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Histórias à Beira Rio, viagens e andanças com letras pelas aldeias da minha terra

"Afinal, a memória não é um acto de vontade. É uma coisa que acontece à revelia de nós próprios." Paul Auster

Histórias à Beira Rio, viagens e andanças com letras pelas aldeias da minha terra

"Afinal, a memória não é um acto de vontade. É uma coisa que acontece à revelia de nós próprios." Paul Auster

26 Dez, 2022

Estão folgados ...

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O dia amanheceu frouxo, poucos automóveis na estrada, a ausência de pessoas nas ruas, possivelmente a recuperarem dos últimos dias de festa, receando talvez a chuva aproximando-se. Na aldeia estas hipóteses não têm pernas para andar, na exígua esplanada do estabelecimento os homens sentados estão animados, seguram as minis como quem agarra um troféu, e quanto maior for a sequência destes levantamentos direccionados à goela, mais vencedores são. Hoje não querem saber de história nenhuma da biblioteca ambulante, somente as que narram entre eles é que importam. Risos e sorrisos à mistura travam as descrições das respectivas consoadas, divertiram-se, não querem parar, os dias que têm pela frente até ao Novo Ano irá ser assim na terra que os viu nascer. Estão folgados, necessitam de estar uns com os outros como no tempo da meninice e juventude. O fim da adolescência trouxe-lhes rumos diferentes ao ponto de os separarem, os dias festivos, e as férias trazem-nos de volta, aqui estão eles, unidos pelas amizades e memórias. A tarde surgiu determinada, as clareiras no céu alteraram a vontade das pessoas, as hortas apelaram para que lhes viessem tirar da terra o excesso de ervas, devolver-lhes a beleza merecida. Há ruídos, vozes no ar, palavras soltas, vida. Até para o ano.

 

 

 

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O rádio não se cala de tocar músicas de Natal, os cantores e as suas vozes barulhentas esgotaram os meus ouvidos. A partir do momento em que liguei o aparelho da biblioteca ambulante, continuamente, uns atrás dos outros, desfilam sem parar. Cansado desliguei-o, parti o fio que me ligava à emissora. Passei a ouvir o som harmonioso do motor, aquele que me transporta diariamente às aldeias da minha terra, levando histórias. Habituado à sinfonia do aço com a termodinâmica a gerar rendimento ao motor, consigo captar o som do vento. O assobio do ar em movimento quebrou o silêncio na charneca, algures na estrada que conduz as histórias aos leitores, um sussurro estranho capturou-nos, nunca tinha ouvido algo assim, até o vento se calou. Uma ventania súbita e violenta, agitou de tal maneira as histórias, sacudindo as folhas onde as palavras se acomodam. Nesse instante, uma sombra, como se a escuridão se instalasse inoportunamente, envolveu a biblioteca ambulante, travei, cheio de curiosidade. Saí receoso, e o que vi deixou-me fascinado. Livros impulsionados pelo abrir e fechar das suas enormes lombadas a puxarem um Atlas de grande dimensão. Em cima deste livro de mapas, de acontecimentos, o Pai Natal sentado a dirigir o destino das letras que se separavam, sacudidas pelo movimento instável das folhas. Fui apanhado no turbilhão, não percebi se estava num tempo ou espaço, de fantasia ou realidade, foi tudo tão rápido. O que vi, ou julguei ser testemunha não tem explicação, implicado no fenómeno que contraria a leis naturais, deixei-me encantar pelo natal. A charneca  lá em baixo com as árvores minúsculas, os telhados das casas agora pequenos pontos alaranjados. Os fumos fugindo das chaminés enrolavam-se formando novelos, acabando por se  dissiparem pouco depois em linhas tecedoras de enredos.  A biblioteca ambulante a trabalhar como uma  agulha enfiando-se e desenfiando, um instrumento a tecer histórias, garantido a durabilidade e a continuidade destas. O Pai Natal pilotava o estranho veículo com destreza, olhando atentamente lá para baixo, preocupado por haver pessoas com dificuldade em juntar as letras, perfilavam-nas, desfaziam-nas, voltavam a compor, ficavam felizes quando as entendiam. Alinhavam as letras,  estendiam pontes para agarrarem outras, evitando assim afogarem-se nos cursos de água que correm em direcção ao rio. Sem saberem os habitantes das aldeias redigem as histórias que sempre ouviram pela transmissão oral, escapando de geração em geração ao desaparecimento. O Pai Natal oriundo não sei de onde, sobrevoa as comunidade rurais, os lugares isolados, afastados dos centros urbanos, libertando letras, esclarecendo as populações de que é possível terem Natal. E neste ambiente despovoado, absorvido pelo que aconteceu ou não, a tentar perceber se foi magia ou realidade, no meio da estrada, no exterior da biblioteca ambulante, com o rádio novamente a tocar músicas de Natal, voltei a ouvir o vento. Vejo as pessoas a estarem incluídas, activas na leitura, a confiarem na biblioteca ambulante.

