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Histórias à Beira Rio, viagens e andanças com letras pelas aldeias da minha terra

"Afinal, a memória não é um acto de vontade. É uma coisa que acontece à revelia de nós próprios." Paul Auster

Histórias à Beira Rio, viagens e andanças com letras pelas aldeias da minha terra

"Afinal, a memória não é um acto de vontade. É uma coisa que acontece à revelia de nós próprios." Paul Auster

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Deixei para trás as amendoeiras, não estão ainda naquele tempo breve das suas folhas atraírem os olhares dos forasteiros, como eu. Puxar da máquina fotográfica e deixarmos estar o dedo a premir o botão, advinhando o melhor disparo que colocará a fotografia eleita publicada numa qualquer rede social. Continuei a viagem na biblioteca ambulante a calcular a quantidade de água necessária absorvida para regar o intensivo amendoal. As folhas de papel em branco também sorvem imensamente os depósitos das canetas para as histórias evoluirem, letra a letra, palavra a palavra, acertando frases, estradas de criativade sempre a consumir a tinta. Os frutos gerados, alimentados pelo líquido de cor com que os escritores escrevem são postos nas bibliotecas, pomares com variadas árvores para satisfazerem leitores famintos, com ambição de beberem o sumo da tinta. 

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Hoje trago roupa suficiente para enfrentar o ar gelado nas viagens e andanças com letras pelas aldeias da minha terra. Os constantes avisos meteorológicos na rádio, na televisão, avivaram-me, logo de manhã quando pus os pés no chão frio do quarto pensei primeiro na roupa que teria de usar, um escudo eficaz, oponente ao excesso de frescura. Neste momento no meio termo do dia,  a camisola de gola alta, de lã (até às orelhas) que envergo, faz-me lembrar que estou dentro de um saco. O calor insuportável dá mau estar, não podendo despi-la aguentarei que nem um estóico até que o frio regresse outra vez, não irá agarrar-me desprevenido, fico melhor com esta segurança. Esta temperatura refreou a vontade de ler de alguns leitores, só os firmes defrontaram a escassez de calor presente na atmosfera, não vi nenhum trazendo o pescoço encurralado por golas, trouxeram apenas as histórias que os ajudaram a alhearam-se  dos dias invernosos. Noutra aldeia, protegido na sombra de um prédio estou aliviado da situação aflitiva vivida há momentos atrás. Numa das extremidades do largo do coreto, a biblioteca ambulante é uma porta grande a convidar o acesso à circulação no seu interior, aqueles sonhadores por lugares fantásticos. O coreto no centro do largo é um sítio esplêndido para músicos e pessoas darem largas à imaginação, a tocar e a ouvir. Mas nenhum destes espaços mágicos é atractivo para as gentes locais ouvirem as palavras musicadas conduzidas sobre rodas e melodiosas no palco. 

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As nuvens estão a aprisionar a tarde na cidade que acolhe a biblioteca ambulante. De manhã os ares campestres trouxeram leitores, a proximidade com as áreas de comércio de grandes dimensões, de restaurantes com refeições preparadas e servidas rapidamente não traz mais leitores. Infelizmente abordam com mais frequência o Centro de Saúde e a Clínica Médica, ambas coladas ao local espaçoso onde as histórias habitualmente estão acomodadas. Não sabem elas e eles que as histórias curam, o tratamento por meio da leitura é bastante sedutor, atraindo o paciente a continuar a explorar géneros literários. Entram na biblioteca a pedir títulos e autores, ouviram, alguém lhes disse, escrevem bem, o enredo é apelativo. Voltam comentando a leitura decifrada, adoraram, detestaram, o tempo foi escasso, recomeçam. O remédio literário traz mudanças sucessivas à mente e ao corpo, as viagens, os saltos ao passado, ao futuro, o presente, em cada um dos lados de uma folha de papel, até esgotarem a embalagem.

 

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Na aldeia do Souto o frio e a chuva propagados ainda não chegaram, o sol  envolve a aldeia, o azul  do céu é uma auto-estrada a perder de vista. A primavera continua a manifestar-se nos pequenos pormenores. Os leitores ausentes pela força maior de manterem as hortas perfeitas, sem ervas invasivas, canteiros alinhados, geometrias desenhadas com o apoio das alfaias agrícolas rudimentares. Arquitectos primitivos desenhando mentalmente e construindo estruturas onde as plantas se desenvolvem, as árvores prometendo frutos saborosos, assim as flores devolvam os rebentos sequiosos da sua utilidade. Ali estão, com as mãos nos bolsos, olhando o trabalho realizado, todos os dias mimam as hortas, contemplam-nas como se isso acelerasse o crescimento das hortaliças e legumes, as favas estão altas, sem flores e vagens não servem para nada. Não perdem a calma, voltarão sempre até ao dia em que levarão os grãos da planta ao tacho, unindo-os com a carne e umas ervas aromáticas. Um pitéu de fazer crescer água na boca, simples e saudável que só a terra pode dar. Nesta modéstia também a biblioteca ambulante tem no seu quintal, letras atiradas às folhas de papel, a terra dos autores, semeadores de histórias. Nos canteiros, à disposição de todos estão enredos, contos, aventuras, epopeias, descrições, prestes, alimentos para serem arrancados ou colhidos, dependendo do apetite de cada um.

