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Histórias à Beira Rio, viagens e andanças com letras pelas aldeias da minha terra

"Afinal, a memória não é um acto de vontade. É uma coisa que acontece à revelia de nós próprios." Paul Auster

Histórias à Beira Rio, viagens e andanças com letras pelas aldeias da minha terra

"Afinal, a memória não é um acto de vontade. É uma coisa que acontece à revelia de nós próprios." Paul Auster

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A cortina vulgar de nuvens suspensas, enfiadas numa vara horizontal imaginária, não deixa o céu azul espreitar, mas permite ao sol fincar os raios na biblioteca ambulante e na aldeia de S. Facundo. Na rua principal, um prédio está a restabelecer-se nas mãos de operários a colocarem rejuvenescimento na fachada exterior do mesmo. Este, irá acolher uma família jovem que trocou a cidade pela aldeia, o vento vai trazendo aqui e ali, noutras aldeias, sussurros de aquisições de outros prédios vagos, por gente de outras cidades, de Lisboa. Aparecem ao fim de semana, recuperam interiores, paredes, arrancam ervas nos espaços envolventes. Desaparecem durante cinco dias, regressam trazendo mobília e ajustes necessários ao conforto, um vaivém de esperanças. Um dia poderão ser leitores na biblioteca ambulante, possuírem habilidade a caminharem na charneca, aprenderem a olharem os animais e as aves silvestres. Conhecerem plantas e odores florais, serem aldeões da cabeça aos pés, não ficarão diminuídos pela nova identidade, não serão mais que os seus antepassados. Fundadores destas pérolas erguidas na arte de construir e decorar de formas populares, e refugiados em terras estranhas, a tentarem esquecer a pobreza, procurando trabalho e melhores condições de vida nas cidades litorais. Serão estes novos ocupantes os salvadores da morte certa de muitas aldeias a agonizarem por falta de pessoas no interior, não sei, poderá ser uma onda só, num mar deserto de população. O rosmaninho de cor arroxeada  encurrala a estrada lateralmente, e promove a frescura no pensamento do viajante das viagens e andanças, não passa disso mesmo.

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Máquinas de trabalho a biblioteca ambulante e a máquina de desterroar, incansavéis no comportamento a abrir caminhos amplos, ao conhecimento, à acessibilidade. Ambos importantes no trajecto do crescimento das pessoas. As histórias na biblioteca ambulante minimizam as dificuldades daqueles mais longínquos dos lugares sobranceiros, têm ainda assim o acesso que a máquina de desterroar constrói. Mas, para alguns a insuficiente capacidade de conhecimento adicionada à idade, não permite irem muito mais além. A biblioteca ambulante resguarda-os, acolhe-os no regaço, no lugar onde é possível alcançarem horizontes desejados, através das histórias, elevadores de passagem para o desconhecido. A máquina de desterroar continuará a transpor as dificuldades, pelas quais os mais jovens não passam, ou conceberam, os avós e os pais as tivessem possuído.

 

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As leitoras,  hoje estão focadas nas revistas de bordados, gostam de estarem reunidas, têm prazer em decorar tecidos utilizando as linhas. Exploram os periódicos com a vista e com as mãos a esforçarem as folhas de um lado para o outro, nada lhes escapa nas observações, usam uma linguagem técnica da qual não percebo nada. Embaraçado, tento estar disponível para ajudar quando questionado por um desenho desejado, para ornamentar uma almofada,  um exemplo. Entraram cheias de vontade para falarem com o viajante das viagens e andanças, estou habituado a estes falares frívolos, importantes no momento da chegada, já compreendem a minha prontidão a responder ao mesmo tempo a todas. Os bordados impressos no papel, imediatamente andam de mão em mão, mentalmente são elaborados ali a segurarem os exemplares firmemente. O instante da permanência na biblioteca ambulante contém risos, gargalhadas, expressões diversas, nos rostos, variações nas vozes, os gestos, maneiras distintas de comunicarem. As histórias causam espontaneidades que os próprios leitores não admitem como verdadeiras, como espectador confirmo o encanto, e a transformação nos aspectos assumidos de maneira pública. 

