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Histórias à Beira Rio, viagens e andanças com letras pelas aldeias da minha terra

"Afinal, a memória não é um acto de vontade. É uma coisa que acontece à revelia de nós próprios." Paul Auster

Histórias à Beira Rio, viagens e andanças com letras pelas aldeias da minha terra

"Afinal, a memória não é um acto de vontade. É uma coisa que acontece à revelia de nós próprios." Paul Auster

 

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Indiferente ao silêncio, ao chilrear das aves, há ausência, observo as pequenas parcelas de terrenos colados às casas, as primeiras batatas vêem a luz dia. Os conjuntos de tubérculos amontoam-se, ocupando o espaço próximo da biblioteca ambulante. A enxada manuseada por quem sabe escrever e ler a terra retirou-as do subsolo. Estas palavras são imprimidas com violência, com esforço, ultrapassando muitas vezes o necessário. Já não há muitos escritores assim, a saga a qualquer momento poderá correr o risco de ser interrompida, a terra que substitui o papel ficará esquecida, crescerão palavras sem regras. Quem continuará a saber escrever romances na terra com a tinta que o rio traz, a lê-la com olhos experientes, perceber as temporadas, ou as influências dos tempos. São escritores reconhecidos na família, premiados à mesa com as palavras cuidadas por eles, cheias de  sabores fortes e agradáveis. Os aromas libertados do interior das panelas e dos tachos, transportam qualquer um destes Nobel a merecerem imortalizar as suas obras nas bibliotecas do mundo rural. Nos filhos e netos que não sabem escrever e ler a terra, no que é falado, na memória do viajante das viagens e andanças. 

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A chuva tem sido presença assídua ontem e hoje nas viagens e andanças pelas aldeias da minha terra, o frio numa postura invejosa colou-se-lhe, gerando desconforto e contestação nos leitores e nas pessoas em geral. Afinal o inverno não se afastou definitivamente, os impermeáveis, os casacos e camisolas mais confortáveis para o efeito voltaram a sair dos roupeiros, em simultâneo com o calçado adequado. A tarde amenizada pela temperatura alta convocou leitores, trouxe de volta a primavera, não conseguindo afugentar as nuvens ameaçadoras. As portas escancaradas da biblioteca ambulante dão visibilidade às histórias, consentem ao ar fresco expulsar a temperatura invasiva. os passeantes não resistem a desviarem os olhares de curiosidade às ligações estabelecidas entre os leitores e estas. O escaparate dos jornais e revistas é o alvo seguinte, lêem os cabeçalhos apressadamente receando alguma intimidação do viajante das viagens e andanças. Digo sempre para retirarem o jornal desejado, convidando-os a entrarem e sentarem-se nas cadeiras para o efeito. Amedrontados quase sempre evitam a possibilidade de estarem no espaço das histórias. Isto é vosso, reforço com voz moderada, podem estar aqui se desejarem, a lerem, insisto. Agradecem a convocação afastando-se rapidamente ao mesmo tempo. Na próxima visita os diários, os semanários e outros periódicos  estarão no mesmo escaparate aguardando os olhares esquivos.

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A bengala ampara a estrutura física, a história um argumento portador de estímulo. A velhice não é sinónimo de interrupção, a caminhada continua a realizar-se, mais limitada indubitavelmente. Na companhia dos objectos certos, pode-se avançar no tempo, viajando, a perdurar memórias nas histórias vividas, mesmo as impressas, escritas por viajantes que nunca desistiram de percorrerem extensas planícies desertas, ou colinas de páginas brancas movendo-se pela acção do pensamento, de uma imaginação viva. Sempre a subirem com esforço montanhas ainda por escrever, deixando para trás um rasto de sentimentos. 

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A tarde sufocante não inibe os leitores de virem à biblioteca ambulante, ler o jornal, ou encontrarem alguma história onde se possam abrigar da provável chuvada que cairá muito antes do viajante das viagens e andanças dar por terminado o dia. A luz brilhante borra a imagem, sem distrair os leitores empenhados em descobrirem histórias e palavras, bem podiam ser, guarda-chuva, sombrinha, ou umbela,  impermeável, gabardina, para-raios e outras relacionadas com o que aí vem. As nuvens são enormes, brancas e escuras, se lhes espetasse um palito comprido, faziam inveja ao algodão-doce. O ruído dos trovões ao longe assemelha-se ao arrastamento de objectos pesados, Deus queira que sejam estantes a abarrotarem de histórias prestes a serem despejadas, as primeiras letras serão pingos a caírem, grossas batem com força nos desprevenidos, nos iletrados. No vidro grande da biblioteca ambulante forma-se a palavra BIA (Biblioteca Itinerante de Abrantes), curta, a esclarecer as aldeias da minha terra, um candeeiro a disseminar conhecimento. Acertei na previsão, no regresso as histórias foram apanhadas por um aguaceiro forte, concluí o dia mais sábio, foram tantas as palavras compostas.

