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Histórias à Beira Rio, viagens e andanças com letras pelas aldeias da minha terra

"Afinal, a memória não é um acto de vontade. É uma coisa que acontece à revelia de nós próprios." Paul Auster

Histórias à Beira Rio, viagens e andanças com letras pelas aldeias da minha terra

"Afinal, a memória não é um acto de vontade. É uma coisa que acontece à revelia de nós próprios." Paul Auster

Na companhia das sardinheiras....

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Aproveitando a sombra da árvore, na companhia das sardinheiras, flores que dão o mote na primavera na cidade de Abrantes e aldeias da minha terra. As viagens e andanças ficam ornamentadas, as histórias estão mais cheirosas, a biblioteca ambulante um canteiro. Está composto o ramalhete para que o dia tenha leitores, que tragam vasos para colocar histórias com flores, que as dêem a cheirar, as ofereçam a quem as quiser e a quem demonstre o contrário. Plantemos histórias nas aldeias, aumentemos o número de leitores, intensifiquemos a rega libertando lágrimas de tanto rirmos e chorarmos ao olharmos as flores sempre vivazes. Não as abandonemos ao ponto de murcharem, não queremos páginas empalidecidas pela ausência de gotas líquidas, não cessemos de virar as folhas de uma flor com cuidado. Até na morte, na partida para a eternidade são flores que levamos e histórias que ficarão testemunhando a nossa passagem.

Os mais resistentes...

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No Tramagal, quando o sol estava perto de atingir o topo, foi o momento da pequenada visitar a biblioteca ambulante, hoje foram menos, o almoço na escola estava na mesa para alguns que não podiam esperar. Os mais resistentes acompanharam a professora que trouxe histórias que os deleitaram, lidas na escola, decifradas, cada uma à sua maneira por cada um que respondeu às questões colocadas pelas professoras após as leituras. Levam outras, escolhidas por eles, sempre com a permissão da docente. Ainda foram para o exterior, na sombra de uma frondosa árvore, folhear algumas que eles mesmo tiraram das estantes. A biblioteca ambulante, referência de como se deve iniciar as aventuras na leitura, a vontade é muita de ver a ilustração, tentar unir as palavras, que uns quaisquer pequenos danos que possam acontecer nas histórias não são nada, quando estamos perante futuros leitores.

Talvez aqui os leitores...

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O corpo protesta com a temperatura elevada, as histórias reclamam por leitores, o viajante das viagens e andanças revoltado pelo pólen que o incómoda a cada hora que passa. Um início de semana de contestação perante as realidades meteorológica, afastamento, e carácter incompatível de ser alérgico aos grãos microscópicos de cor amarela. Em Concavada, aldeia plantada à beira rio, só a esplanada do café atrai as pessoas. Situada no largo da aldeia, junto da estrada, locais e forasteiros que transitam em trabalho, acercam-se da mesma para repousar intervalando os quilómetros do asfalto abrasador a esta hora do dia. Refrescam-se e desandam, que o trabalho não pode esperar, as mulheres demoram-se um pouco mais, terminando e iniciando conversas umas com as outras. Só não há leitores para lerem as histórias da biblioteca ambulante, nas estantes desequilibradas umas sobre as outras, após a viagem, estão desiludidas por se manterem no mesmo sítio. Tal como os forasteiros o calor viaja para onde quer que vá o viajante das viagens e andanças com as histórias. No Pego, aldeia seguinte no itinerário da biblioteca ambulante, como uma sombra não largou o rasto das histórias, infelizmente para quem tem de se manter debaixo dos seus raios escaldantes. Talvez aqui os leitores tenham coragem de atacar de frente as descargas de energia, criando corredores neutros em direcção à biblioteca ambulante, depois será fácil de regressar, as histórias serão escudos que os protegerão dos traços de luz discordantes a quem os enfrenta.

 

O torpor...