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A charneca está convidativa para ser explorada, caminhar nos trilhos é uma boa opção, de máquina fotográfica à tiracolo, empunha-la para perdurar um momento, uma paisagem, um pequeno animal silvestre capturado de surpresa, este ficará cativo na imagem fotográfica para sempre. Só assim conseguirão continuar a manter as espécies, os disparos fotográficos não deixam rastos de chumbo, de morte, eles seguram depoimentos da vida animal nos terrenos onde crescem plantas rasteiras e rústicas. A biblioteca ambulante, atraente, capaz de convidar os leitores a palmilharem nas páginas das histórias, a contornarem obstáculos, saltarem linhas ou páginas, irem ao fim do percurso, e voltarem ao início, não há mal nenhum nisso. Pararem no ponto final, descansarem, reflectirem no percurso realizado, alterarem direcções ou mesmo desistirem. As histórias têm caminhos alternativos, perto de meio século de caminhadas, de independências individuais, e culturais ainda há quem tenha receio de arriscar a escolha de outras leituras. Ler é fundamental para chegarmos mais longe no rumo da vida, ousar ler diferentes caminhos, observar novos panoramas, conhecer outros pontos de vista. Por muitos que sejam os caminhos, e os olhares que os percorrem, eles dão acesso ao destino desejado. Devemos experimentar sempre leituras desiguais, só assim aprendemos a fazer escolhas. Não basta olhar-mos as brochuras, devemos conhecer os sinais dispostos ao longo dos caminhos. O calor regressou, desta temperatura não consigo fugir, não quero desistir dos leitores, o meu caminho é este independentemente das circunstancias dos elementos que constituem o universo. A direcção tomada hoje é cheia de flores, amanhã não sei, mas aprendi com a leitura valores de que não me arrependo.

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Acertaram na previsão, está a chover nas aldeias da minha terra, o vento apareceu, parece um conjunto de tropas a varrer tudo, as nuvens largam a chuva, são uma multidão de cavalos a bater o casco com força no chão. Não chegaram precipitados, os homens livro alcançaram Abrantes numa tarde calorenta, trouxeram o livro que compuseram, falaram dos episódios a conduzirem bibliotecas ambulantes, de conhecerem pessoas, de darem e trazerem histórias. O livro, Homens livro conta a história das bibliotecas ambulantes, dos pioneiros que as dirigiram, ao fim e ao cabo o que os actuais continuadores realizam, elaborando a integração absoluta das pessoas que possuem necessidades sociais. As histórias, ou os livros, como quiserem, foram e são os condutores dessa incorporação na sociedade. Debaixo da chuva, ao frio, com a neve a transtornar percursos e o calor a derreter corpos transpirados. Em comum todos os homens livro têm a paixão pelos livros, aventureiros, curiosidade pelo desconhecido, o feito que marca a conquista de leitores, e a amizade por pessoas incógnitas.

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Os estudiosos da meteorologia prevêem precipitação para amanhã e sábado, observando o céu não vejo qualquer sinal disso. As crenças populares transmitidas oralmente fazem-nos acreditar na possibilidade de acontecer pluviosidade. Os sintomas corporais, uma dor nas costas, na perna, ou uma porta da nossa casa, sem mais nem menos começa a ranger ou a fechar com dificuldade, tenho o exemplo do som do apito do comboio. Bastante afastado, da minha habitação,  percorrendo a linha ferroviária da Beira Baixa, tendo o rio Tejo como acompanhante, o seu apito enérgico vai avisando a sua passagem, como se fosse a passar perto da área onde habito. Desde pequeno,  ouvia a minha mãe dizer que chovia quando o apito do comboio se ouvia ao longe, raramente errava na previsão. Observando o céu azul, exceptuando os traços abandonados pelos aviões,  estou sem saber se choverá ou não nos próximos dias. Imprevisibilidade semelhante experencio com os leitores, diariamente quando inicio uma viagem, nunca sei se estará algum esperando, se virão aos lugares habituais encontrar a estabilidade nas histórias. Uns são mais assíduos que outros, ainda assim há sempre imprevistos, ausências que não se esperam. Voltam sem qualquer embaraço, de um modo geral é como tivessem estado presentes no dia anterior, pesquisam novidades literárias, trocam palavras, de opiniões, e seguem rumo a casa. A chuva, ou melhor os fenómenos atmosféricos muitas vezes surpreendem pelo surgimento inesperado, descarregam dificuldades, saem afáveis.

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Quando me preparava para iniciar hoje a viagem, após ter estado no estabelecimento comercial onde a biblioteca ambulante adquire os jornais e revistas, sou abordado pelas vozes de duas leitoras que ocasionalmente por ali passavam. Acenavam a mencionar o meu nome e a perguntarem pela minha família, se eu estava bem. Os rostos sorridentes continuaram a caminhar na berma da estrada, ultrapassei-as a conduzir a biblioteca ambulante em direcção à primeira aldeia do dia a pensar nestas dádivas que recebo nas viagens e andanças. As histórias fincaram uma marca nas aldeias da minha terra, são notadas, para alguns a leitura destas já não se pode dispensar, ficaram enamorados das palavras que os alimentam de conhecimento, de amor. Hoje a presença dos leitores tem sido assídua, com a particularidade de uma nova ligação afectiva entre uma pequena leitora e as histórias. Os dias avançam e a comunidade leitora da biblioteca ambulante continua a aumentar, o apego obstinado está a acrescentar importância às histórias.

