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Histórias à Beira Rio, viagens e andanças com letras pelas aldeias da minha terra

"Afinal, a memória não é um acto de vontade. É uma coisa que acontece à revelia de nós próprios." Paul Auster

Histórias à Beira Rio, viagens e andanças com letras pelas aldeias da minha terra

"Afinal, a memória não é um acto de vontade. É uma coisa que acontece à revelia de nós próprios." Paul Auster

Sem leitores ainda...

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Depois de dois dias intensos a sublinhar vitórias e derrotas, o primeiro dia útil da semana não perde a normalidade dos outros na Aldeia do Mato, a monotonia carinhosa  continua a fazer parte das práticas de quem aqui vive. Hoje o café está encerrado, um ou outro aldeão percorre a rua que segue na direcção do rio. Passos arrastando-se ouvem-se ao longe, próximos são pesados, não estou enganado, a idade avançada de quem habita na aldeia não é impeditiva para se deslocarem às hortas. No regresso, equilibrado na cabeça, há sempre um enorme saco cheio de couves, erva para os coelhos, ou partes de ramos secos, para ajudar o fogo na lareira a crescer. A manhã está fresca, o sol ainda não tem força que permita aquecer os velhos que andam por aqui com olhares de curiosidade na biblioteca ambulante. A água corre para o tanque, o som que liberta ao unir-se com a que já lá está, provoca um bem estar no viajante das viagens e andanças. Sem leitores ainda, esta fonte faz lembrar as antigas bibliotecas romanas, onde uma história era sempre um pretexto para se ir a banhos numas termas em quaisquer províncias do império.

 

Aprendam a viajar...

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A vida no largo não está fácil, o vento atravessa o espaço levando tudo à frente sem pedir permissão. Só os automóveis se atrevem a defrontar esta desordem, vindos das ruas que desaguam no largo, para imediatamente se enfiarem noutras. Nas extremidades onde o sol embate, nas paredes das casas, onde a água brota da terra sem parar, estão as pessoas. Umas ainda se abrigam debaixo das coberturas, nas esplanadas de dois cafés que disputam a clientela convergente. Uma concorrência leal sem arremessos entre os estabelecimentos. Junto ao fontanário as mulheres soltam palavras em som alto, para outra que está a alguns metros de distância, sentada diante de um dos cafés. A biblioteca ambulante estacionada no seu cantinho, ainda é um objecto estranho, continua a ser olhada de soslaio por muitos. Desconfiados, caminham rapidamente na direcção das histórias, são setas a passar muito perto, nunca chegam a acertar no alvo. Venham donde vierem, algum dia atingirão a biblioteca ambulante. E que as lesões provocadas pelos instrumentos perfurantes, movidos pela curiosidade, dêem origem a brechas onde jorrarão palavras impossíveis de estancar. Ao mergulharem neste mar de letras, aprendam a viajar, a ir e a voltar.

Dois homens, uma mulher e um tractor...

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Grande é a azáfama, aqui muito perto do local onde a biblioteca ambulante está estacionada. Dois homens, uma mulher e um tractor, bem podia ser o título de uma história, uma enorme caixa são suficientes, para rachar lenha, deposita-la no recipiente de ferro, e no tractor percorrer meia dúzia de metros para a largar num monte a ficar cada vez mais alto. Não têm frio de certeza, demasiados movimentos, agachamentos e vice-versa, trabalho duro, para que possamos descansados nas nossas casas, debaixo das mantas, intervalando leituras com goles de chá, café ou chocolate quente,  aproveitar o calor que a lenha proporciona enquanto flameja nas lareiras. No silêncio do interior da biblioteca ambulante, com as minhas leais companheiras, as histórias que me protegem da solidão que os outros julgam que eu tenho durante as viagens e andanças, ouço o som de passos. Quem primeiro deu nas vistas foi o pequeno cão, de seguida o Gregório segurando a trela que controlava o animal. O cheiro das histórias atraiu o pequeno cão, o seu focinho não parava, de um lado para o outro aspirava as palavras com uma sofreguidão nunca vista. Tomara eu que as pessoas das aldeias da minha terra seguissem as histórias assim tão rapidamente. Não tenho essa sorte,  só leitores interessados, que entram e saiam satisfeitos com as histórias que a biblioteca ambulante contém. Neste espaço reduzido cercados por letras unidas umas às outras treinam a sua paixão, retirando das estantes brochuras, as cápsulas que preservam as histórias no tempo.  Aqui estão na biblioteca que não possuem nas suas casas, não deixa de ser a biblioteca de cada um deles, um lugar que sempre foi e continuará a ser de livre acesso a todos. Um universo de encontros , ideologias, conhecimentos, de curiosidades e arrebatamentos literários. Hoje o Gregório não levou histórias.

 

Terá estreado a história...

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Está frio na aldeia de S. Facundo, de manhã quando aqui estive a temperatura já estava baixa, voltei e continua esta aragem que se opõe a que as pessoas saiam de suas casas. No primeiro período uma leitora surgiu abraçando histórias para entregar, por aqui deambulou matando a curiosidade, pesquisando enredos novos e colocar nos braços novamente. Segundo ela, na sua casa a lareira já desembucha labaredas, ajeitando o ambiente a pouco e pouco. Imagino, agora que o sol já vê a enxerga ao longe, como se estará na casa da leitora? Terá estreado a história que levou, sentada no sofá com o rosto iluminado pelas chamas do fogo, a ler até que a preparação da refeição do início da noite a chame aproveitando a boleia de um ponto final. 