16 Dez, 2022

Escrita ruidosa ...

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Há vida na charneca, a terra traz à tona, água, um tinteiro cheio, emergindo, escorrendo por linhas esquecidas pela  escassez de letras. Voltar a reescrever nas páginas ressequidas foi rápido a partir do momento em que a terra aparou e sugou esta abundância, não há mata-borrão que consiga estagnar estas palavras. As letras soltaram-se, uniram-se apalavrando a charneca e as suas gentes, a água não para de correr, a preencher cadernos em branco, poços de memórias, de segredos. Diários de uma vida, que se esvaziaram com o tempo, sedentos, deixaram entrar a torrente, as lembranças dissipadas pela ganância dos homens. Escrita ruidosa, apressada, rasgando a terra a fincar a mensagem, armazenando pensamentos no fundo da terra d' água.

15 Dez, 2022

A nudez do vale ...

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A nudez do vale trouxe-me com as histórias, não chegámos sozinhos, mais atrás vem o inverno, juntos viemos perturbar o silêncio. Desta vez não há excesso de tranquilidade, há vida no vale, o ruído do sangue da terra a escorrer, nas artérias, enchendo veias há muito secas, não pára. O barulho da enxurrada ecoa em todo o vale, supera o alvoroço das pessoas, das aves, alarmadas pela felicidade da terra. O sol despontou, retirou autoridade a alguma aragem fria que possa soprar, imagino as mulheres nas suas casas a encherem a barriga das salamandras, com a lenha seca, vorazes como são, não demorará muito tempo para as chaminés vomitarem o que está a mais. A biblioteca ambulante tem o ventre cheio de histórias, nunca estão em demasia, há sempre alguma ausente quando um leitor ou leitora a pede. O viajante das viagens e andanças tenta arranjar desfechos alegres na parte onde estão alojadas as histórias, naquele âmago há sempre uma história pela qual os leitores se enfeitiçam, um bocado de madeira que os aquecerá nas noites vindouras.

14 Dez, 2022

Duas fontes ...

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O fogacho do sol traz outra sensação, imediatamente aproveitado para fumar um cigarro, olhar o vazio, aguardar a correspondência insistindo no retardamento. O sol visita a aldeia no mesmo momento da permanência da biblioteca ambulante. Duas fontes necessárias à vida das pessoas, o sol quando nasce é para todos, as histórias também o são. Na primeira não temos capacidade influenciável, na segunda não é a ausência de instrumentos, ou de uma praia onde as letras e as palavras se mostram. 

