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Histórias à Beira Rio, viagens e andanças com letras pelas aldeias da minha terra

"Afinal, a memória não é um acto de vontade. É uma coisa que acontece à revelia de nós próprios." Paul Auster

Histórias à Beira Rio, viagens e andanças com letras pelas aldeias da minha terra

"Afinal, a memória não é um acto de vontade. É uma coisa que acontece à revelia de nós próprios." Paul Auster

A chuva continua...

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A chuva abundante não impediu o Gregório de comparecer na biblioteca ambulante, apressado para não submergir na água excessiva, mas necessária para dissipar o prolongado estio. O Gregório não tem falta de leitura, as palavras entram nele, como as águas do rio correm sem se deterem até ao oceano. A chuva continua a malhar na terra como há muito não testemunhava, exceptuando o leitor e as duas mulheres que finalizavam a compra de farinhas para os animais, noutro veículo ambulante para o efeito, não havia mais ninguém na rua. A tarde trouxe a bonança, deixou de chover, as cantigas dos pássaros são agora as que se ouvem. Trouxe a confiança para tirar os leitores de suas casas, abeirarem-se da biblioteca ambulante  seguindo o exemplo do Gregório, deixarem passar para dentro as histórias.

A primavera e a poesia...

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A primavera e a poesia nem sempre têm harmonia, renascer nos resíduos do inverno, reunir palavras segundo certas regras, das cinzas do tempo actual, também acontece. Fixar árvores, raízes brancas, pretas, amarelas é uma atitude para a qual se devia ter a percepção na existência da diferença e iguais no viver, o que na  inconsciência de alguns continua a ser inflexível. Um dia de viagens e andanças marcado pela esperança, de não perdermos a vontade de termos um lugar melhor para existirmos. Há pouco tempo existia um sentimento de temor pela escassa água armazenada nas barragens, na terra cultivável, percorria o horizonte de todos, até os menos atentos se pronunciavam, agora somos afortunados pela água que cai. A biblioteca ambulante debaixo das nuvens que mais parecem enormes reservatórios cujas torneiras abertas deixam escorrerem toda a água que armazenam, continua na sua missão de levar histórias. Ouço o arrulhar das rolas, a maneira de a natureza transmitir o desanuviar da chuva no princípio da tarde. Não se vê vivalma, a aldeia já tem pouca densidade populacional, e os  que restam não se deixam alcançar pela oportunidade de lerem as histórias. Mil e um motivos os levam a evitarem a biblioteca ambulante, mil e uma noites a tentar apreender as causas desta resistência à leitura. Serão necessárias muitas mais viagens e andanças, serão imprescindíveis mais pessoas, serão cruciais mais postos de trabalho. Não faltarão histórias para todos, não faltarão viajantes das viagens e andanças.

Palavras que gostaram de experimentar...

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Sem contemplações o vento expulsou a poeira, a nitidez está a regressar à normalidade. Na planície a manada não demonstra interesse naquilo que a envolve, com o focinho  e o olhar pousado na erva, avançam pela terra plana como se fossem cortadores de relva. Irrompendo com intervalos de curta duração o sol esforça-se para abrir à força a cápsula que cobre a aldeia, mas não passa disso mesmo, a densidade da cobertura é resistente. A tarde progride vagarosamente, as leitoras aproveitaram a mansidão do período para se sentaram com as histórias no regaço. Dão-lhes carinho ao mesmo tempo que conversam, não sei do que falam, talvez estejam a influenciar a mulher de pé a vir à biblioteca ambulante, conhecer as histórias. Não seria a primeira vez que leitores da biblioteca ambulante se aproximaram instigados por quem já a frequentava, estranham o espaço acanhado, rodeado de histórias. Finalizam a primeira visita levando uma, duas histórias, um pouco receosos, pela  possibilidade de lerem com este facilistimo que a biblioteca permite. Voltam outra vez, entranhados pelas palavras que gostaram de experimentar, daqui para a frente não param.

