Três textos escritos a quatro mãos para peças de teatro, que foram reescritas em jeito de novelas. Os autores dispensam de apresentação, apareçam e usufruam desta escrita.
Nos meandros das ruas encaixadas entre prédios, cujas varandas apresentam roupa estendida, a biblioteca ambulante explora vestígios, deixados propositadamente, que marcam a época que vivemos, nesses lares. Para lá das portas, exceptuando o que acabei de descrever, as histórias serão assim como mostram as árvores de Natal. As luzes que não estão ligadas, mas quando a noite cai apressada como sempre nestes dias, ganham vida confirmando que afinal está tudo bem. As histórias que me acompanham, que estão ali à minha frente, onde algumas narram natais nos mais diversos lugares, dizem que não é bem assim. Há existências diferentes, mesmo em casas coladas umas às outras, em cima e em baixo. Histórias de violência entre pessoas que se amam, ou amaram, histórias de pobreza encoberta, histórias de solidão, de vergonha. Mesmo assim o Natal cobre todo este sofrimento silencioso, com estes adornes todos, colocados estrategicamente. Numa destas ruas, olhada por detrás de persianas, cujas frestas permitem sempre vigiar quem passa, a biblioteca ambulante, sem querer ser o Pai Natal, está de portas abertas para receber quem queira conversar um pouco, atirar para longe a solidão nem que seja momentaneamente. Ou mesmo levar um amigo para casa, onde possa poisar a vista e ler o que ele tem para lhe contar. Acredite que ficará melhor e mais saudável com a mente ocupada. A biblioteca é uma compartilhadora de sentimentos, apareça não se vai arrepender.
No rádio toca " Shape of my heart " do Sting, um anestésico para a chuva que se manifesta de forma intensa, a viagem prossegue, no traço preto infinito que divide a planície onde cavalos e ovelhas indiferentes à passagem das histórias levam a eito a erva tenra do pasto. Repentinamente uma cegonha voando baixo, sobe como se estivesse numa pista de um aeroporto e se posiciona ao lado da biblioteca ambulante, batendo as asas paulatinamente, as histórias não podiam ter melhor acolhimento em terras do Vale das Mós, do que este abraço na essência dos seres que coabitam este território. No final da viagem, na aldeia, a visita da pequenada encheu de alegria a biblioteca ambulante, com as histórias a misturarem-se nas suas pequenas mãos.
Um friozinho acomoda-se a pouco e pouco, não dei pela pela sua chegada, mas quando deixei o foco no que estava concentrado, dei conta da aragem gélida, que sem pedir licença entrava na biblioteca ambulante. Não se vê gente na rua principal da aldeia, o sol está impotente, não aquece coisa nenhuma, nem os ossos mirrados dos velhos. Mesmo assim houve quem visitasse a biblioteca ambulante, trouxeram, escolheram histórias para lerem nos intervalos da faina doméstica, da manutenção das hortas. Os dias estão cada vez mais curtos, mais logo as histórias estão noutras aldeias, a tarde será breve, haverá leitores distraídos que não alcançarão as narrativas, os mais atentos levarão ficções que os agasalharão nas noites frias que antecedem o advento.
No Vale Zebrinho algumas árvores desnudaram-se para receber a temperatura primaveril numa tarde de outono. Sem vergonha ali estão elas no vale a desfrutar, outras na charneca não se atrevem a tanta libertinagem, e há as que não conseguem esconder a inveja. É a natureza no seu melhor, atravessamos um ciclo, não tarda o inverno está aí. Vergonha, libertinagem e inveja, são muitas vezes matérias para histórias, privam connosco, são propícias para evidenciar narrativas. Na biblioteca ambulante o que não falta são histórias com estes assuntos, mas também há quem tenha vergonha de se aproximar, ou insubordinação à leitura, e desprazer por quem é assíduo na leitura e na frequência na biblioteca.
Em Alferrarede Velha, povoação entrincheirada no limite urbano a manhã corre apressada. São os automóveis na estrada que a atravessa, as carrinhas que estacionam onde bem calha. Quem conduz, abre as portas retira-lhes os recheios, abraçados, nas costas, levam-nos para as casas de comércio. Um quotidiano demasiado apressado para o viajante das viagens e andanças, habituado ao vagar com que as histórias saem da biblioteca ambulante. Cada vez mais um observador nato das ocorrências nas aldeias, umas ainda com quase tudo outras piores no relacionamento com o passado. Muitos contam os dias para a chegada dos filhos e dos netos, as couves, as batatas, o bacalhau e o vinho, já estão na linha de partida para a consoada. Uns dão, outros trazem e num refúgio aconchegado deixam a noite avançar, matando saudades, trazendo memórias à mesa, com histórias a acontecer.
Hoje soube que uma leitora tinha partido, foi quando anunciava a presença da biblioteca ambulante diante do Centro de Dia. Se a vi uma vez já foi muito bom, uma leitora assídua, uma funcionário levava-lhe as histórias, a sua autora preferida era a Sveva Casati Modignani. Muitas das suas histórias foram as companheiras diárias, na instituição que a acolhia em Alvega. Uma perda importante para a biblioteca ambulante, quando andamos num tempo onde a leitura, ou o prazer de ler já não é motivador, a perda de leitores nestas circunstâncias, para além de entristecer, traz inquietação. A procura de leitores é constante, encontra-los, causar estímulos para que levem um livro, até mesmo a entrarem para olhar as histórias, lerem alguns títulos, não é fácil nas aldeias habitadas superiormente por velhos. A demanda de levar histórias continua, com presenças, com ausências, sempre com o objectivo de conquistar leitores com uma história de cada vez.
Destacada defronte dos portões da escola, a biblioteca ambulante é ignorada pelos pais, pelos avós, pelas crianças. Puxadas pela mão de mochilas às costas, ali vão elas direitinhas, como se fossem flechas, aos automóveis, que partem repentinamente. Nem o Robin dos Bosques foi tão despachado, o quanto são estes pais e avós atirarem crianças para o interior das viaturas. Nem um olhar sequer, uma pontinha de curiosidade, certeiro foi Guilherme Tell que protegeu a criança, livrando-a ao acertar na maçã. A chuva mostra-se na Encosta da Barata, agora a esperança esfumou-se entre os pingos que caem, a ursupação das histórias pelos adultos sem escrúpulos pela alegria que a leitura proporciona é demais aos olhos do viajante das viagens e andanças. Porque será que as histórias não convencem a maioria, é lamentável como o livro é considerado em Portugal.
Um papel que se afixa nas paredes, em lugares públicos, na biblioteca ambulante, anunciando espectáculos ou as mais variadas actividades culturais e não só. Um papel muitas vezes pegado na biblioteca ambulante. Um papel cada vez menos colado a informar quem passa nas ruas, mas que continua a ser importante para quem não tem outros instrumentos de informação instantânea. Um papel que se quer dar nas vistas consoante as técnicas traçadas para a escrita e imagem. Um papel que continua a fazer falta a quem está afastado e precisa de ser informado.