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A manhã vai adiantada e os homens sentados debaixo da sombra de um chapéu na esplanada do Mercadinho da Fonte, não se engasgam no mata-bicho. Deixei-os a ler os jornais, assim fazem uma pausa, direccionei-os para a actualidade que nos rodeia. A biblioteca ambulante sempre que estaciona na aldeia das Sentieiras nunca se sentiu órfã de leitores, são sempre as mulheres que ganham aos homens na leitura, nunca chegam a completar os dedos da mão, nas aldeias da minha terra, eles pegam nos jornais, a literatura não os entusiasma. Os que lêem atiram-se às páginas das histórias como se o amanhã não regressasse, após a visita voltam para suas casas nunca menos com três a quatro histórias para apreciarem até ao próximo retorno. O torpor toma conta do viajante das viagens e andanças, são duas horas e meia, na sombra de uma oliveira em Casais de Revelhos, uma leitora já devolveu a história, trouxe-lhe a que me tinha solicitado. Aconchegou-a na mão, como quem transporta algo valioso, saiu enfrentado o sol violento. Próximo destino aldeia de Mouriscas...

O tempo parece estar atrasado...

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O sol não expressa compaixão pelos mortais esta tarde na aldeia da Casa Branca, no interior do café um grupo de aldeões, na sua maioria homens, aproveita para emborcar umas quantas minis frescas. Se pudesse também estaria com eles saciando a sede, conversando, tomando conhecimento do quotidiano da aldeia. Saber mais sobre a cultura hortícola, o que está germinando, os legumes que estão acabados e prontos para serem colhidos. Neste lugares afastados onde se pratica agricultura de subsistência, os diálogos quase sempre andam à roda das hortas. Os saberes de uns e outros misturam-se, transitam para os mais novos, comportamentos que se extinguem a pouco e pouco consoante as populações diminuem nestas paragens. No momento não estou preparado para este arrebatamento do calor, numa aldeia onde os leitores escasseiam o tempo parece que está atrasado, só na estrada é que corre mais apressado e sem paragens para quem a utiliza. Os homens saem juntos do café, prolongam a conversa na esplanada sem se sentarem, por fim abalam  para suas casas, ou talvez beber a abaladiça noutro estabelecimento. As histórias unidas nas estantes desesperam por largueza, que desfaçam a união levando-as, permitindo assim espaço entre elas para se aliviarem da temperatura incómoda. Haverá leitores que não tardarão a aproximarem-se da biblioteca ambulante, fiéis à leitura, comparecem sempre que aqui venho, pena é não haver mais interessados para se deslumbrarem com a magia das letras. 

Esperança e desesperança...

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O calor está de volta, em Martinchel a biblioteca ambulante aproveita a escassa sombra que a tília consegue dar com as suas jovens folhas. Os leitores e as pessoas da aldeia são preguiçosos ou não gostam de ler, poucos jovens, demasiada idade nas pessoas, não são impedimentos para se aproximarem das histórias. A biblioteca ambulante volta sempre ao centro da aldeia, no pequeno largo com uma fonte, à beira da estrada que não se cansa dos veículos que não a deixam de atravessar nos dois sentidos. Olhares curiosos, e apressados cujos destinos não cabem na página que estou escrevendo. As histórias sempre no mesmo sítio, a testemunhar as viagens e andanças dos outros, desejando que um dia um deles afrouxe ao ponto de se abeirar e levar uma, duas, histórias por esse mundo fora. Falar alto, dizendo que as histórias são de um acervo de uma biblioteca ambulante, que há muitas mais no seu interior que querem conhecer pessoas, e terras diferentes. É fácil de encontrar a biblioteca ambulante, trajando traços verticais coloridos, como se fossem livros arrumados na estante, letras grandes e pequenas. Sempre de portas abertas a pedir o comparecimento de alguém, umas vezes com multidão outras sem ninguém. A difícil existência de um viajante das viagens e andanças com letras, com as diferenças entre presenças e ausências, tristezas e alegrias. Esperança e desesperança nos dias quentes e frios pelas aldeias da minha terra.

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