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Histórias à Beira Rio, viagens e andanças com letras pelas aldeias da minha terra

"Afinal, a memória não é um acto de vontade. É uma coisa que acontece à revelia de nós próprios." Paul Auster

Histórias à Beira Rio, viagens e andanças com letras pelas aldeias da minha terra

"Afinal, a memória não é um acto de vontade. É uma coisa que acontece à revelia de nós próprios." Paul Auster

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A nebulosidade acompanhada de alguns chuviscos não promete que possa acontecer a leitura da história com as pessoas da aldeia do Souto. O palco está pronto a ser usado para quem quiser aproximar-se da biblioteca ambulante e ouvir, Obrigado, uma história de vizinhos, escrita por Rocio Bonilla.  Somente os pássaros se ouvem na primavera adormecida, o cheiro libertado pelas flores silvestres também chega empurrado pela amena aragem, faltam as pessoas para ficar tudo perfeito. De um momento para o outro a plateia transformou-se com as cadeiras ocupadas e as pessoas a escutarem a história, receosos, aventuram-se soltando palavras, a retratarem como estão as suas aldeias actualmente, casas fechadas, meia dúzia de velhos. Só a padeira, e o peixeiro em dias marcados, surgem pela manhã, uma recorre ao vizinho através de um papel escrito, a lista com o que deve trazer do supermercado da cidade. Comentam os jovens no presente, só estudam, quando eram novos aprendiam ofícios basilares para vencerem o caminho que tinham pela frente. Estas e outras descrições de vidas remediadas, ao mesmo tempo cheias de felicidade. 

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A tarde não foi diferente, as nuvens continuam presentes, só as clareiras se destacam a deixar a luz solar entrar na aldeia das Bicas. As pessoas estiveram presentes para a última leitura de uma semana inundada de gente simples, com histórias de vida, sobreviventes de um massacre ao conhecimento e liberdade. Foi bom partilhar a lição que nos deram durante estes dias, de manhã de tarde, a inclui-los no convívio, a lembrar os desatentos que são capazes de decidir. A biblioteca ambulante, os livros e as histórias estão lisonjeadas por serem opção, ou mesmo um trampolim para as pessoas, e instituições, chegarem mais longe. Obrigado ao grupo envolvido.

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A suave neblina paira no ar nas aldeias da minha terra, deu serenidade à manhã, as pessoas no Tramagal aparentam estarem felizes. Falam pelos cotovelos quando abordadas para se sentarem um pouco junto da biblioteca ambulante e ouvir a história lida pelas colegas temporárias, na actividade englobada na parceria com CLDS 4 G ( Contractos Locais de Desenvolvimento Social ). O mais difícil, apesar da sedução é permanecerem, têm sempre qualquer coisa para realizar, o almoço, uma marcação na cabeleireira, beberem o café matinal,  dinamismos limitados a tarefas domésticas e estarem na companhia de outras pessoas. A tarde convocou-as, entre as preferências, e pesquisas minuciosas de histórias na biblioteca ambulante, houve tempo para ouvirem a história instigadora das memórias. Na Encosta da Barata conversamos dos bisavós, dos avós, gente doutro tempo, trabalhadora, fundadores de famílias abundantes, os ofícios exercidos. A avó que fazia bolos e os vendia no mercado e nas festas à noite, saía de manhã cedo com os tabuleiros cheios de bolos, descalça, subia a calçada de S. José,  no cimo, calçava-se para atravessar a cidade em direcção ao mercado. A oralidade nestes momentos não tem limites, falar do passado para não errarmos no futuro é importante nos dias de hoje.

 

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Há quem tenha crescido numa família numerosa, e não tivesse oportunidade de aprender a ler. Um tempo cruel, onde se fugia de casa para ir à escola, ser alcançada pelo progenitor e ter de voltar para casa, ser usada como ama de companhia dos irmãos mais novos. Felizmente existem as bibliotecas ambulantes, os planeamentos e pessoas interessadas em minimizar os estragos de uma sociedade descontinuada pela autocracia, fome e guerra. Ainda assim amputadas de saber unir as letras, comparecem com interesse ouvindo as histórias. Aliviadas por sentirem a proximidade sem diferenças, desprendem-se em mil palavras descrevendo episódios da meninice, como se fazia, as regras austeras impostas pelos pais, as interdições, os poucos livros lidos às escondidas. Saborosas histórias escutadas na sombra das árvores, a tagalerar, a isolar os momentos mais tristonhos nos quais tropeçam diariamente. No final é essencial a passagem pela biblioteca ambulante, levam sempre uma, as histórias  necessárias para continuarem a confiar em si mesmo.

