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Histórias à Beira Rio, viagens e andanças com letras pelas aldeias da minha terra

"Afinal, a memória não é um acto de vontade. É uma coisa que acontece à revelia de nós próprios." Paul Auster

Histórias à Beira Rio, viagens e andanças com letras pelas aldeias da minha terra

"Afinal, a memória não é um acto de vontade. É uma coisa que acontece à revelia de nós próprios." Paul Auster

28 Fev, 2022

Prego a fundo...

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Prego a fundo, foi assim que a biblioteca ambulante desta vez percorreu a distância de Abrantes a Monte Galego, um traço de auto-estrada impeliu um pouco mais as histórias a chegarem ao destino. A dúvida instalou-se na chegada à povoação, no local onde sempre se demora um pouco, a biblioteca ambulante, as histórias e o viajante das viagens e andanças, sondaram se o José teria estado a aguardar ou desanimado tenha saído inconsolável na direcção da sua casa sem as histórias. Felizmente, pouco depois um assobio interrompe o silêncio da tarde, um som agudo que transmitia tranquilidade, as obrigações para com a terra estavam realizadas por hoje, e o mais importante, ia devolver e trazer novas histórias. Desviei o olhar para a porta aberta ao fundo da biblioteca ambulante, lá vinha o José com o andar bambaleante a sacudir o corpo deformado pelo excesso de amor que tem pela sua terra. De manhã na aldeia do Tubaral não pude ficar indiferente às mulheres, ao mesmo tempo que aguardam a carrinha do padeiro, também deixam um pouco dessa vigia para as histórias que uma ou outra levam para ler. Foram as palavras de umas para as outras, de tudo se falava, para elas e para os os outros da aldeia, o conflito na Ucrânia não lhes diz muito. Sentem aquilo que vêm na televisão, referem o aumento dos preços dos produtos energéticos, mas ainda não perceberam que a desordem está instalada globalmente. A luta armada está na Ucrânia, com a invasão russa, mas a guerra é mundial.

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O dia amanheceu cinzento, a Europa está a ser violada nos seus direitos mais básicos humanos, a Ucrânia está a ser invadida pela Rússia. Um miserável, não tenho outra expressão para o referir, o homem que ordenou o ataque a território ucraniano. O conceito de justiça em Putin, em educar o seu povo na sociedade actual não acontece, pelo contrário endurece-o no mal. A inquietação não é generalizada nas viagens e andanças pelas aldeias da minha terra, o quotidiano mantém-se, nas hortas cada vez mais se vê a terra sem ervas, canteiros aprumados, semeiam-se batatas, plantam-se hortaliças. As mulheres e os homens não viram costas à terra que possuem, curvados revolvem a terra dura como se não houvesse amanhã.  A chuva também está anunciada, há que tirar vantagem, uma corrida contra o tempo, o que não conseguiu a diplomacia na questão ucraniana. No café da aldeia não desviam o olhar da televisão, as notícias vindas da Ucrânia caiem como se fosse água a escorrer de uma cascata. Também no terreno, a invasão progride o sangue civil e militar começou a esvaziar-se, abatidos pelos projécteis russos, inocentes e militares que defendem o país nada podem fazer contra a imprudência de Putin.  As histórias hoje ainda não tiveram a presença de leitores, não é certamente tudo isto que nos está a envolver, é impossível ficarmos desassociados deste acontecimento, que está a travar a aproximação dos leitores. Mas não coloco de lado que esta comunicação massiva os mantenha em casa focados na actualidade. A informação escrita cada vez mais está a ser ultrapassada pelas televisões, os conflitos são seguidos nas casas de cada um de nós, no sofá, acompanhando uma refeição. Os momentos excessivamente importantes são vistos em tempo real, eu próprio na biblioteca ambulante estou a vê-los, como é possível estarmos tão próximos e ao mesmo tempo afastados e impotentes. É nas bibliotecas que os pensamentos, ideologias, e pontos de vista da humanidade convivem uns com os outros sem divergências de parte a parte. Também elas desde a antiguidade foram alvos de homens ambiciosos, saqueadas, bombardeadas, na tentativa de silenciar as memórias, os testemunhos escritos, espoliadas dos seus acervos para os que vêm a seguir não poderem ter acesso ao conhecimento. A biblioteca ambulante no seu vai-vem pelas aldeias do seu território, é um alvo, dos olhares curiosos, daqueles que aspiram alcança-la, e vá lá saber-se porque ainda não a agarraram, e dos que ainda não perceberam o motivo porque é parte do acontecimento nas aldeias.

