante, percorre as aldeias da minha terra, há dias que permanecem na mesma aldeia, quase sempre nos mesmos lugares, aguardam por quem as queira usar. As vozes têm momentos em que se fazem ouvir mais alto, noutros não passam de sussurros, tem a ver com a quantidade ingerida de álcool, hoje ninguém leva a mal, é dia de S. Martinho. A tarde soalheira atrai as pessoas à rua, de manhã foram colher alguma azeitona das poucas oliveiras que ainda as têm, agora estão pretas, penduradas nos frágeis ramos, são como os enfeites para as orelhas. A venda ambulante põe-se em marcha, a biblioteca não ficará muito mais, a próxima aldeia está expectativa.
Após anos a viver outonos a mulher apoiada no pau, não é mais que um prologamento do seu corpo gasto, ainda mantém a vontade de deambular, aldeia acima, aldeia abaixo. Que história de vida terá, quantas histórias poderia relatar. Esta mulher é também a história da aldeia, aqui nasceu, aqui cresceu, aqui se demora, aqui morrerá certamente. Num tempo anterior, na aldeia outras mulheres velhas por aqui andaram, aldeia acima, aldeia abaixo. Parece que o tempo não passou por aqui, a biblioteca ambulante com as histórias percorre a aldeia, abaixo e acima, cada vez que chega, cada vez que parte, tantas são as vezes. Parece que o tempo não passou por aqui.
Ultimamente as manhãs têm-se iniciado confundindo o viajante das viagens e andanças, a névoa é tanta que nunca se sabe como crescem e terminam os dias. À primeira vista a leitura ficou para segundo plano, não é bem assim, os dias agora são pequenos para a colheita da azeitona e para frequentar a biblioteca ambulante. Só há tempo para a primeira, ainda o sol se espreguiça já os panos de cor verde se assemelham a tapetes numa enorme sala em volta das oliveiras. As histórias aguardam que as terminem, colocadas em cima de mesas, sofás ou outras mobílias espalhadas pelas casas, parecem abandonadas. Mas não, cada vez que chegam, após um dia de trabalho entre o olival e o lagar, ainda as encaram nos lugares onde ficaram desde a última vez que um capítulo, uma frase, um ponto final, até mesmo uma vírgula terminasse a leitura. Imagino a tentação de continuar ou mesmo pôr fim à história, mas o cansaço é demasiado para os corpos, muitos deles já velhos. Sem grandes dificuldades aquecem o que restou do almoço ou mesmo do jantar do dia anterior, comem sem lugar para grandes diálogos, para pouco tempo depois se deitarem. Rapidamente ficam envolvidos numa letargia, numa história que os levará a outro dia.
As folhas não param de aliviar os ramos torcidos de tanto peso nas árvores, cobrem as bermas das estradas, os largos das aldeias, a biblioteca ambulante. São histórias a terminar um ciclo de vida, aproxima-se uma interrupção, não a morte. A estagnação é um momento de reflexão, de preparação para o que aí vem nos meses mais próximos, seria bom que as histórias das viagens e andanças e a sua leitura, fossem uma parcela desse amanho que todos constroem nas suas vidas. Sairiam muito melhores realizados desta prudência, neste intervalo.
Sentados em cima das folhas caídas das árvores da floresta que os envolve no imaginário das histórias, escutam atentamente a professora. Olhos encravados nas páginas ilustradas que progridem devagar sob o impulso da mão habituada de tão digna tarefa. Interrompem apontando para os bonecos que os cativam mais, soltam palavras, das quais algumas só os mais atentos compreendem. Aprendem outras ainda desconhecidas no seu frouxo vocabulário, participando na história lida entusiasticamente na biblioteca ambulante.
O sol substituiu a chuva, mas não veio só, trouxe o frio, trouxe pessoas à biblioteca ambulante que não ficaram indiferentes às pequenas personagens penduradas num fio desafiando a curiosidade de quem entra. Rodeadas por histórias disto e daquilo, as pessoas da aldeia da Concavada conheceram a biblioteca ambulante, souberam que através da mesma podem ter acesso às muitas histórias dispostas nas estantes. Levam hoje, trazem depois na próxima visita, trazem quando houver oportunidade, mas nunca deixem de as passar de um lugar para o outro. Só assim a mensagem se propaga, as histórias andam aí, as histórias reviram as pessoas.
O outono instalou-se na biblioteca ambulante, trouxe histórias de bruxas, de arrepiar, de encantar. O homem das castanhas, com as suas figuras enigmáticas com algum sentido oculto. Fenómenos extraórdinários narrados nas histórias que emocionam quem as lê, quem não ficou desconfiado após ler um conto cheio de mistério. Adormecer torna-se mais complicado, na escuridão do quarto qualquer ruído fora do comum põe-nos em pânico. É a magia das histórias a transportar-nos para universos tenebrosos, que nos prendem até à ultima palavra. Autores de muita imaginação a escrever horas a fio, a criar personagens horrorosas, ao mesmo tempo fascinantes aos olhos dos leitores. Histórias de deslumbramento, livros que são varinhas que nos apontam o caminho a seguir, o futuro que escolhemos.