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Histórias à Beira Rio, viagens e andanças com letras pelas aldeias da minha terra

"Afinal, a memória não é um acto de vontade. É uma coisa que acontece à revelia de nós próprios." Paul Auster

Histórias à Beira Rio, viagens e andanças com letras pelas aldeias da minha terra

"Afinal, a memória não é um acto de vontade. É uma coisa que acontece à revelia de nós próprios." Paul Auster

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As palavras não se calaram, as histórias continuam por cá, apenas a biblioteca ambulante está ausente das aldeias da minha terra. Os gritos moribundos das pastilhas dos travões, enfraquecidas de palmearem estradas e caminhos, os quais passaram a ser literários por vontade das pessoas, pelo apego obstinado do viajante das viagens e andanças. Não quero imaginar os clamores dessas pessoas, dos leitores sem histórias, privadas da presença da biblioteca ambulante, de pressentirem o retrocesso da solidão. De um momento para o outro deixaram de contemplarem a história de Abrantes estampada na estrutura da biblioteca ambulante. Daqui, onde estou, enclausurado,  monge dominicano impossibilitado de pregar, de anunciar a boa nova às aldeias, divulgando os ensinamentos que as histórias dão, estou sem rumo na corrente maneirista da arquitectura dos claustros. As rosas brancas abrandam o devaneio que me assalta constantemente,  os seus espinhos alertam-me da realidade, as viagens e andanças virão depois e não agora. 

 

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Um dilema acompanha-me há uns dias para cá, todas as vezes que o meu pé pressiona o pedal do travão da biblioteca ambulante, um som metálico e prolongado é audível. Os dias passam e o som está cada vez mais agonizante, as pastilhas do travão de uma das rodas necessitam de serem substituídas, até aqui tudo normal. Por motivos de agenda a biblioteca ambulante recentemente esteve ausente das aldeias. A minha hesitação não pode prolongar-se, uma paragem na oficina, com os colegas mecânicos a subsistirem o que está danificado resolverá o problema. Infelizmente a permanência nos bastidores das viagens e andanças vai coincidir nas visitas às mesmas aldeias da última ausência, como atrás referi. Percebem agora a dificuldade, nas incertezas no prosseguimento das viagens e andanças com letras pelas aldeias da minha terra. Os leitores destas últimas localidades só em Agosto vão poder renovar as histórias, o viajante das viagens e andanças também tem férias. De uma vez por todas compreendam a importância das histórias na vida dos leitores, da influência da biblioteca ambulante nas aldeias. Não posso adiar mais, correr o risco de danificar ainda mais os elementos que mantêm a segurança das histórias e dos outros que cruzam com elas nas estradas. São os leitores que ficarão prejudicados, é o viajante das viagens e andanças ficar amofinado nos dias que se seguem, conquistar leitores não foi, e não é fácil. Após a vinculação, os leitores mantêm-se, com as novidades nas histórias, na assiduidade constante nas aldeias, só assim os alicerces vincam. Não quero perder anos de conquistas, capturando leitores, iniciando amizades, com ausências às quais as histórias são alheias.

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O calor capturou as aldeias da minha terra, o torpor aprisionou o viajante das viagens e andanças, as palavras prosseguem lentamente a ocuparem o espaço em branco. Há leitores que arriscam  exporem-se ao sol para devolverem histórias, não ficarei magoado por quem não vier, compreendo perfeitamente que não queiram encarar o inferno. No verão levar histórias, permanecer na sombra protegido sob a ramagem das árvores, ao sol quando não há outras possibilidades, é difícil colocar as histórias nas mãos dos leitores, mesmo encontra-los. Só aqueles que não conseguem estar sem o conforto das palavras vêm ao encontro da biblioteca ambulante. As palavras refrescam, alimentam, dão qualidade a novas ideias. Telefonam a prolongarem a permanência  até à próxima visita, estão de férias, ausentes, numa praia qualquer a ver o mar. Não lhes apetece abandonarem a frescura das casas, dos espaços agradáveis que circundam as propriedades. As manhãs são melhores para os capturar, à boleia das carrinhas do pão, há sempre probabilidades de avistar leitores. Vêem a biblioteca ambulante acenando-lhes, rapidamente aproximam-se, ou vão recolher as histórias abandonadas, numa mesa, no quarto, ainda por ler. Na peça de mobiliário, junto à porta de acesso, assim não esquecem o dia de as devolverem. Depois, o sol ultrapassa o seu ponto mais alto, fica violento, e não há vivalma. Apesar dos indícios da presença humana, do património rural, estes não retiram  a palavra deserto, lugar desabitado, nas aldeias e lugares nos meses de verão. 