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Todas as vezes que a biblioteca ambulante se desloca à vila do Tramagal, as sucessivas curvas e contracurvas originam sempre um turbilhão nas histórias. Esta impetuosidade no traçado da estrada, desordena sempre as histórias arrumadas nas estantes, O ruído reprimido ao caírem no chão é o primeiro indício de que algo não está correr bem lá atrás, o pouco espaço que se ganha, desencadeia a desordem, autores que nunca se cruzaram, agora estão abraçados, assuntos geograficamente afastados, sem vergonha ficam deitados uns sobre os outros, mais parece um festim literário. Letras, palavras e frases misturam enredos com a descrição da vida de pessoas, a geografia confunde-se com a medida dos versos, está tudo sem orientação. Rapidamente, no final da viagem as histórias voltam ao seu lugar, inebriadas pela confusão onde estiveram, algumas ficam mais inclinadas, de pernas para o ar, mas nada que desperte o olhar conhecedor dos leitores.

22 Fev, 2022

Tudo pode...

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Só o vento anda por aqui, as vozes que ouvia calaram-se, não sei onde foram, também não interessa. Preocupante é a presença da biblioteca ambulante no largo da aldeia, não causar influência naqueles que dão som ás vozes. Os leitores da aldeia não sei por onde andam, os diálogos que o vento trouxe até à biblioteca ambulante podiam ser de alguns deles, não lhes vi os rostos, desconfio que não eram de nenhum leitor.  Aqui estou eu a ouvir, o relógio da torre sineiro da igreja a bater as três horas da tarde, as histórias permanecem paradas, expectantes em relação à continuidade no itinerário, ou se ficam na aldeia, na casa de um leitor. Tudo pode acontecer até pôr o motor da biblioteca ambulante a funcionar e pisar o acelerador numa viagem com destino a outra aldeia. Não quero defraudar as histórias minhas amigas, mas prevejo o insucesso neste princípio de tarde na aldeia da Concavada. Não tarda, vou na estrada que me leva, o rádio na sua emissão será o passageiro que não vejo, mas que nunca me deixou de acompanhar para onde fosse. A música, os radialistas muitas vezes substituem os romancistas, na ausência daqueles que os lêem, são os primeiros e as suas histórias que me fazem rir, algumas vezes chorar.

21 Fev, 2022

Perdeu-se...

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O calor inapropriado para o mês de Fevereiro é uma afronta a quem se sente bem com temperaturas amenas. O sol amedronta o frio e a chuva, cada vez mais se sobrepõe a tudo e prolonga o reinado exercendo um totalitarismo nunca sentido. Não quero acreditar que esta ausência de democracia no clima actual seja a consequência para a debandada de leitores na biblioteca ambulante. Nos dias em que a chuva entrava em conflito com o astro brilhante, acontecimento há muito distante, e o bloqueava com o escudo de nuvens escuras, também este período afastava leitores. Perdeu-se um mediador no conjunto dos fenómenos meteorológicos, estará também a biblioteca ambulante a fracassar na reacção ao momento que estamos a presenciar?

