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Histórias à Beira Rio, viagens e andanças com letras pelas aldeias da minha terra

"Afinal, a memória não é um acto de vontade. É uma coisa que acontece à revelia de nós próprios." Paul Auster

Histórias à Beira Rio, viagens e andanças com letras pelas aldeias da minha terra

"Afinal, a memória não é um acto de vontade. É uma coisa que acontece à revelia de nós próprios." Paul Auster

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A chuva que está desabando na estrada podiam ser palavras, uma compilação de escrita, de oralidade. Simultaneamente a neblina não consente muita visibilidade, mais parece um mata-borrão a estancar a água escorrendo em todo o lado. Esta torrente tem um sentido, formam-se palavras apressadas, as próximas ou incompatíveis umas com as outras, todas galgam a charneca aos trambolhões na mesma direcção. Todas querem chegar umas à frente das outras, uma corrida desenfreada para serem usadas no arranque das histórias. A biblioteca ambulante com a porta grande aberta recolhe-as tal e qual  uma baleia alimentando-se do krill, podemos chamar-lhe reservatório, onde as palavras entram para ganharem ordem e vitalidade. Inumeráveis são as palavras iniciando histórias, brilhando nas cantigas, poetizando páginas, provocando desconcerto quando as lemos. Sejam palavreadores apalavrando com a leitura das palavras.

 

 

 

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O adro da igreja está vazio, uma página em branco na história não é bom sinal. Ausência de pessoas é  carência de palavras, os crisântemos de odor forte adornando a porta do templo iludem os forasteiros. As palavras rodopiam no ar impulsionadas pelo vento suave, não se vêm, aos ouvidos do silêncio clamam por gente ledora. Os fiéis não propagam as palavras, estão enclausurados no tempo, presos na luz brilhante das telas. Luz redentora, traidora das palavras, crentes tocando o infinito, claridade que emana fantasia artificial. Não sabem que as palavras são fantásticas e expontâneas, o traço, a forma, letras diferentes, unidas umas às outras criando sonhos, ilusões nos seus seguidores. Têm luz capaz de redimir, de salvar os que se afastaram, quem não acredita. Entrem na biblioteca e testem, conheçam as histórias.

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O largo tem pessoas, sentados sob a esplanada que acompanha o desvio que a calçada tem para a entrada da rua ser ampla. Defronte, estão mais mesas e cadeiras ocupadas por mulheres, falam sem parar, raspando pequenas cartolinas da sorte. O homem que assa os frangos, vende hortaliças, flores e sei lá mais o quê, arruma o negócio na carrinha sem tirar o cigarro da boca.  Acompanhado por outro que tem a totalidade do rosto coberto por uma espessa manta de pêlos, sobressaindo o cigarro ainda por consumir. As histórias não são novidade por aqui, extraordinário seria entrar na biblioteca ambulante um ou mais leitores. Sei que os há, estarão de costas voltadas com a leitura, poderão estar numa abstinência à mesma, para depois voltarem determinados no próximo dia em que a biblioteca permanecerá na aldeia. A tarde amistosa convida a caminhar nos trilhos em direcção ao rio, o mesmo onde o pai da pessoa mais importante nascida na aldeia foi arrais num barco. António Botto tem o seu busto num pedestal de granito, olhando a estrada que traz e leva forasteiros, a que um dia o levou para sempre. Pequena no tamanho a aldeia é enorme na conservação da memória do seu filho mais ilustre.

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As azeitonas estão pretas nas oliveiras, o fumo das chaminés foi denunciado pelo odor que não deixa ninguém indiferente. A tarde amena não aguenta o fogo da lenha a arder nas lareiras, o frio não se impôs para tamanha ousadia neste outono chuvoso. Os ossos dos velhos não resistem à queda das folhas, eles e as árvores necessitam de energia, à noite a determinação da temperatura não é a mesma, persuadindo o frio a despertar. As lareiras passam a ser as rainhas das habitações nas aldeias, lugares de reunião nas noites compridas. Contadores de histórias emergem no calor do fogo, com as fagulhas quentes nas pontas dos dedos as histórias agasalham quem ouve. O frio desaparece,  de rostos vermelhos, e olhos brilhantes, incorporam o que lhes é dito, mouras encantadas, bruxas, lobisomens, lugares com história. Todas as aldeias os têm, os homens que as construiram desaparecem com o tempo, alguns resistentes ainda cá andam, gente para ouvir é que não.

