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Histórias à Beira Rio, viagens e andanças com letras pelas aldeias da minha terra

"Afinal, a memória não é um acto de vontade. É uma coisa que acontece à revelia de nós próprios." Paul Auster

Histórias à Beira Rio, viagens e andanças com letras pelas aldeias da minha terra

"Afinal, a memória não é um acto de vontade. É uma coisa que acontece à revelia de nós próprios." Paul Auster

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A porta escancarada para o antigo acesso que levava água, memória de um passado muito distante, não significa que os desejos às acessibilidades sejam espontâneos.  Neste momento, há  passagens para quem queira desfrutar de outras águas que matam a sede de conhecimento. Difíceis de derrubar, as portas para alguns resistentes, continuam difíceis de concluírem a façanha de iniciarem o desafio na corrente das letras. Contornar os declives os meandros,  evitando areias no leito onde poderiam encalhar e ficar sem reacção, este rio de palavras nasce no interior do homem que escreve, flui do aparo, unindo-se no mar das histórias. Não é complicado, aprendendo a gostar de ler, nunca se afogarão nas histórias da vida.

 

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Os panos dos chapéus de sol esvoaçam como se quisessem levantar voo, como muitas pesssoas da aldeia o fizeram. A biblioteca ambulante vai pousando aqui e ali, nas aldeias, umas com leitores, noutras nem por isso, um, dois, são os números que fazem levantar voo as histórias. Empurradas pelo vento que nasce na charneca, chegam às partes mais distantes do território que abrange o itinerário. Há dias de sorte, onde o tempo é apressado, os leitores, a leitura comentada, conversa mexericada, não se dá por ele a passar. Outras vezes espera-se que ele venha, chega devagar e parte sem firmeza nenhuma. São momentos penosos, não se vê ninguém, não fossem as paredes brancas das casas a sobressair e a descansar o viajante das viagens e andanças, a prometerem que da próxima visita, será diferente. É sempre assim a partida, de que algo bom acontecerá, leitores com histórias resguardadas no braço, esperando a biblioteca ambulante, entrando puxados pela curiosidade, admirados com a quantidade de histórias manifestadas nas estantes.

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Nas aldeias que se cruzam na passagem da biblioteca itinerante, as ruas mais importantes estão enfeitadas com fios que as  atravessam perpendicularmente de um lado ao outro. Nestes, triângulos coloridos, pendurados, seguidos uns aos outros, balouçam a informar os forasteiros que a aldeia está em festa. Muitas  destas ornamentações é o que fica dos festejos já realizados, sobrevivem as memórias dos dias alegres, dos filhos que estiveram presentes, dos desconhecidos que passaram a ser amigos. Das noites a dançar, empurrando o cansaço ao limite, a comer e a beber sem ter fome e sede, as festas são assim, demasiadas em tudo.  Sobretudo, continuará a esperança de que para o ano haverá festa novamente, na aldeia onde estou a festa terminou ontem, na rua onde tudo acontece, não se vê quase ninguém, o sol caminha para o seu local mais alto sem ninguém que o queira agarrar. As histórias estarão assim orfãs de leitores, não sei, esperarão por eles, talvez quem não tenha hábitos nocturnos possa romper a dormência da aldeia, e chegue cheio de vontade.

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O sol maltrata o viajante das viagens e andanças no bairro da Encosta da Barata. Ninguém se atreve expor o corpo para se dirigir às histórias, não querem aprender com a leitura. Houvesse curiosidade, leriam sobre a perigosidade da exposição ao sol. A leitura ensinava-os a protegerem-se, atrever-se-iam a aproximar-se da biblioteca ambulante para outras leituras. Bem os vejo a caminharem na direcção do café, ar condicionado, cerveja fresca, conversa gratuita, bem melhor do que estar sob os 45º graus com as histórias. Encosta Viva como são designadas as várias actividades que ocorrem  neste bairro, Encosta triste no que respeita à leitura, população jovem, muitos com filhos, mas com poucos hábitos que lhes possibilitam ser empreendedores e adquirirem mais instrução. Mercados, feiras, torneios desportivos, não sei mais o que se realiza neste local, infelizmente os livros, as histórias não são suficientemente importantes para a dinamização do BAIRRO.

 

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Há festa na aldeia, no Souto os preparativos avançam na montagem do palco que irá receber os artistas. Entre diálogos animados, gargalhadas à mistura, idas ao bar da associação para matarem a sede, debaixo do sol  que já expressa tirania, andam voluntários, quem pertence à comissão organizadora da romaria, de tronco descoberto, transportando aos ombros compridos tubos. As alvenarias que cercam as casas à beira da rua que leva as pessoas à festa, caiadas de um branco imaculado. A população aumentou que o digam os automóveis estacionados, muitos matriculados em vários países europeus. Pressinto a quantidade de histórias que serão narradas pelos que chegam, pelos que continuam, sentados à mesa degustando refeições requintadas, a ocasião exige. Regressar ao passado, aos que já não podem estar presentes, a oralidade no seu melhor entre velhos e novos, aproveitar ao máximo a família. A biblioteca ambulante despede-se da aldeia com um sentimento de satisfação, os leitores não compareceram, estão felizes, as histórias voltarão, eles também.