 


 


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A tarde quente afasta as pessoas do largo e os leitores da biblioteca ambulante, mesmo a internet não está  pelos ajustes com o viajante das viagens e andanças. O trabalho espontâneo está ameaçado ou melhor, estragado, recorrerei à esferográfica BIC, um objecto a democratizar a escrita desde 1950. Nem as sombras a conquistarem espaço ao largo atraem as pessoas, somente os pássaros a voarem em liberdade e a cantarem a independência absoluta se deixam observar e ouvir. Mais adiante na estrada nacional, os motoristas e os veículos fazem gazeta às horas abrasadoras, ninguém quer estar debaixo de um sol vibrante de alegria. A planície que acompanha a estrada está órfã dos animais que a usam para se alimentarem das ervas, encurralados à sombra, esperam pelas últimas horas da tarde, para se aventurarem no terreno plano a ruminarem. As histórias persistem sem leitores, não me lembro do último dia acontecendo o mesmo, não estou habituado, mesmo os que não querem nada com as histórias não vêm para expressarem emoções aprisionadas. Estas ausências não quebram a vontade de voltar, de continuar amanhã, noutras aldeias e lugares, as bibliotecas ambulantes e as histórias continuarão a pluralizarem-se com leitores. 

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O verão é um príncipe e agora quer usurpar o reinado da rainha primavera, a história tem-nos mostrado episódios iguais com o passar do tempo. O suspeito, homem, interferente na divisão que enquadra seres e coisas, está a mudar a forma como sempre conhecemos as estações meteorológicas. A biblioteca ambulante permanece na aldeia de Sentieiras, são onze horas e vinte e dois minutos e estão trinta graus celcius no termómetro, os leitores chegam a protestar da temperatura elevada, prevêem dificuldades no acesso a água corrente para regarem as hortas, os poços vão deixar escapar a que têm armazenada. Sem necessitar de beberem água, as palavras prosseguem lentamente,  ocultando a inocência do papel, ao mesmo tempo a intensidade do calor sobe dois graus celcius, acredito que  esta ascensão súbita seja a causa pela qual um leitor do jornal ter desaparecido de um momento para o outro, levando o periódico com ele por descuido. Talvez fosse para proteger a cabeça do atrevimento do sol, ou querer continuar a leitura resguardado numa sombra. Nunca mais o vi com o jornal. Hoje,  as galinhas são tocadas com a alteração climática, um habitante da aldeia mostrou-me um ovo apresentando um volume anormal, gerado por uma das suas aves domésticas. Segundo ele a ave não atingiu a idade adulta ainda, e está a pôr ovos descomunais, sorte a sua, respondi, sempre poupa umas gemas nas actividades culinárias, mencionei no final. O vento amainou nas Mouriscas, os trinta e seis graus celcius são um muro a impedir os leitores de chegarem à biblioteca ambulante, no último quartel da vida a condição física de alguns não permitirá a deslocação debaixo desta violência solar precoce. Não afrontam este tempo como as galinhas ousam fazer, as histórias não merecem isto.

 

 

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Na Casa Branca o local habitual da permanência da biblioteca ambulante esteve ocupado num espaço de tempo prologando, o viajante das viagens e andanças agarrou o lugar com o olhar não fossem os leitores surgirem e não visualizarem as histórias. Os automóveis enchem o espaço junto ao café, suponho os seus proprietários no interior deste, a esplanada acolhe alguns. Ainda me olham como um estranho, a primeira impressão que se tem das pessoas daqui é a rudeza, depois tudo desaparece no relacionamento. Os lugares estacionáveis são alternados por diversas marcas e modelos de veículos, uns permanecem pouco tempo e mal arrumados, os condutores saem rapidamente e regressam logo depois, enfiando-se dentro do habitáculo, para partirem com velocidade. Diante do estabelecimento as conversas sucedem-se umas atrás das outras abordando vários temas, curiosamente não estão a beber. Em vésperas de final de semana, muitos largaram o trabalho mais cedo, a terra, a floresta, podem esperar. O agregado familiar de leitores ainda não apareceu, a escola e o trabalho terminam simultaneamente, só depois vêm as histórias.

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