Felizmente a leitura...

 

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A biblioteca ambulante mais parece o aparo de uma caneta a escorregar nas folhas de papel. Serpenteando a estrada que atravessa a charneca, a caneta não se cansa de enfeitar com palavras as folhas, deixando um rasto de histórias para trás. Continuando sem parar de preencher com tinta, folhas que se vão sobrepondo umas às outras, com margens ilustradas por rebanhos que se alimentam da erva fresca. Não há nada melhor para reduzir as tensões do que ser personagem nestas folhas cheias de palavras. Letras, umas vezes escritas apressadamente, outras mais lentamente, aqui e ali, com travagens de prevenção, não vá haver algum erro e borrar tudo no final de alguma curva. Sem mais para escrever que me acalme a alma inquieta perante as ausências daqueles que lêem, não sei o que trará as próximas viagens e andanças com letras. Privados de alguma liberdade, entrincheirados nas hortas, em casa, são poucos os que se atrevem a chegar às histórias. Bem os compreendo, como eles, ando eu afastado do turbilhão, das filas longas que acompanham as ruas para prestarem vassalagem à Zaragatoa, a nova imperatriz do mundo moderno. Felizmente a leitura envia-me para longe disto tudo, montado nas palavras a levar histórias pelas aldeias da minha terra, a dar continuidade aqueles que o fizeram na antiguidade até aos dias de hoje.

O sol está a fugir...

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A desenrolar a tarde, como se estendesse um velho papiro, o viajante das viagens e andanças espreita esta parte do dia soalheira, junto da igreja da aldeia se algum leitor rompe o fundo da rua. Até ao momento só  automóveis, cujo som rabugento dos motores  inutiliza a cantoria dos pássaros. O relógio da torre sineiro de vez enquanto espirra ruídos estridentes que assombram os mais distraídos, sou um desses. Envolvido no texto e em tudo o que ele me exige, concentrado nos meus pensamentos, chego a saltar do banco quando aquilo me entra pelos ouvidos dentro. O tempo não avisa, mesmo devagar, anda apressado, olho outra vez para o começo da rua e nada, estarão esquecidos, ou andarão ocupados com qualquer coisa. O sol está a fugir, o tempo não volta atrás, os leitores a dormir, as histórias a sorrir. Estou capaz de lhes transmitir que a biblioteca ambulante já chegou.

Fugir do presente...

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Branco mais branco não há, o silêncio gelou nos lugares onde os braços do sol não penetram. A passagem da biblioteca ambulante onde o tempo atravessa devagar os dias, deixa um traço de informação. Quem se aproxima e mata a curiosidade na fonte, sai esclarecido, mais agasalhado para o que ainda vem aí. Mas a perda do sossego em virtude do organismo que não nos quer deixar em paz, encerra as pessoas nas suas casas. Afastadas não podem usar as histórias, fugir do presente, ausentarem-se nas páginas, viajar para onde as palavras as levarem. Uns refugiam-se do frio, sentados onde o sol os possa atingir, não têm medo dos raios quentes. Aproveitam enquanto o astro não desaparece, deixando as paredes sombrias outra vez mais um dia. São assim os dias nas aldeias, depois auxiliam-se no lume que estala no chão das lareiras, enquanto aquece as refeições. Finalmente, as mantas grossas, deixam de ser vistos sob o peso das mesmas na cama, até o sol se levantar outra vez.

O compêndio...

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No largo as árvores estão despidas, um livro sem palavras, não fossem os galhos nas suas formas excêntricas estaria na presença de espectros alinhados. Estas velhas árvores ladeiam o largo da vila,  são margens na vida deste, e das personagens que o tempo aqui escreve. De mãos nos bolsos, de cigarro na boca, passada lenta, apressada, vão quase todos desembocar no café da esquina. Os  pares enlaçados demoram o tempo que for preciso a atravessar, beijos demorados por entre olhares cheios de ternura e sorrisos de cumplicidade. No final da escola a pequenada de mochila às costas, vigiadas pelos avôs e mães, gastam a energia acumulada na sala de aulas, expelem emoções próprias da idade. A biblioteca ambulante faz parte da história do largo, é o compêndio que auxilia o tempo na escrita interminável, determinando o uso correcto da língua na história do largo.

Muitas vezes mediadoras de conflitos...

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Com o frio infiltrado na biblioteca ambulante o viajante das viagens e andanças não tem possibilidade de se ver livre do mesmo. Nem as histórias nas estantes, muitas vezes mediadoras de conflitos, o safam deste oponente silencioso. Os thrillers escritos por Jonhn Le Carré e outros que como ele  dão muito à literatura, nunca foram tão detalhistas nas descrições, como a sensação em que estou envolvido. Sem hipótese de escapar, corajosamente luto com este invasor, sem mais roupa para me proteger, um colete anti-bala tão necessário quando pretendemos estar de cara a cara com  inimigos  insensíveis, afogo-me no café quente que trouxe na garrafa térmica. O dilema ou a expectativa como terminará o thiller que estou a atravessar neste momento persiste, olho para o relógio, e a permanência no local está longe do final, ao contrário do café quente que está cada vez mais a desaparecer numa ruptura sem resolução.

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