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Histórias à Beira Rio, viagens e andanças com letras pelas aldeias da minha terra

"Afinal, a memória não é um acto de vontade. É uma coisa que acontece à revelia de nós próprios." Paul Auster

Histórias à Beira Rio, viagens e andanças com letras pelas aldeias da minha terra

"Afinal, a memória não é um acto de vontade. É uma coisa que acontece à revelia de nós próprios." Paul Auster

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O único ocupante do largo é o sol, exceptuando as silhuetas fugazes projectadas no pequeno espaço, surgem  e desaparecem, misturam-se com os contornos dos edifícios, não tenho tempo para ver quem são. Uma delas transformou-se num leitor, assustou-me quando o vi entrar pela porta traseira da biblioteca ambulante. Neste teatro de sombras chinesas improvável, pus-me adivinhar o que representavam, homem ou mulher, um gato vadio ou um cão desobedecendo ao cativeiro de uma corrente que o prendia, a enfrentarem o calor. Silhuetas que recontam histórias, narram o presente do largo, esguias, mais cheias, curvadas. Imagens reflectidas no alcatrão, onde estiveram a terra e as pedras, sombreadas quando o sol assim o exigia.  Na obscuridade do interior da biblioteca ambulante as histórias dão calor aos leitores, brilham nas aldeias da minha terra.

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O sol está cruel a meio da manhã, não quero imaginar depois do meio dia e por aí adiante. Abrasador vai afastar as pessoas da rua, não é nada demais, chegamos a meio do ano, na entrada do verão as conversas são sempre as mesmas, o calor. Acontecem com os leitores, mesmo as pessoas das aldeias aproximam-se a reclamarem do exagero do astro. O passado ficou para trás, com ele as temperaturas elevadas dos anos anteriores, é sempre assim, a memória esquece-as, o presente é mais importante, é agora, hoje. Está calor, o verão vai delongar, o largo na aldeia do Tubaral continua abandonado, as histórias tentam reanima-lo sem sucesso. Espreito a rua detrás de uma cortina resistente ao tempo na antiga escola de Alferrarede Velha, a fresta mostra-me a biblioteca ambulante, estacionada sob um sol escaldante. O sofrimento das histórias ali fechadas não tem igual, não faltará muito para as portas se abrirem e entrarem leitores para salva-las do grande tormento. Atrás de mim escutam textos e poemas lidos pela Sílvia e Ana Paula, imortalizados pela caneta do António Botto, os momentos de silêncio terminam para se dirigirem na direcção da biblioteca ambulante. Seguem-se as questões habituais, tem isto, qual o nome do autor... que escreveu... gostei muito do livro que li... Julgamentos relacionados com assuntos que nada têm de leituras, mas merecedores de serem lidos, enredos e tramas, escritas instantâneas, subitamente geradas pelo pensamento e divulgadas oralmente de uma forma satírica. São assim os dias de verão nas aldeias da minha terra, a levar, a ler, a fazer sonhar.

 

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O pequeno campo de melancias, onde algumas sobressaem pelo tamanho não passa despercebido ao viajante das viagens e andanças. É cobiçado pelo seu olhar sedento, pela vontade de uma fatia fresca do fruto, imóvel no meio das plantas. Nas aldeias alternando a continuidade das estruturas em alvenaria,  deparo sempre com pequenas parcelas de terra cultivada a envolver, defronte a áreas habitacionais, hortas improvisadas. Com o tempo ganharam definitivamente os espaços ocupados por anos seguidos a gerarem frutos e legumes. Também as histórias ganharam lugar nas aldeias da minha terra, dez anos a frutificarem leitores, ainda poucos para um território vasto. Aqui e ali, nas aldeias da minha terra nascem leitores, puxados pela curiosidade, empurrados por outros habituados a não perderem as ,palavras que mudam o mundo. A melancia combate o calor, previne a desidratação enquanto a consumimos, a sua ingestão assemelha-se com a leitura. Ao bebermos o sumo da leitura combatemos a incapacidade de ler, de escrever, evitamos a incompreensão. Hoje morreu Milan Kundera.

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Outra vez no largo do coreto na aldeia do Souto, o café está fechado, na porta, um letreiro informa os clientes da abertura somente às 15h30m. Quando entrei na aldeia via-me a beber um café após estacionar a biblioteca ambulante, não aconteceu, fiquei desapontado sem saber como recuar a sonolência a torturar-me. No dia mundial da população esperava ver mais pessoas no largo, na esplanada do estabelecimento Mourisco Café. O período é propício para aumentar a densidade populacional nas aldeias, esporadicamente estas aglomerações alimentam os que estão cá com alegria, afastam a solidão em que muitos deles vivem. As histórias até agora estão órfãs dos leitores, das pessoas, frequentadoras do largo pela manhã, sem ancoradouro estas dispersam-se navegando ao sabor do vento, aguardando a tarde para se firmarem solidamente nas cadeiras do café. Fundeada depois de navegar, a biblioteca ambulante chegou ao destino sem necessitar de utilizar o astrolábio, o quadrante, a bússola e a balestilha, instrumentos náuticos de outros tempos, que facilitaram outros marinheiros a descobrirem terras novas.  É uma embarcação constantemente a teimar, aportando nas aldeias da minha terra, convidando as pessoas a embarcarem, a viajarem nas histórias, a descobrirem pensamentos diferentes, outros mundos. Voltei ao início do texto, disseram-me que alguém quer embarcar na biblioteca ambulante, rumar a outras paragens.