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O coreto na aldeia do Souto  enfeita o pequeno largo, relembra aos insensíveis, a importância que tiveram estas estruturas nas povoações do interior do país. Ao seu redor, escutavam e bailavam debaixo do som das bandas filarmónicas, dos acordeonistas a tocarem sem pararem música tradicional. Festas simples para gentes sem complicações, trabalhadores rurais descarregando emoções, e canseiras de meses de trabalho do nascer ao pôr do sol. Aqui as pessoas tiram vantagem da frescura do inicio do dia para beberem o café na pequena esplanada,  irem à mercearia, ao pão. O verão chegou, vai trazer os filhos e os netos da terra, com eles vêm outros a reboque, o rio a correr lá em baixo vai recebe-los nas suas águas temperadas num abraço cheio de saudade. As aldeias encetam os preparativos para as romarias anuais, na Atalaia o arco enfeitado atravessando a estrada de um lado ao outro é o primeiro sinal para a festa que vai acontecer. No arraial já está preparado o minúsculo espaço da Sagres, onde muitos irão matar a sede, afogarem desgostos, enxotarem desgraças, e celebrarem alegrias, o São João. As lâmpadas coloridas no alto  cruzam a totalidade da  área do arraial. Há no ar uma agitação incomum, os próximos dias vão ser os melhores dos restantes que aí vêm até à próxima viagem a transbordarem felicidade. A tarde surpreende-me com o vento leve a entrar na biblioteca ambulante e a trazer fôlego ao viajante das viagens e andanças. Seria bom que acontecesse o mesmo aos leitores, encorajando-os a saírem de suas casas, sequiosos por palavras frescas, asfixiarem-se nas páginas das histórias, expulsando infortúnios e demónios, a enaltecerem a leitura.

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O verão entrou desajeitado dando sinais do que aí vem nos próximos meses, a frescura destes últimos dias está condenada a acabar. A primavera despede-se, desmanchando em lágrimas uma época de campos floridos, foram estas as palavras levadas pelo vento incansável a passar nos enredos da charneca, nas voltas nas margens dos rios, a trazerem novos leitores. Histórias novas caíram lagrimando o vidro grande da biblioteca ambulante, a primavera é pois um campo a germinar sentimentos. Esta alegria espalhou-se na tarde de hoje, os leitores esperando uns pelos outros na devolução e na pesquisa de outras histórias. Novos e velhos misturados, tentando ao mesmo tempo tirarem algo, colherem as flores certas,  cheirarem os odores perfeitos. Sem o saberem são perfumistas, inspiram histórias, atraindo outros libertando  fragrâncias literárias diferentes por onde passam.

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O fio, a linha na qual transponho distâncias, equilibrando-me diariamente a chegar ao exterior, partiu-se. Fiquei no lado da criação, na folha branca por escrever. Actualmente é complicado perder a engrenagem, habituado à produção súbita dos pensamentos, da instantaneidade de comunicar observações e oralidades dispersas, afogo-me no processo onde aprendi a comunicar. Perdi aquela frouxidão de deixar para depois, há tempo, locais próprios para distender memórias, as ideias que brigam agora na minha mente. Mas, isso foi noutro tempo, estou no escuro, faltou a luz, não vejo como atingi-los imediatamente. Queria estar como a manada, quando a avistei enquanto percorria a estrada na biblioteca ambulante, na sombra dos sobreiros, estendido na erva a ver duração das coisas a passar despreocupadamente. Longe dos pensamentos, esperando que outro dia chegasse, e mais outros sucessivamente. Apresso-me a escrever numa folha de papel, para não perder pitada do que se desprende da mente. Rasuro, volto a escrever, avanço, galgado até à margem da folha, abrando, não sei se faço a curva, repentinamente, ponto final. Sigo, escrevendo em baixo após uma pausa, não sei ainda como terminar... No céu, as nuvens baixas, deslocam-se vagarosamente, não têm pressa ao contrário do viajante das viagens e andanças. No momento próprio descarregam o que lhes vai no interior, água, o que mais precisamos, tinta, para a terra conseguir escrever a palavra esperança.

