O largo está ermo, ouço os pássaros, mas não consigo vislumbrar vivalma. O vento também se faz ouvir no alcatrão quente, um painel para os traços grossos, não passam de sombras dos fios que nos permitem comunicar, como o sombreado dos prédios que ladeiam um dos lados da rua que desemboca na área onde cada vez mais só o ar a ocupa. A chaminé quieta sobre um telhado desgastado, onde só o tempo passa pelas suas aberturas, parece querer dizer que a estrutura onde está acomodada já foi um lar. Ali, no interior das quatro paredes, ouviram-se risos, lamentos, vozes de quem se levantava com o sol e se deitava com ele. Sobeja a terra e a pedra, a arte da alvenaria, como esta, há muito mais pelas aldeias da minha terra, um legado deixado às gerações futuras. A sucessão não foi correspondida, o tempo de um momento para o outro ficou demasiadamente apressado, a alternativa de partir foi mais alta.
A manhã está resmungona em Alferrarede Velha. A Maria aproximou-se com ambas as mãos segurando sacos cheios, massas, enlatados e pão foram os que se deixaram ver. Disse que ia a casa e já regressava para devolver as histórias. Olhei, a Maria balanceava a sua pequena estrutura enquanto caminhava na direcção das histórias, trazia outro saco preso numa das mãos, continha as histórias lidas que seriam comentadas logo que entrasse na biblioteca ambulante. Gostei desta, esta não teve um final feliz, aquela, estava a ver que não a conseguia terminar... São quase sempre as palavras que a Maria diz, as histórias que lê são sempre rebuscadas oralmente, nunca lhe falta a vontade de alterar o destino aos acontecimentos. O vento tem momentos que expressa agressividade, não permite que o sol exerça o direito que se impõe à divisão do ano que atravessamos. Sem preferências as histórias só precisam de leitores para se sentirem úteis a levar mensagens, empreendimentos imprevisíveis, encanto, nas palavras expostas nas folhas sem fim. Agarradas nas brochuras coloridas, sempre inclinadas ou fora do lugar, pelas sucessivas curvas, paragens repentinas e outras situações onde as estradas que trazem a biblioteca ambulante às aldeias obrigam a submeter o viajante das viagens e andanças.
O Ti Chico comprava pão, ao mesmo tempo questionava o padeiro se queria comprar mel, tem para cima de cem colmeias, segundo ele. Ouviu do padeiro que o avô praticava o mesmo ofício, não conseguindo concretizar um possível negócio. Na aldeia as manhãs no largo são sempre assim, sentadas, as pessoas esperam pelo homem que traz o pão. A biblioteca ambulante não tinha calado o motor e o viajante das viagens e andanças já tinha descoberto a existência de um furo num pneu. A sorte esteve com ele, estacionado no lugar onde sempre se demora e onde os leitores se abeiram. As histórias podem estar descansadas, não falharão qualquer compromisso. Agora é o carteiro na sua carrinha, apressado a deixar envelopes nas caixas do correio, certamente são facturas para pagar, avisos de pagamentos em atraso. Houve envelopes que se entregavam num tempo já longínquo, os que traziam folhas escritas, com letras arrumadas, algumas vezes desenfreadas por acontecimentos menos bons. Muitos libertando essências, para quem lesse a correspondência, sentir-se mais próximo de quem lhe enviava a saudade ou o sentimento. Quantas histórias terão nascido deste ir e vir das palavras transmitindo emoções, descrevendo lugares, empurrando a vida das pessoas de então. A biblioteca ambulante não entrega correio, mas entrega histórias, muitas delas foram geradas pela troca de correspondência, cresceram e amadureceram, para serem lidas por todos. Recebe entusiasmos, tristezas, demonstrações de confiança por parte daqueles que estão isolados, vivendo na solidão, envelopes vivos, que se abrem para despejar o que lhes vai na alma.
Ontem foi um dia trágico nas viagens e andanças, ontem as luzes traseiras do veículo longo que seguia à frente inflamaram de um vermelho acentuado, um grito de aviso para o que aí vinha, uma travagem brusca com as histórias aflitas por saberem o que estava a acontecer. Ontem os meus ouvidos foram atraídos por um estrondo, depois a desordem, uma amálgama de sobras no ar, poeiras e fumo, um automóvel quase planava, terminando o pequeno voo logo ali tão perto. Ontem dois anjos desceram e levaram duas almas muitos antes de tudo se dissipar, só o fumo e o barulho do automóvel que teimava em acelerar, sem saber que foi a sua última viagem. Um silêncio ensurdecedor, exceptuando o rádio da biblioteca ambulante, alheio, continuava a libertar notas musicais e vozes que cantavam, alertando que a vida continuava. Duas cabecinhas no banco traseiro não paravam quietas, à frente uma mulher esbracejava, abrindo muito a boca sem se perceber o que dizia, não precisava, eu via com os meus olhos. O tempo parou ou andou muito depressa. Corri, abri a porta, odores diversos, combustível, óleos, sei lá mais o quê, não descrevo o que vi, ficou para sempre na minha memória e todas as vezes que passar no lugar irá surgir. Com a criança mais pequena ao colo, andei de um lado para o outro, tentando acalmar, tentar perceber se estava tudo bem com o outro condutor interveniente, chegaram outros. A espera por auxílio nunca mais terminava, os telefones não se cansavam de chamar, repentinamente só se ouvia sons estridentes, assistência em todo o lado, um conjunto de mecanismos bem oleados para pôr fim ao que tinha acabado de acontecer. O viajante das viagens e andanças continuou a levar histórias, as pessoas nas aldeias aguardavam-no, foi difícil prosseguir, não podia desistir.