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De regresso à estrada, nas viagens e andanças com letras, tirando vantagem da chuva que não cai. As histórias espreitam a estrada, iludidas pelos automóveis que transitam lhes dêem oportunidade de uma boleia. Na beira da estrada as páginas agitam-se fortemente, abanando nos dois sentidos, dando força à pouca intensidade da leitura. Mesmo assim nenhum abranda até parar, agigantam-se para que as vejam, sem sorte. Os ocupantes vão concentrados, não notam as palavras desprendidas para serem absorvidas pela rapidez e conseguirem ser levadas pelo destino de cada um. Idiomas alastrando por terra, ar e mar, linhas escritas, traços imaginários aguardando a tinta que dará forma às caligrafias, aos sinais do mundo. Na rua, a calçada é uma confusão de linguagens, apressadas, pausadas, vibrantes, silenciosas, sem tradução fixam-se. Misturam-se sem perderem o vínculo ao berço,  assumem outro local de nascimento.

 

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A chuva não abrandou, o rio de palavras continua enredado pelas aldeias da minha terra, afortunados são aqueles que a recebem. Aos poços que a recolhem, a água não lhes faltará, cheios, reflectirão as palavras que estão por ler, histórias mal contadas, vidas amarguradas pelo trabalho excessivo no campo. Rostos marcados pelo sol, mãos fendidas acostumadas à suavidade das páginas das histórias que os equilibram dos direitos que não lhes são atribuídos. Gente que não se reconhece demasiadamente, sábios nas suas aldeias, contadores de histórias antigas, experiências individuais evidenciadas pela oralidade. Um rio cujas margens estão unidas pela ponte que acelerou a biblioteca ambulante de uma margem para a outra, viagens sem fim. Aventuras interpretadas por incontáveis personagens invadindo a imaginação dos leitores.

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A rua está abandonada, ao longe, um, dois, chapéus de chuva, não vão sozinhos, alguém os segura, a chuva que se manifesta de uma forma excessiva não permite grande visibilidade. Podia ser uma vassoura agigantada, o vento empurra, e a chuva varre tudo à frente. As histórias estão órfãs dos leitores, não arriscam aproximarem-se da biblioteca ambulante, esta não se deixa abater com a torrente de água. As palavras hoje são escritas a lápis de água, no vale que divide a charneca,  um traço verde de erva ficará quando o sol voltar a brilhar. A tinta voltará a encher os ribeiros as ribeiras, tinteiros que irão alimentar aparos para reescrever a charneca amarelecida pela prolongada ausência do líquido. O junco crescerá nos terrenos alagadiços, navegará o tempo que for preciso a levar as mensagens de quem escreve, começou na antiguidade, actualmente na biblioteca ambulante. Que a chuva nunca acabe, que a tinta não se gaste, para as palavras não se esgotarem no vento.

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É bom ver chover, como se os livros abrissem as páginas esvaziando as letras, alcançado todos que estão sob as nuvens escuras há demasiado tempo. Não sou adversário das nuvens escuras que transportam no ventre esperança, e vida. As árvores ficam sem folhas com a aproximação do inverno, reduzem o gasto de energia para se protegerem do frio, não morrem. Os livros e as árvores são feitos do mesmo filamento. A história menciona os inúmeros ensaios para eliminar livros e árvores, piromanos, ou palavras incomodando tiranos e ditadores, fogueiras que motivam ainda mais quem gosta de escrever, de plantar o que lhe vai na alma. As palavras voltam a preencher páginas vazias, para agarrarem aqueles que as lêem, as folhas das árvores recomeçam a captar a luz, a realizar fotossíntese. O espaço de tempo transforma-se, com a sobrevivência das palavras e das árvores inalteradas.

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