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Outro dia com as mesmas histórias a serem lidas em aldeias diferentes a norte e a sul. A ponte, estrutura importante para transpor o rio Tejo, dá acessibilidade à biblioteca ambulante, há vizinhança que habita em ambas as margens. Há sempre histórias verdadeiras para trazer, da feira anual de Alvega, dos vestidos de seda estreados por cada uma nesse dia. Arrumados nos roupeiros, não os perdiam de vista nos dias que antecediam a feira, prognosticando como lhes assentariam no corpo. O evento durava três dias, o vestido teria de suportar o tumulto das pessoas no largo, e alguma astúcia a bailarem à noite na festa. O convite para dançarem precedia sempre numa piscadela do olho por parte do rapaz. A festa terminava próximo do rio com os foguetes a estourarem bem alto no céu, segundo elas actualmente já não é como dantes. Agora nas festas a banda está a tocar e ninguém dança, abanam o corpo, uma mão com uma mini e noutra um cigarro, estão naquilo a noite toda, rapazes e raparigas. Quando eram novas é que era bom, o acordeão iniciava os primeiros  acordes e os pares distantes já se olhavam uns aos outros. A influência da ponte à circulação das histórias é fundamental para as comunidades partilharem maneiras diferentes de viverem, é indespensável à biblioteca ambulante no depoimento da oralidade e na história das aldeias.

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O bairro de manhã não quis participar, na aldeia, de tarde, estavam à nossa espera, a biblioteca ambulante e o projecto social, parceiros no combate à solidão e ao isolamento. Será uma semana de leitura, de histórias, de momentos exclusivos partilhados entre todos. Na periferia as pessoas isolam-se, enfiadas nas fracções dos prédios, sem contactarem com o vizinho do lado de cima e de baixo, ali estão espreitando detrás dos cortinados, das persianas. Olham as cadeiras vazias, onde poderiam estar sentados a ouvir, conhecendo-se mais uns aos outros, percebendo as qualidades de cada um, aplicá-las entre si e na comunidade. Na aldeia o ar quente não foi suficiente para refrear o entusiasmo perante a presença da biblioteca ambulante e parceiras, as histórias adaptaram as conversas inesperadas que cada uma tinha para dizer. Atropelavam-se umas às outras, a necessidade de comunicar, de fazer chegar a vitalidade com que colocam as mãos nas actividades do local onde habitam não tem igual. 

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As crianças barafustam no interior da biblioteca ambulante pela posse das histórias, não há sossego, passam pelas mãozinhas sem tempo para se hospedarem, são miradas do avesso, diagonalmente, ou como lhes dá mais jeito. A pequenada não consegue ainda interpretar as letras de mãos dadas umas com as outras, continuando a conviver, a repetir as visitas à biblioteca, ajudados pela professora, iniciarão um dia a leitura. Adultos e gaiatos misturados, procurando histórias, imagens informando conhecimentos rudimentares sobre alguma coisa. Na biblioteca ambulante o feitiço acontece, as crianças e as histórias actuando simultaneamente, enquanto os olhares experientes se distraem com tamanha festa. A tarde atraiu a languidez no viajante das viagens e andanças, a temperatura curiosa no largo do Cabrito, o pano celeste manchado de nuvens extensas estão a proporcionar o resultado. As viagens não tardarão a terminar, noutro largo a pequenada recreia-se no parque infantil, aqui a bola não descansa, lançada de um lado para o outro, os braços estendidos na direcção do objecto esférico, com as mãos a tentarem agarrar o futuro.

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As nuvens mancharam o céu azul, o mestre entornou um monte de tristeza nesta tarde de primavera. Alastrou-se pelo horizonte adiante, o aparo da sua caneta a escrever o destino do universo quebrou-se, o borrão estragou o pano. Há momentos em que o pintor inspirado desenha nuvens insinuando formas, figuras conhecidas, alegra-me observar estas representações expressivas. A imaginação de cada um decifrará a ilustração, o importante é analisar, ler. Assim estão a comportarem-se os leitores da biblioteca ambulante hoje, no papel, onde as histórias nascem e se revelam. Também promovem a faculdade em cada um que lê,  nas representações de supostos personagens e lugares. Maneiras diferentes de explanação, as mesmas fantasias nos leitores. 