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Os campos acumulam charcas instantâneas onde as cegonhas se recreiam, as bermas que ladeiam a estrada levando a biblioteca ambulante não conseguem suster a água, atravessando a mesma sem vergonha ao ponto de a submergir. As ribeiras transformaram-se nos rápidos do Grand Canyon. A charneca é uma cascata enorme, a água brota em todo o lado, nasce do interior da terra, rasga trilhos, causando enormes fissuras longitudinais. Homens e máquinas não param, limpam os caminhos de água e lamas. Toda esta água corre na direcção do grande rio ibérico, orgulhoso pelas suas águas estarem  em igualdade com  ambas as margens. Este desembaraço do rio é igual ao da leitora que esperava a biblioteca na aldeia do Tubaral, uma surpresa agradável, soube o motivo da interrupção da sua presença nas últimas visitas, uma maleita deitou-a numa cama do hospital, a primeira em setenta e poucos anos, segundo ela. Refeita, trouxe a história que a acompanhou nos dias menos bons, substitui-a por outra para a recuperação ser melhor. A tarde dilui-se na água que não para de cair, no Monte Galego os leitores apareceram e foram-se num abrir e fechar de olhos. No largo do Coreto, em Alvega não se apresenta nenhuma banda para um concerto, mas num lugar mais afastado no espaço estão enormes raízes e partes separadas de árvores alinhadas para se inflamarem na véspera de Natal até ao Ano Novo. Imagino o espaço cheio de gente em volta do braseiro, beberricando copos cheios de vinho, emborcando minis, retirando uma vez ou outra da margem da grande fogueira pedaços de carne a fumegar para enganar o estômago cheio de alegria. Termino a crónica com o sol a mostrar-se numa clareira de céu azul, vamos lá saber o que se passa afinal.

  

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O dia não trouxe nada de novo, nem o vento com os murmúrios  mais acesos consegue agitar a parda manhã. O café na única rua da aldeia é o local de reunião das pessoas que desafiam a chuva, quem  surge vem com passo apressado e molhado, a inutilidade do guarda-chuva é visível, apesar de o trazerem. Inicio de semana com despedidas e aspirações de um bom Natal e um Novo Ano cheio de tudo de bom. Os sorrisos estiveram presentes, as lágrimas surgiram sem esperar, de quem perdeu uma filha recentemente, sentimentos reais, e que as histórias muitas vezes nos descrevem quando lemos páginas comoventes. Também as folhas nas árvores se separam, um adeus violento, tentam ficar agarradas aos ramos, o vento está forte não permite tal veleidade. A tarde não demoveu a ventania nem a chuva, confio que não faça o mesmo aos leitores, as portas da biblioteca ambulante estão fechadas, ainda que as histórias estejam disponíveis, o importante é os leitores aparecerem. A curta viagem até ao derradeiro lugar do dia, o bairro da Encosta da Barata foi feita debaixo de chuva persistente. Uma parcela do território urbano onde podia dar certo,  e a cada permanência das histórias a desilusão cresce, não fosse a assiduidade de uma leitora atenuar o desencanto, o objectivo esbatia-se na sombra dos dias. Não posso colocar a biblioteca ambulante impetuosamente na frente das pessoas, dos pais que esperam pelas crianças junto ao portão da escola, as histórias estão visíveis, a biblioteca não é uma desconhecida, resta-me usar a resiliência, a mesma daqueles que a aguardam nas aldeias afastadas da cidade. Recebi uma mensagem da protecção civil, o tempo nas próximas vinte e quatro horas nas aldeias da minha terra não vai estar fácil. Será que alguma vez esteve?