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Telhados deitados abaixo, um desastre que se tornou normal nas aldeias, nos núcleos absoletos da maioria das nossas cidades. Histórias desconhecidas, heranças descontinuadas, gerações interrompidas, sem representação. Há pouco alguém pediu se podia entrar na biblioteca ambulante, só queria observar, após o primeiro passo no interior, as palavras saíram-lhe naturalmente, as memórias que eu tenho disto. Continuando, disse, o senhor Diniz quando chegava à minha aldeia já trazia os livros que eu queria separados dos outros, a conversa não ficou por aqui, mas bastaram estas palavras, a felicidade expressa no rosto, para cravar a importância das bibliotecas ambulantes na vida das pessoas de então. Ainda o são, mas não é mesma coisa, há leitores fiéis, gostam de histórias, dos autores que as escrevem, de abrirem pela primeira as páginas, sentirem o odor da tinta impressa. A necessidade de informação não é a mesma, actualmente está em todo o lado, jornais, smartphones, televisão, e rádio. Noutros tempos a escassez, a proibição e ocultação inibiram potenciais leitores, quem conseguiu ultrapassar a barreira recorreu às bibliotecas ambulantes incansáveis, únicas a trilharem o interior do país. Nestes exíguos espaços procuravam a informação como quem queria encontrar um tesouro, cresceram com as histórias, estão activos intelectualmente. Agora lesse por prazer, a descobrir lugares, a conhecer personagens, anónimos como nós, vidas vulgares, reveladoras de histórias merecedoras de atenção. Nas bibliotecas ambulantes a filiação não parou, não desabaram coberturas, há viajantes das viagens e andanças a transmitirem heranças, a  fazerem com que aconteçam memórias, a trazerem leitores do passado ao presente, fui um privilegiado hoje. 

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O regresso da chuva retirou força aos  grãos microscópicos, companheiros azucrinantes nas viagens e andanças, aos quais tenho muita hipersensibilidade. Vou ter assim um dia calmo relacionado com as alergias, no resto, os leitores, os empréstimos as visitas à biblioteca ambulante vou esperar e ver o que acontecerá. No Vale de Açor os preparativos para a festa nos primeiros dias do próximo mês prosseguem a bom ritmo, soube por um leitor que é a primeira após alguns anos de interregno. Espalhados no chão uma quantidade de paus compridos em madeira de apoio para estruturas, a área envolvente levou pedra britada, nivelando assim o espaço. A tarde trouxe leitores diferentes, colegas do canil intermunicipal tiraram vantagem da presença da biblioteca ambulante estacionada proximamente e vieram explorar histórias. Por aqui estiveram até terem a convicção das histórias para levarem. Depois foi rumar para outra aldeia, permanecer na sombra de uma tília, e aguardar por mais leitores. Diariamente vou descobrindo a naturalidade cada vez maior das pessoas à presença da biblioteca ambulante nas aldeias e nos bairros urbanos onde vai regularmente. A maneira como a vêem, ou passarem para dentro dela, tornou-se habitual, embora nos últimos dias olham-na com mais atenção. As novas cores e estampas geram curiosidade e interrogações aos que não sabem da transformação, receio mesmo que a vejam sem a reconhecerem. A barreira dos primeiros tempos das viagens e andanças parece estar finalmente a desmoronar-se com a redução progressiva ao ingresso, e iniciação à leitura assídua.

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Há música na Bia, há festa na aldeia, as palavras foram as bailarinas no Centro Social de S. Facundo. O acordeão soltou as melodias, e estas encheram o salão, bailaram com sorrisos de encherem a boca. Não houve leilão, não se venderam e arremataram palavras, como faziam noutros tempos os rapazes. "Compravam" o seu par, as raparigas bonitas com quem queriam dançar. Quem oferecia o maior lance, dançava com a rapariga desejada. Ora quantos escudos seriam necessários para manter o mesmo par a noite toda num bailarico na aldeia. Era assim muitas vezes que se pagava ao acordeonista que alegrava o baile. Quantos namoricos se iniciaram assim, o amor à primeira vista, ou a carteira volumosa? A primeira hipótese é a mais bonita, a que deveria ser. A segunda certamente também aconteceu, depois aprenderam com o tempo a gostarem uns dos outros. Nunca as histórias dançaram como agora, puxam os mais tolhidos a baterem o pé ao ritmo das músicas, as mãos, após o final de uma cantiga. Levantaram-se, e atrás uns dos outros, em fila terminou ao som do "Apita o comboio" a receptividade às histórias, à biblioteca ambulante. 