 

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A cantoria dos pássaros está diferente,  oiço-os nas árvores que estão próximas da escola onde a pequenada com os seus gritos estridentes jogam à bola no recreio, competem com as aves. A primavera não está longe, até lá, ainda há um caminho difícil para destronar o inverno. As pequenas aves indiferentes seguem o ciclo natural do acasalamento e posterior reprodução, são as cantorias energéticas anunciando o renascimento, e a esperança. A biblioteca ambulante reapareceu sem lamentações mecânicas, as agonias foram ultrapassadas pela habilidade dos colegas da oficina a pôr em bom estado de funcionamento as avarias. As histórias puderam assim voltar à estrada, ir ao encontro dos leitores, das pessoas necessitadas de viajar nas palavras.

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Quem me acompanha nas viagens e andanças pelas aldeias da minha terra, estranhou possivelmente a ausência nos últimos dias da biblioteca ambulante nos caminhos, rumando às aldeias, nas vias da escrita. Tal se deve  à substituição de algumas partes mecânicas da biblioteca ambulante, a acumulação de quilómetros entre aldeias, ir e vir diariamente com as histórias, afastar solidões, a levar sonhos e fantasias aos que estão nos lugares afastados, causou cansaço nas peças do veículo. Na escrita a fadiga não se manifesta, no que diz respeito às viagens e andanças, a imobilidade secou a tinta da caneta, não tenho combustível para preencher as folhas em branco. Deixar um rasto de enredos, amores e desamores, de aventuras, seguirem as histórias do viajante das viagens e andanças. Vamos pedir ao tempo a sua abreviação para devolver as emoções à estrada, às pessoas ávidas de palavras.

 

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Se bem me lembro, em miúdo andei muita vez na charneca com alguém que me levava com ele quando ia à caça. Nem sempre era necessário calcorrear os trilhos e o campo pedregoso, havia dias que não saíamos do interior do carro, estacionado num local ermo, o cano da arma a descansar no intervalo da porta ocupado pelo vidro, chapéu a tapar as sobrancelhas, como se estivesse a passar pelas brasas. Eu não parava, a vista sempre de um lado para o outro, adivinhando algum coelho ou lebre mais distraídos. Debaixo do chapéu os olhos experientes quando apanhavam o animal silvestre desatento, despertavam a tensão dentro do carro, o cano da arma imediatamente apontava, o tiro barulhento enviava o cartucho no qual os chumbos acertavam sempre  nos animais. Depois a minha vez, apressado e atento ao colocar os pés para não cair, na direcção onde estava o animal sem vida, regressava feliz segurando a peça  caçada. De cartucheira à cintura, onde pendiam um coelho, uma lebre, um abibe ou pombo, chegava a casa radiante como se tivesse sido eu o caçador.  A canja de pombo ou do abibe reforçada com um chouriço, para lhe dar entusiasmo e calidez, um coelho guisado, uma lebre com feijão, sabores do campo que não consigo esquecer. Actualmente a caça é quase sempre em reservas, praticada de um modo massivo que não oferece nada de bom aos ecossistemas. Naquele tempo o equilíbrio, o aproveitamento de algum recurso natural para complementar a alimentação era importante. Quantas vezes aos domingos as refeições eram sustentadas pelos animais silvestres. De um momento para outro, vindo da cidade, volto aos mesmos lugares, nas viagens e andanças com letras, diariamente a percorrer as estradas, as quais algumas foram caminhos de terra batida, moldados pelos anos e  pelos antepassados que os escolheram como passagem entre aldeias. A minha caça hoje são os leitores, as armas os livros, sempre apontadas aos desatentos e atentos.

