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Histórias à Beira Rio, viagens e andanças com letras pelas aldeias da minha terra

"Afinal, a memória não é um acto de vontade. É uma coisa que acontece à revelia de nós próprios." Paul Auster

Histórias à Beira Rio, viagens e andanças com letras pelas aldeias da minha terra

"Afinal, a memória não é um acto de vontade. É uma coisa que acontece à revelia de nós próprios." Paul Auster

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O frio não demove a chuva mesquinha a cair obstinadamente nesta manhã na Aldeia do Mato. Sem abrir as portas da biblioteca ambulante espero pacientemente por leitores aventureiros. Estou  como o pescador lá em baixo no rio, aguardando sem perder a calma que o peixe caia na armadilha presa no anzol. Não têm conta os lançamentos da linha de pesca efectuados para a água até o peixe ser apanhado nas falsas afirmações do isco. No interior da biblioteca, sem linha, com a chuva a persistir vejo as pessoas a passarem protegidas pelos guarda-chuva, abatidas do frio, apressadas. As histórias não lhes dizem nada, vão à igreja, não são peixes. Não estou a pregar  bem a minha doutrina, terei de seguir o exemplo do pescador no rio, no seu barco, aborda-los com inúmeros ensaios ao aproximarem-se, ou invocar à Virgem influência para desviarem os olhares no sentido deste rio de palavras, que corre sem se ver, movendo-se nas sinuosidades entre as aldeias.

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O sol está encolhido, tento descobrir a áurea sem sucesso, o nevoeiro muito unido impede a sua visibilidade, uma barreira impossível de transpor. Na rua as pessoas andam vergadas  com as mãos nos bolsos, apressadas a fugir do frio. A caminho das aldeias da minha terra, no alto do meu lugar de condução da biblioteca ambulante sou um privilegiado por conseguir mesmo a fugir, observar pequenas actividades laborais ao longo das estradas que levam as histórias. As mulheres que equilibram os baldes cheios com o que tiram da terra, emparelhadas, uma atrás da outra, na berma da estrada, bambaleando o corpo que outrora seduziu olhares por quem se apaixonaram, de maneira a manter o equilíbrio daquilo que levam na cabeça. Um ou outro homem empurrando um carrinho cheio de lenha recolhida na charneca, o que a natureza rejeita eles aproveitam, os galhos desprendidos pelo vento, quando sopra com violência. Dobrados nas hortas, manobrando as roçadoras, arrancando as ervas que voltaram a crescer após as últimas chuvas, o gado remoendo as ervas dos pastos, um sem número de ocupações a que não damos importância mas necessárias  para manter a sustentabilidade. A sombra não é a mesma no lugar onde os leitores se juntam com as histórias, as folhas amarelas soltam-se dos ramos com o avanço do outono. São páginas de uma história arracandas pelo vento que irão tornar fértil a terra onde irão nascer novas árvores, na biblioteca  convencerão novos leitores.

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O nevoeiro é um intruso silencioso a passar nos lugares estreitos da charneca, uma serpente que alastra pelo vale adiante. A biblioteca ambulante sai como a linha a deixar o buraco da agulha  deste tempo vagabundo, atingindo a aldeia no topo do terreno onde crescem plantas rasteiras. Ao sol na rua principal os velhos sentados nas soleiras das portas, aquecem os ossos carcomidos pelo peso da idade,  o corpo encurvado, consumidos, parecem cartão dobrado, preparado para ser metido nos depósitos de reutilização, seria bom se assim fosse. As mulheres têm semelhanças com as  formigas, caminham pela rua, trazem sacos cheios do mini-mercado, empório da aldeia, cruzando com as que vão no sentido oposto. Há sempre um momento de paragem para mexericar as novidades das primeiras horas do dia. O sol trouxe a roupa ao estendal das varandas, aos improvisados, nos ramos das árvores mais despidas pelo avanço da estação, nos espaços que conquistaram lugares nos braços da luz e do calor,  a corar e, a secar. As portas da biblioteca abertas convidam os leitores a entrarem, têm ao dispor as notícias nos jornais, nas revistas, ou mesmo ganharem balanço para outras leituras.

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Esmagada sob um céu escuro e, abarrotado de água, a manhã tem sido proveitosa na deslocação de leitores à biblioteca ambulante. Não esperava esta assiduidade, a chuva não os demoveu de restituírem as histórias requisitadas na última visita. De maneira ininterrupta a chuva espalha vida nos campos desejosos de encherem o ventre, no qual os animais dispersos nas pastagens e, na charneca irão beber até ficarem saciados. Os leitores não se embaraçam, deambulam no reduzido espaço, provam as palavras das histórias, verificam qual ou quais lhes sabe melhor, petiscadas, levam-nas para as saborear no conforto das suas casas. 

