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Histórias à Beira Rio, viagens e andanças com letras pelas aldeias da minha terra

"Afinal, a memória não é um acto de vontade. É uma coisa que acontece à revelia de nós próprios." Paul Auster

Histórias à Beira Rio, viagens e andanças com letras pelas aldeias da minha terra

"Afinal, a memória não é um acto de vontade. É uma coisa que acontece à revelia de nós próprios." Paul Auster

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A chuva regressou, com a temperatura a recuar hoje de manhã na aldeia do Souto. As folhas das árvores um pouco agitadas perante a incredulidade do tempo, e o som melodioso do canto dos pássaros são únicos no largo onde está a sede da Sociedade Recreativa e o Centro de Dia da aldeia. Ninguém atravessa o lugar, a curiosidade não os despertou, como aconteceu noutros momentos, na presença da biblioteca ambulante. Advinho que as histórias não vão ter o calor das mãos dos leitores aquecendo as letras, pondo-as em movimento a formar palavras e frases. Ficarão reservadas nas estantes comprimidas umas nas outras, assim as caligrafias não desfalecerão enquanto persistir a privação dos laços afectivos dos leitores.

 

 

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Dia da Ascenção, ritual cristão, mas também com ligação às tradições pagãs, no cristianismo é a elevação de Jesus ao céu depois de ter sido crucificado. As crianças da escola da aldeia do Pego, surgiram ao virar da esquina, todas traziam um raminho composto de flores silvestres, para guardarem nas suas casas até ao próximo ano. Entraram na biblioteca ambulante uns atrás dos outros olhando as histórias com curiosidade, mais alto, puderam tocar nas capas que envolvem as aventuras, os mistérios, as primeiras letras. Comunicação esta que poderá trazer novos leitores no futuro à biblioteca ambulante, não posso determinar se virão, tenho esperança que alguns se aproximem, trazidos pelos pais, importantes neste processo de união, são eles que comandam o rumo desta gente nova. Mais que os filhos, são eles que têm de ter a capacidade de perceberem o quanto é necessário habituar os rebentos à leitura. E é neste período que muitas vezes acontece o contrário, deixando para trás a oportunidade de evoluírem no prazer de ler, isto porque os pais não desfrutam desta satisfação. Também eles enquanto jovens não foram impulsionados a descobrir, através da leitura. Ocasião perfeita para modificarmos consciências, passarmos a leitura e os que a ambicionam mesmo que não seja de um modo directo a um patamar superior.

 

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Mata-se a sede, exploram-se as novidades da aldeia, tudo isto a acontecer sob o olhar das histórias na biblioteca ambulante. Dispostas nos seus lugares, as histórias ambicionam que os homens se juntem no espaço onde estão, muito mais há para conversar. Aqui conseguem ir para além da aldeia que os viu nascer, partir e acolher definitivamente, tantos foram os anos afastados da mesma. Assuntos que os porão a falar uns com os outros diariamente, conhecerão pessoas, cidades, aldeias como aquela onde estão, alguns possivelmente regressarão aos sítios onde trabalharam, casaram e constituíram família, recordarão onde também foram felizes. Descobrirão sentimentos que nunca ousariam discutir entre eles. A biblioteca ambulante é um mesclado de emoções, saberes e paixões,  na verdade é uma viagem no tempo.

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Há momentos em que o vento dá guinadas, como se estivesse a ser conduzido por alguém desorientado na direcção que tomar. Não sei se fecho as portas, se mantenho só uma aberta, e destas a qual, a da retaguarda ou a lateral da biblioteca ambulante. Neste período são as folhas que voam, as revistas empurradas violentamente do escaparate, a ventania está insuportável. A imprevisibilidade da meteorologia do dia é semelhante à vinda até às histórias de leitores, até ao momento desmotivante. Ao contrário, a biblioteca ambulante está determinada a eliminar a perturbação que algumas pessoas têm em relação à leitura. Insaciável a devorar o asfalto das estradas que a levam às aldeias a levar histórias. Há histórias com sorte, passam os dias nas casas de gente estranha, quase sempre a relação de quem escreve e de quem lê termina de um modo íntimo. Os leitores são assim com as histórias,  não passam uns sem os outros, um relacionamento para a vida.

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Está uma tarde morna com nuvens no céu, umas atrás das outras, empurradas pelo resto do vento da manhã, a dizerem que poderá chover. Não acredito, sem pararem não vão deitar cá para baixo alguma água que transportam. A biblioteca ambulante é uma nuvem cheia de histórias, impelida pela vontade do viajante das viagens e andanças a levar enredos, permanece nas aldeias despejando-as a quem as queira ler. Há quem goste de se molhar pelas letras, ao ponto de ficar encharcado de palavras, também os há, que nem os pingos gostam de receber, não sabem como é bom ficar inundado de histórias. Após uma molhadela, aptece sempre mais outra, frontal, de relevo, convectiva, ácida, todas diferentes, mas todas molham, sem força, longas, curtas e com muita energia, e as que contaminam com tantos sentimentos embebidos.

 

20 Mai, 2022

Ganharam prazer...