A manhã está refém das nuvens cinzentas, destacam-se as ervas secas, carregadas de um amarelo forte, o contraste é bonito de se ver ao longo da estrada que leva a biblioteca ambulante. Só a chuva se ouve a bater fortemente, as histórias estão assim sequestradas pela intempérie na aldeia da Atalaia. Os leitores que gostam de ler na praia fluvial, ou debaixo do telheiro ao final da tarde ao mesmo tempo que se refrescam com uma cerveja, não virão com esta massa de água a redemoinhar rapidamente. Uma brecha não muito longe trouxe uma clareira de céu azul, cujo o limite são nuvens que se assemelham a castelos. A chuva estagnou ao mesmo tempo que o padeiro estacionou, repentinamente onde não havia ninguém, formou-se um ajuntamento pelo pão. Mesmo ao lado, as histórias anseiam ser rodeadas por aqueles que as queiram levar, serem opções no género literário, pelo tamanho das letras, ou pela quantidade de folhas, para aqueles que as procuram. É assim que escolhem o pão as mulheres que se abeiram da carrinha do padeiro.
Novamente na estrada a levar histórias, após uns dias a comunicar com a pequenada nas Festas da Cidade de Abrantes. Não é de todo a atmosfera onde o viajante das viagens e andanças e a biblioteca ambulante se dão melhor. É a pisar o alcatrão, a permanecer nas aldeias e lugares, rodeados pela charneca, pelas pessoas dos sítios remotos. Nos dias quentes, nos dias frios, colados ao meio rural, cravados na terra deles. Não é propriamente o país das maravilhas, pouca densidade populacional com faixas etárias elevadas, pouca capacidade para ler e escrever, são obstáculos demasiados para as histórias se fixarem. Contrariedades ultrapassadas com a teimosia da presença da biblioteca ambulante, alguns cedem perante o desejo descontrolado de quererem ver as histórias unidas. Enchem-se de coragem penetrando no espaço mágico, olham para um lado e outro, tocam ao de leve nas brochuras que guardam as palavras encantadas. Saem apertando-as contra o peito, protegendo dos olhares o que irão ler, o que relatarão aos outros de experimentar a sensação agradável da leitura.
Hoje vi uma lebre a atravessar a estrada, não deu para perceber se corria ou saltava, tal foi a sua súbita aparição. Como surgiu, desapareceu apressada para a floresta, aflito fui à história verificar se a lebre estava na corrida com a tartaruga. A lebre dormia e a tartaruga vagarosa lá ia, não me deixou fechar o livro sem uma piscadela de olho, como a querer dizer, temos que ser persistentes no que pretendermos alcançar. A tartaruga e a biblioteca ambulante, ambas a correr cada uma à sua maneira, devagar, de aldeia em aldeia. Uns dias com leitores, noutros sem leitores, nunca desistindo de viajar a levar histórias, a captar novos leitores.
A história espreita a tarde a tentar alcançar quem atravesse a rua. Mas só o vento está na aldeia, traz histórias dos lugares por onde passou. Pôs as árvores a dançar no vale, os ramos rodopiam de um lado para o outro, como as saias das bailarinas. O vento dançarino dança com todas as árvores ao mesmo tempo, sussurando com uma, com outra, elas ficam tontas com o que lhes diz, mas também do fandango improvisado ficam sem tino. O vento está enamorado, as folhas das árvores soltam-se de tal maneira que entram na biblioteca ambulante, convocando as histórias a libertarem as letras. Com este baile o vale fica encantado, são as histórias, as árvores e o vento a dançar, a chamar as pessoas a confiar.
A padeira não demorou muito tempo, após a biblioteca ambulante a ter ultrapassado, não houve corrida nenhuma, uma mulher com um andamento pesaroso vai na direcção do largo. Pouco depois juntaram-se mais, a padeira estacionou, como se tivessem molas a impulsiona-las, levantaram-se ao mesmo tempo com os sacos na mão. Rapidamente ficaram cheios de pão, voltaram a sentar-se, segundo elas houve orvalhada pela madrugada, uns chuviscos fizeram a sua aparição sem molharem a terra totalmente, ainda assim as nuvens continuam a tapar o sol na aldeia. A solidão é companheira das mulheres, recordam os seus homens que partiram, as palavras que lhes deveriam ter proferido, mas que não foram expulsas nos momentos de agonia, nas derradeiras horas no caminho onde não se avistava o final, mas do qual já não se podia voltar atrás. Não há leitores para levar as histórias, há histórias para ouvir e levar na memória.