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Na estrada que me trouxe nas viagens e andanças, as nuvens que a sobrevoam parecem peças de um puzzle difícil de terminar. Não está fácil como as ligar umas nas outras, são partes de uma história que ainda não acabou. Donde vêem, para onde vão, sem muito vento permanecem logo ali em cima de nós, imóveis. Se erguer um braço, quase as agarro, mas não quero apoderar-me de uma porção da história, tenho a curiosidade de saber o seu final. Se conseguir unir o quebra-cabeça que está diante dos meus olhos, assim como quem tece na folha branca, juntando as vogais, afastando palavras com espaços, afrouxando com vírgulas, travando no final das frases com o ponto final. Olhando bem as nuvens, elas movem-se num tear de fundo azul, a pouco e pouco um sopro de sabedoria de quem o manobra, faz com que estabeleçam comunicação entre si. Procede assim quem escreve, de um momento para o outro a folha branca deixa de o ser, agora é parte de uma história em construção. 

 

17 Fev, 2022

Não consigo...

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Enclausurado no nevoeiro, foi assim que o viajante das viagens e andanças percorreu na biblioteca ambulante o espaço da manhã. A estrada escondida, obrigou a mil cuidados a dirigir as histórias aos leitores. De tarde na aldeia de Martinchel, não aguento a teimosia do sol, sem a sombra da tília que por enquanto continua despida, as histórias muito unidas nas estantes querem livrar-se do apoio de umas das outras. Para isso só têm que aparecer leitores, o que é difícil de alcançar nesta aldeia, não é por irregularidade no acesso, a ponte para as histórias permanece ciclicamente no espaço mais atraente da povoação. Não consigo adicionar os dias que a biblioteca ambulante se tem demorado por aqui, em todos eles muito poucos ou quase nenhuns leitores, curiosos que me lembre não tenho para mencionar. Não será esta amnésia que me fará desistir, sempre que for dia de estar presente na aldeia, a biblioteca ambulante com as suas histórias mostrará persistência  no propósito de lhes abrir novos horizontes.

16 Fev, 2022

A conversa...

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A tarde acusa chuva, mas não passa disso até agora. Os leitores por uma razão ou outra não apareceram ainda, as histórias estão preparadas para que a qualquer momento possam partir, seguras nas mãos dos prováveis leitores, até a algumas casas próximas da biblioteca ambulante. Entretanto no Cabrito, na esplanada de um dos cafés, a voz alta dos homens sobrepõe-se a tudo. A guerra que está próxima, a EDP, a biblioteca ambulante e mais assuntos, rebolam de um lado para o outro, atirados pelas cordas vocais cansadas da nicotina dos cigarros consumidos uns atrás dos outros. As mulheres têm a fama, mas aqui os homens tiram bem proveito dos enredos desta comunidade. A conversa termina abruptamente, quando sob os olhares curiosos o viajante das viagens e andanças percorre o largo de uma extremidade a outra, entrando nos cafés para deixar jornais locais. Um método de cativar os mais indecisos, nem sempre traz os resultados pretendidos,  fica a mensagem de que a biblioteca itinerante não se esqueçe deles.

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O dia tristonho e um pouco de mais frio é sinónimo de poucos leitores na biblioteca ambulante. Os que aparecem, são aqueles, que em primeiro lugar está uma boa história que os ocupe e desocupe ao mesmo tempo do quotidiano diário. Descansar olhando as letras, seguindo as palavras, compreender, o entusiasmo, a curiosidade de como termina a página, o capítulo, a história. São momentos imperdíveis naqueles que adoram a leitura. Um exercício para a mente, uma viagem, mais conhecimento para quem lê. Por vezes estes resistentes são olhados de viés por quem os observa a entrarem na biblioteca ambulante, catalogados, talvez, por serem diferentes de todos os outros. Uma pontinha de inveja, não têm coragem de visitar as histórias, não querem fazer parte dos mexericos dos do costume. Talvez haja bullying a quem queira saber mais, não sei, mas é uma intenção que não devemos ignorar. A leitura é um refúgio, podemos não andar bem, um problema a incomodar, então na biblioteca poderá estar a solução, lendo podemos transformar o que nos atormenta numa saída para o que estava difícil de realizar.  Protejam-se, venham frequentar a biblioteca ambulante.

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