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"Estou aqui" é o que está escrito no objecto do canto superior direito da página de rosto do livro, insignificante para muitos, desnecessário para outros, de grande importância para quem gosta de ler. Um farol num mar de letras que ilumina quem queira chegar ao final de um capítulo, ou mesmo de uma história. Um astrolábio que guia os leitores para definir a latitude e longitude do objectivo proposto quando se iníciam viagens longas ou curtas nas ondulações das páginas de um livro. Foi a preocupação de uma leitora que me advertiu, através de um e-mail para verificar se o seu marcador de páginas tinha ficado numa das histórias que tinha devolvido. Afoito, meti mãos à obra tentando encontrar o precioso artefacto, no meio das histórias, folheando paixões, homicídios, mortes, e sonhos. De repente, "estou aqui", lá estava ele marcando a página, a partir deste momento, reflecti na relevância do marcador, de papel, pequenas folhas de árvores, um filete de pano, o canto superior da folha dobrado (infeliz ideia), todos servem para orientar quem se atreve a navegar no oceano da literatura.

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A sombra da oliveira não se estende o suficiente para proteger as histórias da atroz temperatura do sol. Os dias nas aldeias da minha terra nesta época do ano são quase sempre infernais, só a resiliência de alguns leitores, atenuam o calor bravio. É por eles que a biblioteca ambulante consome o alcatrão das pequenas estradas que levam as histórias. Também o é pelos outros que a espreitam, ainda sem afoiteza para se aproximarem, a curiosidade é evidente. Todas as vezes que a biblioteca ambulante estaciona nas aldeias, não há quem a observe de cima abaixo. Surpreende os que vêm de férias, os que deixaram as aldeias para residirem e trabalharem no estrangeiro e eventualmente os mais distraídos. Na estrada cruzando outros veículos, muitas vezes os olhares destes é de surpresa quando percebem quem circula na sua frente, a ultrapassar ou no sentido contrário. Muito se menciona o declínio da leitura, mas a biblioteca ambulante desconcerta as pessoas quando a encontram. Vamos lá compreender isto!

11 Ago, 2022

Uma provocação...

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No regaço do bairro as histórias tentam abrigo nas fracções dos prédios que preenchem o que foi em tempos, hortas, olival e mais para trás o local onde existiu um convento. Saíram os monges, voltaram outros, famílias encaixadas umas nas outras que não dão importância às histórias que os informam da importância histórica do lugar. São poucos os que desafiam as palavras, entram no café, sentam-se na pequena esplanada defronte da biblioteca ambulante e não se passa nada. Uma provocação para o viajante das viagens e andanças, que se levanta imediatamente. Sem receio, distribui pelos presentes surpreendidos pela audácia, jornais e revistas. O espanto rapidamente se esgota, percebem que a aproximação espontânea não tem maldade. Foi só para os pôr a ler um pouco, remove-los da monotonia de observarem o tempo a passar, dar-lhes autonomias que os façam ser pessoas mais informadas.

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A luz brilhante do sol em Martinchel não atrai leitores à biblioteca ambulante, junto das tílias as histórias protegem-se na sombra destas árvores. O odor que as suas flores libertam não se faz sentir ainda, não estão prontas para as infusões que abrandam a velocidade, muitas vezes furiosa das pessoas. A leitura não tem cheiro, apenas na imaginação de cada leitor, destapando as brochuras dos livros solta-se a fragrância  das folhas causada pela impressão das letras. Continuando, caminhando, letra a letra. palavra a palavra e por aí adiante, conquistando as páginas, começa-se a gostar de ler. Tudo ao redor desaparece, a rapidez a inquietude, somente aquele objecto que se transporta para todo lado, sem necessidade de password, atraí. A biblioteca ambulante tem imensos aromas oriundos dos lugares mais distantes, alguns dos quais nunca iremos conhecer a não ser pelas histórias que leremos. Venha ler, sentir a biblioteca ambulante.

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Na aldeia das Bicas a temperatura está como a água na panela para a sopa. Os leitores e as leitoras  trouxeram os ingredientes para o caldo de letras, misturados, mexidos e temperados darão colheradas saborosas de leitura. As palavras e as frases serão engolidas sem insistência, o contrário acontecia quando éramos pequenos, as mães segurando a colher cheia, contando histórias para abrirmos a boca. Mas as histórias pedem mais tranquilidade, as letras não se esgotam na biblioteca ambulante, podem sorver a sopa na colher devagar, saboreando enredos, cheirando os odores das plantas que constituem as substâncias que compõem o caldo. Tal e qual os assuntos que dão forma às histórias, imaginava eu o que uma panela de sopa pode oferecer, um livro aberto a quem o queira descobrir.

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