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Histórias à Beira Rio, viagens e andanças com letras pelas aldeias da minha terra

"Afinal, a memória não é um acto de vontade. É uma coisa que acontece à revelia de nós próprios." Paul Auster

Histórias à Beira Rio, viagens e andanças com letras pelas aldeias da minha terra

"Afinal, a memória não é um acto de vontade. É uma coisa que acontece à revelia de nós próprios." Paul Auster

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Onde param as mulheres sentadas no banco de alvenaria, sempre que a biblioteca ambulante permanece no largo São João de Brito. Onde estarão as leitoras e as que aguardam pela padeira diariamente, não podem ter desaparecido subitamente. O largo vazou, não há histórias para ouvir, para dar, o mexerico, motor da oralidade de lugares estará danificado, ou será apenas coincidência ter vindo à aldeia novamente e deparar com esta desocupação. As hortas neste princípio de outono não necessitam de carinho excessivo, somente de olhares cheios de amor para as plantas crescerem saudáveis. A estrutura física de algumas também não permite riscos, isto da manutenção dos legumes tem muito que se diga. Flexões, agachamentos, segurar alfaias agrícolas, revolver a terra é esforço que aos setenta, oitenta anos e por aí adiante não deve ser exercido, mas teimosamente continua, por necessidade, por não quererem morrer. Seria fascinante que a laranjeira me confidenciasse a causa das mulheres não estarem por perto, as laranjas são verdes e pequenas, aspiram ser adultas e vestir roupa colorida como a menina do Moletom Laranja. Assim fosse se chovesse mais, sem água para os seus frutos a laranjeira está triste. Receio que não queira mencionar tal coisa, elas confiam-lhe os segredos. Debaixo dos ramos protegidas do sol pelas folhas perenes, imagino os desabafos, a satisfação, o choro, a desavença com a solidão, sentimentos constantes aliviados sob a laranjeira. Saio da aldeia com saudades do cheiro de laranjas, das pessoas que usam a biblioteca ambulante.

 

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É chocante observar nas estradas que conduzem a biblioteca ambulante nas viagens e andanças pelas aldeias da minha terra, a mortalidade de pequenos animais silvestres, desventrados na estrada vítimas de atropelamento. Adicionando outros de maior estatura que galgam de um lado para o outro repentinamente em busca de comida, fugindo da terra queimada. Um ritmo acelerado, que acabará por ter consequências nos ecossistemas. Brevemente só os encontraremos nas fábulas e outras histórias, onde estão em segurança correndo livremente entrelinhas, saltando as vírgulas, esquivando-se dos pontos finais para não se precipitarem nos parágrafos. Cheirando pontos de interrogação em  busca de comida nos olhos que os lêem. Animais que nos transmitem mensagens cheias de moral e sabedoria que ajudam a sermos melhores pessoas. Ao contrário,  na vida real no exterior das páginas, para além da tragédia nas estradas, dos incêndios, perdemos o respeito pelos habitats, com plantações  inapropriadas, ou caçando em demasia. Seria importante relermos, dar-mos a ler a quem desconhece estas histórias antigas mas sempre modernas que Esopo, Jean de La Fontaine entre outros nos legaram e se propagaram através da oralidade em muitas línguas. Não quero acreditar que um dia todos estes animais só poderão ser observados nos acervos das bibliotecas e livrarias, a propósito, pradarias de letras sem fim.

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Somente o sol parece ser presença assídua nesta manhã, a luz que irradia enche o largo na aldeia, criando figuras no alcatrão quando os raios são interceptados pelos cabos aéreos. Linhas que cruzam, levam e trazem palavras amarradas, aldeias caladas, amedrontadas pela solidão. Há sempre um momento que escapa ao afastamento, a hora exacta em que ouvem a buzina ensurdecedora da carrinha que traz o pão, imediatamente saem de casa na direcção do padeiro, de olhar ligeiro e desconfiado para a biblioteca ambulante. Apesar dos anos de permanência, muitos ainda não acreditam nas histórias, hesitando no conteúdo das palavras, mal sabem o deleite que  proporcionam. São estas e os vendedores ambulantes deabulando de aldeia em aldeia, procurando cada um à sua maneira, pessoas que queiram matar a iliteracia, a fome e a sede de convívio.

 

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A neblina encerrou o sol não sei onde, na estrada mal se vê quem vai adiante e quem vem no sentido contrário. São as luzes apressadas que avisam a biblioteca ambulante que não está isolada no caminho em direcção às aldeias da minha terra. Finalmente o outono fintou o verão, será para ficar, é isso que não sei ainda. Na biblioteca ambulante já vão acomodadas histórias sobre o outono, palavras  quentes para saborear debaixo de uma manta, ao calor da lareira. Abrindo as páginas deparamos com mudanças, são imensas as tonalidades das folhas no chão, após o vento as tirar das árvores e agir como um tecelão, entrelaçando-as de modo a formarem um amplo tapete colorido. As aventuras no outono com os pássaros a migrarem para sul à procura do calor, os animais silvestres procurando casa e alimento para resistirem ao inverno. A castanha no outono procura ser a personagem principal em muitas histórias, assadas e cozidas, degustadas para alimentarem a alma. As lebres castanhas, a pequena e a grande  não se cansam de andarem aos saltinhos na charneca atrás das folhas sopradas pelo vento, a fugir das bruxas montadas em vassouras, evitando  abóboras que viraram gente. A magia nas palavras do outono a enfeitiçar as pessoas que não conseguem estar ausentes de as lerem.

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A corrente afiada impulsionada por um motor ensurdecedor no limite do desempenho não se cansa de rasgar a lenha seca. O braço longo de ferro, da máquina pesada, retira pedaços enormes da camada amontoada de troncos  que foram árvores  para os colocar junto dos homens que os reduzirão ainda mais, transformando-os em lenha para as lareiras. Tem sido assim o trabalho nas última semanas a dispor com antecedência da energia renovável e sustentada. Na estrada não é difícil de avistar o transporte deste material amigo do ambiente, junto das casas, depois de descarregada, antes de ser arrumada nas garagens, nos lugares próprios. O calor que se faz sentir vai atrasar o dia em que a lenha se une ao fogo, o casamento, a combustão, é ainda um ritual nas lareiras, onde vivem as famílias, há quem tenha um dia ou mês do ano fixo para realizar este fenómeno. O frio pode estar atrasado,  ou adiantado ao previsto, é irredutível. Presenciando pelas aldeias da minha terra maneiras de viver das gentes que adoptam a vida rural por falta de alternativas, pela qualidade de vida que causa, apesar dos contragimentos conhecidos de todos nós. A biblioteca ambulante com as suas histórias é uma entre outros sem local determinado amenizando algumas fragilidades neste modo de existir.

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