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Hoje o Lucas acenou-me defronte ao espaço de comercialização e montagem de pneus que lhe pertence, a biblioteca ambulante aproximava-se pela estrada que a levava ao Vale Zebrinho, lá estava ele de braço levantado. Nunca estive com ele pessoalmente, somos conhecidos através da amizade numa rede social. A nossa relação não passa disso, temos qualidade para nos saudarmos cada vez que cruzamos, sempre no mesmo sítio, espero que leia a crónica e numa próxima vez quando se aperceber da aproximação das histórias faça um sinal de paragem e a curiosidade o puxe para o meio destas. E porque não ficar vinculado às histórias, leria no tempo desocupado do trabalho, em casa, onde lhe apetecesse, ficarei na expectativa por esse dia chegar.  Lembrei-me, na semana anterior, uma leitora, não o era ainda, quando entrou na biblioteca ambulante, questionando se havia dois títulos de um autor, foi aconselhada pelo seu médico a lê-los. Curioso, li a caligrafia do médico escrita no papel receituário com os títulos e nome do autor dos mesmos. Médicos como este não haverá muitos,  apostando na leitura algumas doenças da actualidade não se afirmariam nas pessoas fragilizadas. A biblioteca ambulante ficou assim ligada a mais uma leitora, aqui todos têm acesso a medicamentos literários que os farão esquecer todas as maleitas importunas.

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Uma caravana de nuvens  esconde sem pressa o céu azul, está assente o regresso da chuva ao território das viagens e andanças com letras. O pequeno largo acolhe a biblioteca ambulante, a padeira pouco se demorou, dois clientes, partiu a tocar a buzina, a despertar os mais distraídos que o pão está de passagem. O frio não traz ninguém para a rua, há bem poucos dias andavam os velhos nas hortas, ao sol, sachando, plantando couves. Penteavam a terra com as enxadas, a pouca força que lhes resta não dá para mais. Um vício saudável, e subsistente, conseguem assim poupar as parcas economias, os filhos destes é que não estão muito pelos ajustes, preferem os pais acomodados, uma precaução face a um qualquer acidente que os atire para uma cama de hospital, ou mesmo um lar de idosos, o mais frequente nas aldeias. Só assim se compreende a quantidade de casas vazias, um legado deixado ao abandono, o declínio dos lugares rurais. O vento convocou-me a ouvir os seus queixumes, no tumulto dos assobios e das murmurações, um leitor assumiu-se com as histórias para devolver. O período que esteve presente falou da sua horta que não está capaz ainda para receber sementes e plantas, escolheu desta vez uma história de receitas, gosta de inovar nos cozinhados que faz. Até morrer está sempre a aprender, segundo ele, acredito, pois tem sido um leitor assíduo, nos dias da presença da biblioteca na sua aldeia. O vento continua confuso, para além da insensibilidade, não consigo decifrar o que pretende. O sopro constante seca a pele das mãos, abre gretas, expostos, os membros superiores sem protecção, aguentam o manuseamento das alfaias agrícolas, a humidade da terra, mas desgastam como apoio ao trabalho. Não faria mal nenhum se segurassem uma vez ou outra histórias, sentirem as folhas macias, a virarem com os dedos páginas delicadas, assim fossem os dias ásperos que ultrapassam ao longo dos anos. Foram as infâncias complicadas que os atiraram para uma literacia permanente, acreditam que  o livro é um objecto difícil de alcançar. Há esperança, pois, nem todos são assim, com a cumplicidade da biblioteca ambulante, acreditam nas suas capacidades.

 

 

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A buzina da carrinha do padeiro chamou as mulheres que surgiram do nada. Não sei se foi magia, mas a presença destas segurando os sacos nos quais o padeiro mete o pão fresco estavam mesmo à minha frente no largo, onde a biblioteca ambulante permanece e o padeiro espera pelas clientes. São os trilhos do pão, este alimento apareceu há muitos anos atrás, antes da escrita acontecer, das cidades se erguerem. Depois vieram os caminhos do pão  moldados por mercadores, por guerreiros, por multidões anónimas ao longo dos séculos, os anos passaram, rompeu a escrita, a leitura nos vários suportes conhecidos, assim como o transporte do pão, passou ela também a palmilhar caminhos difíceis, de terra, de pedra, a transpor longas planícies, a subir e descer montanhas que tocam no céu, a interferir na leitura das estrelas, a dar alimento à mente. Acredito que no passado longínquo estas duas fontes de alimento, o pão e a escrita se tenham cruzado, permanecido nos mesmos lugares. As duas foram alvos nas disputas entre os homens, na guerra da actualidade, precisamente na terra mais fértil para a semente do pão germinar, quem poderá garantir se  não são outra vez o resultado de mais um conflito. Nos dias de hoje, nas viagens e andanças com letras, não é raro o dia em que a biblioteca ambulante se cruza ou permanece no mesmo lugar onde também está a carrinha do padeiro. O pão atrai muito mais gente em relação às histórias a cativarem leitores assíduos, embora um ou outro usem os dois alimentos. Não é por esta inferioridade que as histórias vão desistir, vão continuar a trilhar a seguir o pão, a saciar e a seduzir de aldeia em aldeia. 

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