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A escrita é substituída pela agulha e linha à mão, sem abandonar a máquina quando necessário. Um método diferente de transmitir histórias, o fio em vez da tinta, a agulha troca com a caneta, sempre com a mão a conduzir. A pesquisa minuciosa leva o seu tempo, passam as revistas a pente fino até encontrarem a figura que lhes irá invadir o tempo livre. São conquistadas pelo estilo de bordar do recortado e rendado. O escritor opta pela escrita criativa, usando a imaginação para contar histórias anulando comportamentos, ou a narrativa, talvez a mais simples de contar entre outros estilos ao gosto de cada leitor. Lá fora a chuva assertiva segue o exemplo das mulheres expressando  convicção na exploração dos bordados, fincam os pés na biblioteca ambulante como os pilares de outrora, símbolos de conquista.

 

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A ausência e o frio são personagens que deambulam no largo, a chuva faz parte do lugar, depois há os papeis secundários. Um cão atravessa o largo velozmente em perseguição de um automóvel, advinho que o dono do mesmo saiu sem o convidar para o passeio. Este tendo em conta a desconsideração daquele que considerava ser o seu fiel amigo, não fez súplicas e desprende-se a correr no seu encalce. Os primeiros desta acção voltam a ter papel preponderante na história. Um ligeiro cheiro a lenha ardendo liberta-se da chaminé, pode ser de qualquer uma das casas que protegem o espaço. Um efeito especial usado com o propósito de transmitir realidade. Agora é a vez da padeira com a sua carrinha entrarem em acção, a presença fugaz não estava prevista, havia muito mais para desenvolver no set. No roteiro o texto breve seria dividido por várias personagens comprando pão, houve uma. Silenciosamente uma sombra toma para si a iluminação, uma mulher abeira-se da porta da biblioteca ambulante, fala comigo, no início não entendo o que diz, baixo o vidro, salta-me à vista os seus olhos doces, recomeça, dizendo-me que não há ninguém, têm morrido muitos. Uma parte execessiva de pessoas desapareceu, havia poucos, quantos sobrarão, um filme para ver numa aldeia próxima de si.

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As cegonhas regressaram, é impressionante observa-las equilibrando-se nos ninhos situados no cimo dos paus que ajudam a passar os fios da electricidade, das comunicações, cravados no solo. Nas chaminés, nas torres sineiros das igrejas, à beira da estrada, no campo juntamente com os animais procurando comida, chegam de África, atravessam o Sahara a desejar que os ventos no estreito de Gibraltar estejam de feição para o transporem até às aldeias da minha terra. São viajantes do tempo, são fiéis aos ninhos, todas as vezes que voltam, o ninho é sempre o mesmo. A fidelidade também a tem a biblioteca ambulante, retoma o mesmo local nas aldeias na sua itinerância. Os leitores encontram-na, as histórias podiam ser os ovos. Na concha das mãos são chocados, são decifradas, em ambas os exemplos nascem criaturas novas.

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A manhã está deprimida, o silêncio esfriou, a luz do sol atravessou um trecho de chuva que caía. Um momento mágico a insinuar o casamento das histórias com os leitores. O namoro vai longo está na altura de se completarem, alguns há muito que sonham com a chuva e o sol ao mesmo tempo, vincularam-se  para sempre. Estão dependentes das histórias e da biblioteca ambulante, as duas juntas são exemplos como o do fenómeno natural, ligadas a perpetuar saberes através da magia das palavras, dos escritores que as escrevem, tornando-as apetecíveis aos olhos dos leitores. O vento frio chama as nuvens escuras, atiça as chamas nas lareiras, puxa-os para o calor do lume dançarino. Adormecem a sonhar e a dançar, embalam com as  histórias que construiram, o amanhã não tarda, a biblioteca ambulante nunca se fez demorar.

16 Nov, 2022

As suas raízes ...

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Num céu forrado de cinzento, destacam-se as cores das folhas agarradas aos ramos das árvores. Não sendo uma árvore, figuradamente posso referir o contrário, as suas raízes aumentam consoante a presença nas aldeias, os leitores conquistados, os que virão submetidos por um livro de cada vez. As cores enraizadas na estrutura metálica, anunciam a sua identidade, obrigam quem se cruza a desistir de olhar na direcção que segue, para se virar no sentido do seu destino. Uma árvore cujos frutos modificam quem os colhe, tornando-os experientes, até mesmo indisciplinados com  princípios instalados. A desesperança do dia não deixa dúvidas, atraiçoado pela noite precipitada, uma chuva semelhante a alfinetes a picarem, prováveis leitores não querendo arriscar o mau tempo, resta-me partir. 

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Podia estar a olhar a chuva que cai sem bondade, mas não é bem assim, a fotografia foi roubada ontem debaixo de um sol tímido ao início da tarde. Ao fundo a pesquisa avança vagarosamente, alguns factores a ter em consideração para a escolha acertada. Entre eles a estatura das letras, a vista há muito que perdeu dinamismo, excepto nos olhares transmitindo gratidão, e tranquilidade. Conseguem interpretar a história com passividade, a pouca intensidade da vida que atravessam permite explanarem a leitura, intervalando esta com as actividades hortícolas e as tarefas domésticas, resumidas a dois ou sós. Ralham com as histórias, comigo, dizem sempre que não têm tempo, no final nunca saem de mãos a abanar. 

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