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Receio a continuidade da biblioteca ambulante no próximo verão nas viagens e andanças com letras pelas aldeias da minha terra. Fico assustado pela morte súbita das histórias na casa dos leitores, isto porque segundo li, a Carta de Perigosidade de Incêndio Rural prevê o impedimento das pessoas de saírem de casa em dias de alto risco de incêndio nas zonas rurais. Como eu deverão estar a padeira, o peixeiro, o merceeiro e todos os outros cujos ofícios ambulantes dependem das pessoas ameaçadas com outro confinamento. Num território rural as pessoas não podem ficar retidas nas suas casas, as histórias, o pão, alimentos imprescindíveis têm de atingir estas pessoas. As romarias no verão, o regresso dos filhos emigrados, o passado e o modo como se desenvolveram ao longo do tempo estarão em risco, será pior que o incêndio. E no futuro como será com a subida da temperatura a progredir de ano para ano, as estações climatéricas equilibradas, sempre quentes, o risco elevado de incêndio será sempre constante. A decadência populacional nas aldeias  é um problema real, como poderemos contrariar a queda com outra atitude violenta. Quando devíamos cativar, a permanecerem, a voltarem, trazendo outros a gostarem de viverem nas aldeias, a contrabalançar o país na densidade populacional. Na charneca as primeiras flores da esteva, uma planta que produz uma resina balsâmica, o ládano, destapam-se revelando a cor. São as primeiras palavras neste livro de versos, o território rural, a afrontarem o inverno a nossa impiedade. Não matem a poesia, leiam a beleza, a sensibilidade, plantem árvores, criem raízes.

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A temperatura intrometeu-se de tal maneira na manhã, adivinho um dia quente nas viagens e andanças com letras pelas aldeias da minha terra. Mais logo a primavera varre o inverno, embora fiquem por aí umas migalhas de frio ou chuva, afoitas a manter-mos alguns agasalhos por precaução. A charneca verdejante convida os forasteiros a conhece-la melhor, os trilhos conduzem-nos a lugares incógnitos, é mais ou menos estarmos a seguir as palavras de uma história, os caminhos são irregulares, com pedras. Na história somos muitas vezes apanhados de surpresa por vírgulas a travarem a marcha, ou a pararmos no ponto final, a saltarmos o parágrafo e continuarmos na linha de baixo. Na charneca alguns percursos terminam abruptamente nalguns trajectos, voltamos ao início ou experimentamos atalhos para avançarmos na caminhada. Em tudo semelhante à leitura da história, a aventura prossegue nas páginas e na charneca, os imprevistos, apressados, mais lentos, dependendo do entusiasmo e do cansaço. Finalmente atingimos o destino, assimilamos através da observação as pequenas flores silvestres, animais admirados pela nossa presença, respiramos ar mais sudável, um final feliz. A história termina na paragem do autocarro, o saco verde cheio de livros, o leitor e o seu amigo, outro final alegre.

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A leitura em voz alta, partilhada à mesa, embrulhada nos novelos de linhas coloridas, progride noutra aldeia.  A mesma história com outras pessoas estimula as mesmas emoções, puxa as memórias arrumadas nas gavetas do labiríntico compartimento mental. O enredo de mão em mão à roda da mesa destaca-se, o silêncio surpreendido por ser também ouvido na pausa de um parágrafo, num ponto final ou na mudança de uma linha de palavras. A magia daquele que escreve em quem lê é imediata, acompanham a decifração, penetram na sequência dos acontecimentos escutados, saltam à vista serosidades, o ruído de um nariz faz-se ouvir, depois outro. Este desconforto saudável generaliza-se no interior da antiga sala de aula. No final da leitura os comentários não são diferentes dos outros que ouvi nas outras aldeias, a história escrita atinge de tal maneira as leitoras, estejam onde estiverem, no território separado pelo rio Tejo. a norte e a sul, mostrando vivências diferentes, contudo, manifestando sentimentos iguais.

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