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O vento fustiga as aldeias da minha terra, esgota a paciência, ouço as  pessoas a falarem sozinhas na rua, ralham com a aragem pestífera, com os cabelos inquietos, com elas próprias, pelo dever de andarem na rua. A incumbência de virem à biblioteca ambulante não é reclamada, entram desarranjadas pela força da ventania, pela vontade de quererem ler histórias. Livram-se do cansaço causado pelo mal-estar da ventania, a pesquisarem histórias, lendo pequenos   excertos,  ou destinos para continuarem a seguirem em casa. Saem da biblioteca ambulante, voltam a criticar a fúria, empurram a força da natureza e desaparecem do olhar do viajante das viagens e andanças. Os Coldplay não param de tocar no rádio da biblioteca ambulante, estes mágicos enfeitiçam por estes dias a cidade de Coimbra e o país, até na pequena aldeia do Vale Zebrinho, no meio da charneca, abano a cabeça acompanhado o rítmo da música. A biblioteca ambulante espalha histórias por leitores, ou anónimos a viverem a ruralidade intensamente, ouvindo as músicas do silêncio, os gemidos de prazer do vento a bater nos rostos gretados pelo sol, de trabalharem ao ar livre de manhã à noite, desligados dos centros urbanos. Bem podia ser é uma telefonia portátil a deixar palavras aos olhos destas pessoas, motivando a não desistirem, influenciando outros de não terem receio de arriscarem no regresso,  a experienciarem vidas diferentes. O vento não me deixa ficar na aldeia, vou-me embora nas suas asas, sem deixar de ouvir a laboriosa telefonia.

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O calor abraçou a tarde depois da ventania acalmar, uma excentricidade que não faz falta nenhuma nas viagens e andanças com letras. Felizmente os leitores hoje abriram as portas das suas casas, e definiram vontade de saírem, virem à biblioteca ambulante, devolverem as histórias, levarem outras. Os cabelos no ar, foram só episódios rocambolescos, peripécias para os prenderem. A segurarem as histórias, não foi fácil, quem não passou pela experiência foram aqueles com menos cabelo. Têm sido inúmeros os elogios ao novo vestido da biblioteca ambulante,  a cor e as estampas têm seduzido novas pessoas a aproximarem-se, a espreitarem as histórias, destacando o trabalho da estilista, e da costureira. Só faltava agora a biblioteca ambulante estrear-se na Moda Lisboa ao lado das elegantes e bonitas modelos, disputando esta criação com costureiros e estilistas consagrados. Estilos não faltam nas histórias, na linguagem, escritores notáveis a escreverem a utilizarem as palavras, surpreendendo quem lê. Assim como os importantes costureiros a colocarem traços e cortes nos vestidos destacando a ousadia. «O mais importante na vida é ser-se criador - criar beleza» assim escreveu o poeta António Botto, patrono da biblioteca Municipal de Abrantes, avançando no poema (Curiosidades estéticas) por aí abaixo... Os criadores do vestido sentiram as novas estampas onde os olhos nunca as observaram. Imaginaram o que não  conseguiam possuir, ouviram uma voz a pedir vida, leitores. Percorreram na escuridão, tiveram fé e amor no trabalho executado. 

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A tarde está estranha, há ribeiros a perderam o sorriso, a água esgota-se, ficam as pedras, camas onde ninguém se quer deitar. Será por isto, que hoje os leitores desistiram de se juntarem com as histórias na biblioteca ambulante. Mencionei a anormalidade a envolver esta parte do dia, possivelmente os leitores caíram neste vazio e não conseguem subir, voltar para as histórias. Sei de um, assíduo leitor, de um momento para o outro, a vida pregou-lhe uma partida, perdeu a mulher, cometeu despropósitos, deixou de visitar a biblioteca ambulante. Foi institucionalizado, sempre ouvi dizer na oralidade das pessoas mais velhas, sábios, estamos começados, não sabemos como acabamos,  qualquer um no seu perfeito juízo pode perder a alegria repentinamente, como os ribeiros perdem a água. Sei quando volta o período das chuvas, um tempo cada vez mais raro, a água voltará a correr, e a esconder as pedras. Sei onde o leitor está formalmente resgatado, não é longe do estacionamento da biblioteca ambulante na aldeia onde está adoptado, meia dúzia de passos, verá as histórias acenarem-lhe. Serão elas a submergir  as pedras que lhe interromperam o caminho, voltará a ler, a perder a estribeira, desta vez a trilhar enredos.

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