Abrindo ao meio...

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Sem usar óculos de sol, tudo o que observo é como se os tivesse colocado para proteger a vista dos raios solares. Assim está o dia em tons de castanho, na estrada, nas aldeias a cor pardo-acinzentado envolve a região. Levar histórias nesta atmosfera poeirenta não é diferente de as transportar nos dias sem terra no ar, as mudanças estão nas conversas dos locais, as poeiras são agora as protagonistas. Entram na biblioteca, olham para o exterior, como que a ler as costas de um livro para iniciar a conversa sobre o que ocorre na camada de ar que nos envolve. Misturando as conversas e os olhares atentos nas estantes, vão seleccionando as histórias que lhes irão trazer prazer nas horas de repouso. Abrindo ao meio as histórias, como quem divide uma laranja em duas partes, absorvendo de seguida o sumo das letras. Histórias doces e amargas são colocadas no pequeno balcão da biblioteca ambulante, para que os algoritmos que as identificam sejam metidos na arrecadação dos empréstimos, pelo viajante das viagens e andanças. Saem realizados, apesar de continuarem a reclamar da poeira que nos invadiu a todos.

 

A poeira entranha-se...

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A poeira teima em tornar menos límpidas as terras mais elevadas situadas a norte das viagens e andanças com letras. Não chove como aconteceu no dia de ontem, nem o frio consegue representar um papel de destaque, a manhã está perfeita, crescendo no meio da cantoria dos pássaros. No Souto, formando um pequeno círculo, um grupo de homens estão conversando. Têm tempo em abundância, o jornal que o viajante das viagens e andanças lhes entregou é lido com outra disponibilidade. Não fossem as hortas para lavrar ou cavar, arrancar ervas daninhas que despontam entre as plantas que se esticam para tentar agarrar algum raio de sol que se atreva a romper este pó voador, o andamento destes homens seria entediante na aldeia com tão pouco para distracção. A poeira entranha-se nas histórias, nos automóveis estacionados, até a máquina onde escrevo o texto tem de levar um sopro de vez enquanto para remover a terra trazida pelo vento. As histórias não planam, mas são conduzidas pela biblioteca ambulante, tenho pena que não se entranhem como estou a ver a poeira a assentar. Que as pessoas as cravassem  para nunca mais se livrassem das mesmas, que as usassem como instrumentos de conhecimento,  de retaliação e persistência. Só assim evitaremos que a poeira do tempo se transforme em escuridão.

O mundo mudou...

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O mundo mudou, as viagens e andanças pelas aldeias da minha terra continuam inalteradas, a tranquilidade prossegue na estrada que leva as histórias. Os animais pastam indiferentes às máquinas agrícolas, conduzidas por homens sempre a olhar na traseira do tractor, adivinhando o que poderá ainda chegar do lugar onde se levanta o sol, esventram a terra sem humidade. Um homem arremessa sementes na terra, noutra outro atira bombas, a discordância entre o nascer e o morrer é perceptível. Na soleira das portas as mulheres usam chapéus para se protegerem do sol, estarão esclarecidas, se as protecções serão suficientes para impedir que as sementes da morte cheguem às populações da restante Europa. Não podemos excluir este cenário devido à situação actual, o que sabemos de outras guerras é pelos livros, nos documentários, nas produções cinematográficas, que mostram como foi esse período negro da história. Nunca presumimos de estarmos porta a porta com a guerra, mais mortífera que as outras, usando armas que nos podem fazer desaparecer da face da terra. Um dedo pressionando um botão basta para sermos volatilizados, tal é a qualidade da violência a que chegamos nos dias de hoje. A biblioteca ambulante e todas em geral guardam muitas dessas memórias da primeira metade do século XX, nas histórias que transporta, mas não chega, têm que entrar, levar para ler e ver, depois questionar, considerar e renunciar que se repitam os mesmos erros no futuro.