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As aldeias a norte do território, situadas entre os rios Zêzere e Tejo, continuam na obscuridade, cenário ideal para histórias empolgantes, daquelas em que o cansaço durante a leitura tarda ou nunca surge. O filme ou a história da biblioteca ambulante, personagem secundária a percorrer caminhos no centro da névoa, da floresta tanta vez transformada em espectro, técnica utilizada na indústria do entretenimento, uma película onde as pessoas têm os papeis mais  valiosos, adaptando-se a diferentes décor, sobrevivem. Um itinerário no interior, lugares de  vazios e solidões abundam no ambiente de várias acções dramáticas, nada fáceis para produtores ou realizadores. Aqui os actores desempenham o que melhor sabem, fazem das tripas coração, não decoram argumentos, improvisam muitas vezes, é tão bom estar a observa-los projectados na tela da vida. Personagens curvados, actrizes com indumentárias simples, sem qualquer pingente pendurado nas orelhas, ao redor do pescoço. Uma vez ou outra consoante a acção, na cabeça colocam cestas contendo legumes, são melhores que a  Carmen Miranda a equilibra-los. Homens apresentando olhares fatigados, com a vista arraigada de cores vermelha e amarela, refugiam-se no álcool após  trabalhos incertos, refeitos semana após semana, a fugirem de qualquer outro rendimento do qual já não conseguissem libertarem-se, como acontece com muitos na bebida. A caracterização dos rostos  é morosa, parece que leva anos a modificação, faces enrugadas a lembrar a terra rasgada pela enxada, mãos grossas, com caules e fendas minúsculas, a pele ressequida do sol e do frio. Trabalho extraordinário este da maquilagem.  O filme prossegue, o que salta à vista é a naturalidade dos actores, a simplicidade e humildade, o sorriso fácil, para conseguirem este desempenho são pessoas que não desistem com facilidade. Termino, saindo da sala de projecção a claridade no exterior fere a vista habituada  à ausência de luz, será um sinal. Um filme  para ser visto por todos, um filme que muitos não querem ver.

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A estrada sinuosa parece não ter fim, de mãos dadas com o rio, a biblioteca ambulante e as histórias vão ao encontro dos leitores. Desatentos ao caminho, encantados por o rio estar a correr cheio de energia, com  as águas escuras e dinâmicas, os dois observam em ambas as margens os choupos molhando as raízes na corrente. As cores amadurecidas das folhas cativam os olhos de quem passa na estrada, brilhando quando o sol consegue cravar os raios fugitivos da tristeza do céu. A ameaça é real, após um dia afastada a chuva está com vontade de regressar, de impedir os leitores de visitarem as histórias. É sempre assim quando há uma fraqueza atmosférica, os leitores acusam uma depressão motora. Por muita vontade que têm de ler, de vir à biblioteca, renovar a leitura, conversar, a chuva é uma porta que os aprisiona nas suas casas. Noutros uma oportunidade de estenderem as leituras após a preguiça que chega sem avisar, de continuarem a sentirem-se aventureiros nas páginas que acolhem palavras e emoções. Os pingos surgiram, sem alvos definidos, acertaram no vidro grande da biblioteca ambulante, não foi preciso muito mais para que a estrada e tudo o resto ficasse encharcado. A inquietude desvaneceu-se com a entrada rápida de uma leitora, escapando à chuva forte, protegendo as histórias num saco, depois veio outro, e mais outro. Afinal enganei-me, estes enfrentam a tarde cinzenta,  abandonaram o lume a dançar nas lareiras, sem intermediário vão directos às histórias, num abrir e fechar de olhos, estão na rua, apertando as histórias, apressados em direcção a casa, ansiando que as fogueiras  não esmoreçam, que as histórias os aqueçam muito mais.

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O som da moto-serra empunhada pelo homem equilibrando-se no escadote a cortar ramos de uma árvore absorve a tranquilidade da tarde na aldeia. Este desafio à quietude  do lugar chamou a curiosidade, esta, trouxe as pessoas ao largo, pô-las a falar alto umas com as outras para se perceberem, mas sempre com os olhos colocados no trabalho realizado na árvore. Talvez entendam do assunto, acredito que sim, estamos num território rural, ou eventualmente não concordam com a separação, ou mesmo, da privação da vida daquelas extensões que caem com estrondo e desamparadas no chão, colorido pelas folhas que se adiantaram. Escondem assim os verdadeiros motivos da aparição, enredos à parte, a biblioteca ambulante sempre aqui se demora não tem por hábito receber visitas de leitores, embora os haja,  estão vinculados, gostam mais de estar na esplanada do café a olhar o tempo a passar, a fumar o cigarro, a conversar.  Não agarraram os genes do seu conterrâneo, o poeta António Botto, mas todos sabem quem foi, e têm orgulho da sua aldeia ser associada a um nome das letras portuguesas, contemporâneo e amigo de Fernando Pessoa. 

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