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O ar quente apoderou-se das histórias no interior da biblioteca ambulante quando as portas se abriram. Pouco tempo se manteve cálido, ao entrarem as crianças trouxeram a frescura da idade,  sorrisos de ingenuidade, encheram o lugar de felicidade. As histórias não paravam de andar de mão em mão, grandes de mais para tamanha tarefa, tinham dificuldades em pesquisarem letras e palavras. A professora ajudava como podia, de um lado para o outro abrindo as histórias, libertando os bonecos que animam a organização das expressões e frases, quem estivesse atento podia ver a bonecada a divertir-se. Jogavam às escondidas com as letras, a correr atrás das palavras, queriam acompanha-las, só assim fazia sentido. Nesta brincadeira, as crianças foram-se envolvendo, ficaram quietas e ganharam prazer nas histórias que ouviam.

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Na sombra das histórias as leitoras examinaram o pequeno compartimento onde cabem as vozes do mundo inteiro. Suprimidas na oralidade muitas delas foram na escrita que atingiram a vitalidade merecida. Olharam com atenção, pesquisando em cima, em baixo, acreditando que encontrariam as histórias que traziam escolhidas há muito. Conseguiram alcança-las, foram elas, não foi o viajante das viagens e andanças que as guiou, sabem o caminho até ao local da permanência da biblioteca ambulante. Habituaram-se à regularidade das vozes que não se ouvem na aldeia que as viu nascer, agora que ultrapassaram metade da jornada das suas  longas existências, a leitura traz-lhes o saber que queriam ter colhido no início da desgastante caminhada. O trabalho precoce roubou-lhes o entusiasmo de aprender, na biblioteca ambulante recuperam o que a vida impediu, serem felizes a ler.

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Alguns pingos de chuva surgiram no vidro grande da biblioteca ambulante, no exterior possivelmente não os sentiria, tal não é o impacto dos mesmos, nem os oiço a bater. Um manto de nuvens cobre densamente a aldeia da Amoreira e tudo o resto à sua volta. Os ramos das amoreiras, cheios de frutos, movimentam-se de um lado para o outro, como tivessem a acenar às histórias. A opulência destas árvores cria sombra suficiente para abrigar os enredos da aldeia quando o sol está no auge, o que não acontece no dia de hoje. Até ao momento, os leitores não se pronunciaram, muitas vezes é o viajante das viagens e andanças que os relembra telefonando, invocando a sua presença. Expressam gratidão quando entram apressados para seleccionar novas histórias, uma sesta inesperada, a noção do tempo quando cuidam das hortas, são lapsos que acontecem uma vez por outra. Não fosse a vontade do viajante das viagens e andanças na presença de leitores, acostuma-los às histórias, as adoptem, que sejam inseparáveis na vida, os dias seriam aborrecidos pela privação de escutar as histórias deles.

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A sombra da laranjeira não alcança a biblioteca ambulante, estacionada no pequeno largo na aldeia do Tubaral. Isto é, são as únicas que ocupam o espaço, não há ninguém por perto a não ser um cão empoleirado no muro que ladra desalmadamente ao viajante das viagens e andanças. Um estranho próximo do limite do lugar que protege, num veículo cheio de histórias, aos olhos do animal é muito diferente daquilo a que está habituado a presenciar. As mulheres que sempre estão aqui, sentadas aos pés do muramento de alvenaria, não estão presentes a aguardar a padeira, também ela não chegou até ao momento. Onde andarão todos na aldeia? Onde andará a padeira que chega sempre com um sorriso a enganar o cansaço após horas a distribuir pão? Viajantes nómadas exibindo boa cara aos olhos de quem os espera só assim conseguimos aproximarmos-nos de modo que se afeiçoam, que ganhem confiança. A temperatura acompanha a subida do sol, mais logo não se pode permanecer no largo S. João de Brito, desde que o café que aqui existia fechou à boleia da pandemia, o centro da aldeia nunca mais foi o mesmo, morreu. Excepção é o período da permanência da carrinha do pão, e da biblioteca ambulante, é um mistério esta ausência. As circunstâncias do momento não fazem sentido numa manhã alegre, apontada a um fim de semana próximo, que ficará sem histórias na aldeia.

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A atmosfera campestre está deliciosa esta manhã na aldeia da Foz, um vento suave trouxe tranquilidade às viagens e andanças. O calor agonizante dos dias anteriores não se faz sentir, pelo menos neste período do dia. Após a chegada a primeira ocupação do viajante das viagens e andanças foi ir ao pomar colher laranjas, convidado pela proprietária. Caminhando com atenção entre as hortaliças aprumadas na terra impaciente por água, segurando uma caixa nas mãos, pus-me debaixo da laranjeira, não terminei enquanto o recipiente rectangular não ficou cheio. Libertei a fruta do cordão que as unia à mãe laranjeira, lembrei-me imediatamente do apresamento temporário das histórias nas estantes da biblioteca ambulante. As histórias geradas por aqueles que retiram satisfação  fazem-nas crescer empunhando canetas, expulsando a tinta no papel, ou batendo com dedos nos teclados dos computadores. Acabadas formam um monte de folhas escritas, passam a um processo de revisão, impressas, encadernadas dão origem a objectos fáceis de transportar e saborosas a consumir. Assim são as laranjas no processo industrial, retirar o melhor prazer de as consumir é mesmo retira-las do fio que as prende à progenitora.

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