 

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O calor afastou os locais do largo da aldeia, protegem-se no interior do café, sob a corrente de ar frio que sai da máquina sem se cansar de o bafejar. Só assim  conseguem enganar a temperatura quente em vésperas de fim de semana. Aproximaram-se três pessoas a espreitar a biblioteca ambulante, a mais velha desses visitantes procedia como uma guia turística, explicando aos mais novos a função do veículo. Nunca a tinha visto, muito menos no interior da biblioteca ambulante a explorar leituras, a atitude foi a de uma pessoa próxima das histórias. O jovem casal que a acompanhava, trazendo um deles nos braços um pequenote de tenra idade, observava com curiosidade e questionava-me. A mais velha voltava a impor-se no diálogo, mencionando a itinerância da biblioteca pelas aldeias do concelho. Abalaram após satisfazerem as curiosidades, fiquei a pensar da importância cada vez maior da biblioteca ambulante nas aldeias da minha terra, mesmo quem não frequenta conhece os passos das histórias, como ficam em cada aldeia, o período de tempo na casas dos leitores, e quando é o regresso outra vez das que ficaram na biblioteca ambulante. Marcou-me o orgulho exposto naquela pessoa, na presença da biblioteca ambulante, das histórias na sua aldeia,  na apresentação, da mesma ao jovem casal emigrado em Londres, e a gozarem umas merecidas férias. O ruído dos ornamentos em cima, a cortarem o vento sobrepõe-se a todos os outros, dão esperança, avisam os forasteiros que a aldeia está viva, chamam pessoas.

 

 

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Seleccionar um livro, uma revista, objectos com informação, incluindo os audiovisuais, tem o seu tempo. A biblioteca ambulante terminou a viagem de escassos oito quilómetros na prolongada autoestrada A23, de uma aldeia para outra, um luxo este acesso alternativo, sem sobrecarregar o estado com automatismos de portagem. São aproximadamente sete minutos onde as histórias vão em segurança e sem alarmismo de fugacidade. Neste período de tempo na biblioteca  ambulante, há leitores sem conseguirem optarem pela história que lhes dará a passagem a outros destinos sem necessidade de serem tributados. Compreendo a lentidão, o cuidado a lerem as primeiras letras, a sucessão de acontecimentos previstos, trazem a curiosidade, a dúvida no momento da escolha do autor, ou do título que lhes abrirá as portas aos  itinerários. 

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Têm sido uns dias difíceis a estabilizar leituras, estar ao mesmo tempo nos lugares planejados e nas aldeias onde faltou a leitura no tempo certo. Para trás ficaram aldeias sem fim, pessoas felizes, por finalmente  conseguirem as histórias tão desejadas. Não foram oitenta dias à volta do mundo, mas três dias (ainda não terminaram) a circular pelas aldeias da minha terra numa inquietação nunca antes interpretada pelo viajante das viagens e andanças. Júlio Verne não teria imaginação para uma história assim. Não quero repetir a experiência, nunca mais quero andar à volta da lua, a telefonar, a questionar, a saber onde estão os leitores, quero viajar no centro das aldeias da minha terra, conforme está detalhado no plano. Dias intensos, ajustando atalhos aos itinerários estabelecidos, diálogos apressados com leitores, estar a horas na aldeia seguinte, na improvisada, é importante para não atrasar leituras, pessoas à beira de um ataque de nervos. Acreditem, é verdade o que escrevo, as histórias entranharam-se nas gentes da minha terra, a biblioteca ambulante é um activo fundamental, não pode  estar neutralizada num qualquer lugar que seja. Acompanhem o seu rumo ao longo dos dias, as pessoas que a frequentam, os leitores, a solidão dos lugares onde permanece. Concluirão que não é imaginação de quem gosta de escrever, mas de quem continua a conhecer o território, a respeitar as gentes da minha terra, a levar histórias ao fim do mundo se for necessário.

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Novamente na estrada, ir ao encontro dos bem aventurados nas páginas das histórias, a repor a leitura atrasada pela paragem imprevista da biblioteca ambulante. Não esperavam a visita repentina, vi isso nos olhos e nos sorrisos rasgados quando chegaram com as histórias. O vento não está para brincadeiras esta manhã, não houve melhor boleia para a biblioteca ambulante chegar à aldeia de Martinchel. Pouco antes de terminar a viagem nas asas do vento selvagem, telefonavam ao viajante das viagens e andanças a confirmar a presença das histórias na aldeia, à sombra das tílias, no pequeno e renovado espaço à beira da estrada, onde o trânsito automóvel nunca dorme. A impaciência da nova leitora exigiu à mãe um telefonema para a biblioteca ambulante, não fosse estar demasiado retardada, ou não viesse. A primeira vez que se pisa o chão das histórias, não se consegue estar quieto, de um lado para o outro a rotação da cabeça, o movimento do corpo, o olhar curioso, inquieto, a absorver tudo ao redor, é sempre esta imagem que tenho dos leitores no primeiro dia que contactam as histórias na biblioteca ambulante. Foi o que a Mariana fez, será o que o próximo fará, o cheiro do papel, demasiadas lombadas, umas descaídas, outras direitas, ou coladas umas com as outras. Um campo colorido cheio de palavras intermináveis, uma mistura a desorientar o começo da leitora na sua nova biblioteca. O som das cigarras a esfregarem as asas traz o verão ao Carvalhal, a última aldeia desta terça feira.