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Apostaria a leitura de meia dúzia de histórias em cada mês do verão, para isso acontecer a temperatura atmosférica não ultrapassaria os 30º Celcius. Hoje a cor azul do céu dissolveu-se no pano cinzento, a poucos dias de se abrirem as portas ao estio, há muito anunciado como um dos piores, seco e quente. Dante Alighieri nos seus melhores dias nunca imaginou que o conceito do seu Inferno poderia acontecer, ser adaptado, no futuro, aos dias de hoje, nas aldeias da minha terra, transformadas em lugares sofríveis no verão. O calor, os incêndios, tornaram estes locais num suplício ardente nas profundezas do interior de um país deslumbrado, a banhos de sol, e de mar sem utilidade a perder de vista. Não sei o mal que fizemos para estarmos sujeitos a esta condenação eterna, até os arrependimentos são impossíveis, num território de viagens e andanças, onde não há montanhas. Só planaltos acompanhando extensos vales, a precipitarem-se na direcção dos rios. Felizmente quem quiser pode ter a visão do paraíso, a biblioteca ambulante, céu azul acessível a todos, purificadora das almas ignorantes, independentemente do desenvolvimento intelectual e da capacidade humana de cada um. 

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As Festas da Cidade de Abrantes terminaram, com elas a falsa ilusão de um núcleo antigo habitualmente cheio de pessoas. A biblioteca ambulante está na estrada, nas aldeias da minha terra outra vez, as tílias com os odores das suas flores, o chilrear dos pássaros, enganariam aqueles que lêem estas crónicas se fosse possível ao mesmo tempo inspirar e ouvir o ar e o meio envolvente. Julgando eles que estariam no campo, quando na realidade as histórias se encontram situadas dentro do espaço urbano. O calor inicia a escalada para hoje, para lá dos 34º, quero os leitores na rua, a caminharem na direcção da biblioteca ambulante, vê-los novamente a procurarem histórias. Na esplanada estão duas mulheres sentadas, os olhares espantados transmitem surpresa, para elas talvez seja impensável uma biblioteca ambulante percorrer os meandros do bairro tentado cativar possíveis leitores. Esta perseguição nem sempre tem sucesso, por detrás dos estores estão olhos curiosos, não se cansam de observar o alheio, ainda para mais hoje  as histórias a darem um bom motivo para muitas conversas. Se assim for, é muito bom, sem atingirem o patamar dos preveligiados, propagam a visita destas, quem não sabe ficará informado da presença da biblioteca ambulante. Atrás de mim a esplanada voltou a ter pessoas, bebem o café da manhã, se quisessem leriam os jornais do dia, disponíveis no escaparate, estes detalhes tentam ser desbloqueados, o êxito é alcançado quando aceitam a oferta, ou demonstram curiosidade a tentarem perceber junto do viajante das viagens e andanças a funcionalidade e o trabalho desenvolvido.

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Não é a rainha da festa, mas são as histórias a receberem os visitantes nas Festas da Cidade de Abrantes. As bibliotecas são uma experiência centenária na cidade, e nas aldeias da minha terra, reconduziu, devolve as pessoas, modifica opiniões. Nestes dias de celebração a povoação com maior amplitude e importância, os livros e a leitura destacam-se trazendo à memória as aldeias os lugares, os territórios reunidos na itinerância da biblioteca ambulante. Continuam no regaço das histórias, na preocupação do viajante das viagens e andanças. Nos poucos dias de ausência, o tempo descomedido sem leitura poderá provocar impaciência, normal naqueles acostumados a perderem-se nas pausas, melodias e entonações, entre folhas consumidas por dedos ávidos. Não se afasta ninguém do conjunto de saberes, as histórias ou acontecimentos continuam nas aldeias, na oralidade da comunidade, na singularidade dos aldeões, fixadas ao longo dos tempos.

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Não é a rainha da festa, mas são as histórias a receberem os visitantes nas Festas da Cidade de Abrantes. As bibliotecas são uma experiência centenária na cidade, e nas aldeias da minha terra, reconduziu, devolve as pessoas, modifica opiniões. Nestes dias de celebração a povoação com maior amplitude e importância, os livros e a leitura destacam-se trazendo à memória as aldeias os lugares, os territórios reunidos na itinerância da biblioteca ambulante. Continuam no regaço das histórias, na preocupação do viajante das viagens e andanças. Nos poucos dias de ausência, o tempo descomedido sem leitura poderá provocar impaciência, normal naqueles acostumados a perderem-se nas pausas, melodias e entonações, entre folhas consumidas por dedos ávidos. Não se afasta ninguém do conjunto de saberes, as histórias ou acontecimentos continuam nas aldeias, na oralidade da comunidade, na singularidade dos aldeões, fixadas ao longo tempo.

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