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Histórias à Beira Rio, viagens e andanças com letras pelas aldeias da minha terra

"Afinal, a memória não é um acto de vontade. É uma coisa que acontece à revelia de nós próprios." Paul Auster

Histórias à Beira Rio, viagens e andanças com letras pelas aldeias da minha terra

"Afinal, a memória não é um acto de vontade. É uma coisa que acontece à revelia de nós próprios." Paul Auster

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O vento entra com ímpeto na  biblioteca ambulante, a frescura que o acompanha alivia o viajante das viagens e andanças. Ventila as histórias mais empoeiradas pelo debilitado manuseamento das mesmas por parte dos leitores. Demasiadas ausências neste mês, não estão na lista das favoritas dos leitores, ficam sem se mexerem, abandonadas nas estantes, órfãs. Adoptadas são aquelas badaladas nas televisões, nos meios de divulgação, criadas por escritores famosos, quase nunca permanecem nas estantes da biblioteca ambulante. Nos primeiros tempos as reservas são permanentes, são devolvidas, para serem entregues imediatamente a outros leitores desejosos de lhes tocarem. Cativam as histórias como quem agarra um filho pequeno, mimando-as, lendo as primeiras palavras cheios de entusiasmo. Estes movimentos expressados pelos leitores em relação com as histórias fazem-me acreditar cada vez mais da importância da biblioteca na vida das pessoas das aldeias da minha terra.

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Continuam a olharem a biblioteca ambulante, como uma extraterrestre, o E.T. vulgarizou-se após o filme produzido e dirigido por Steven Spielberg, em 1982. As bibliotecas sobre rodas já anunciavam histórias de seres oriundos de planetas desconhecidos, nos acervos que transportavam nos regaços. As naves voadoras, sem medo de penetrarem nos territórios fechados ao conhecimento, quando avistadas causam espanto, admiração e estranheza pelo seu aspecto, quantidade de livros, a missão dos pilotos. Levam de um lado para o outro projécteis literários, lançados a grande velocidade, são traços de letras luminosas capazes de atingirem as pessoas, uma guerra duradoira, sem fim à vista. Atingem velocidades supersónicas, só assim conseguem chegar a muitos lugares do planeta, a regiões diminuídas de densidade populacional. Alvos ocultados na iliteracia, na timidez, fica difícil aos pilotos acertarem-lhes. Se forem alvejados por algum projéctil, os ferimentos permitirão  libertar a insegurança que nasceu com eles. Há muitos avistamentos destes veículos interplanetários, as ligações  diplomáticas entre os alienígenas e os povos rurais, como são conhecidos, estão a resultar, lentamente aproximam-se, os tiros certeiros causam pânico,  não deixam fugir a oportunidade de melhorarem o conhecimento, de viajarem. Partem numa aventura da qual nunca mais regressam ao que viveram, para estes o céu é o limite. 

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Pela janela da casa das histórias as pessoas entram no meu olhar, ausentes, indiferentes à reunião das palavras. A curiosidade morreu no largo, a vontade sumiu-se de conhecer, de viver o momento da presença da biblioteca ambulante. Atravessam-no cabisbaixas, cansadas do tempo, delas próprias, não reagem, a rotina capturou-as definitamente. Apesar das histórias acenarem-lhes com as letras dançando à janela, continuam no caminho desprovido de conhecimento. No chão do largo, as marcas da informação não deixam ninguém indiferente, afinal há aqui comunicação. Porque viram os olhares às histórias?

 

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O sol está toldado, apanhado de surpresa na desaceleração repentina do verão, a marca da travagem está representada nas pessoas a usarem casacos com pouca espessura. Nesta semana, nos dias infernais, saíamos para a rua  livrando-nos da roupa possível, tentando estarmos mais confortáveis. O vai-vem do planeta está cada vez mais instável, as viagens e andanças com letras pelas aldeias da minha terra, são fortemente influenciadas pela ausência da firmeza climática. As pessoas, os leitores, o património natural, estão constantemente a sofrerem alterações. O quotidiano na aldeia do Vale do Açor parece inalterável aos olhos daqueles que atravessam a aldeia, nem tudo está como dantes, os mais velhos reclamam da excessiva temperatura, cada vez mais intrometida no modo de viver desta gente.  A tarde puxou o vento, seria bom trazer os leitores também,  a biblioteca ambulante está na aldeia das Bicas, aproveitando a generosidade da tília que não se opõe ao abuso da sua sombra. O vento é mais forte, supera a força de vontade do viajante das viagens e andanças conseguir leitores, entra e sai na biblioteca ambulante rapidamente, agitando as folhas dos jornais à sua passagem, acredito que leve a boa nova. O peixeiro com a sua música melodiosa também não demove as pessoas a saírem de suas casas, o som perde-se nas entranhas do vento, levando-o com ele a desafiar os pássaros silenciosos. Um pequeno circo instalou-se no largo da aldeia de S. Miguel do Rio Torto, sem a tenda enorme, estes artistas nómadas têm tudo preparado para a actuação. As folhas das árvores dançam acompanhando o som que sai das enormes colunas a ladearem o exíguo espaço das apresentações artísticas. O largo da aldeia está inquieto, a pequenada montada nas bicicletas não se cansa de cirandar junto das roulotes. Tentam advinhar qual deles, os que ali estão no centro, colocando as cadeiras para o público se sentar, é o palhaço, o malabarista, o ilusionista, ou a contorcionista. As histórias sempre foram a atracção do largo, hoje perderam o protagonismo, dois ofícios ambulantes, duas paixões a pensarem na qualidade de vida das pessoas.

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O frescor matinal entusiasmou os habitantes da aldeia de S. Facundo, a leitora habitual, num abrir e fechar de olhos renovou as histórias, o viajante das viagens e andanças escreve com agilidade a sua crónica. Querendo antecipar-se ao calor do meio-dia, os rostos sorridentes passam perto da biblioteca ambulante, mexendo as bocas, saudando o bibliotecário. Já se vindima na aldeia da Ribeira do Fernando, sei isto pela mulher de um leitor, pelo telefone disse-me que o Manuel não pode trazer as histórias, ele e mais alguns andam a colher as uvas maduras. Há muito que observo nas vinhas os cachos gordos e roxos, pendurados, expõem-se sem vergonha, são poemas libertinos, fáceis de comermos os seus bagos doces. No vinhedo, munidos de tesouras e cestos, chapéus na cabeça para se protegerem da violência do sol, andam mulheres e homens. Terrenos abertos, páginas de plantas perfiladas, onde as letras suspensas são aptecíveis aos olhares conhecedores daqueles que as vão colher. O melhor está ainda para vir, na mesa, após um período de amadurecimento, de uma nova leitura, ouvindo as palavras dissolvidas nos copos. Escorrendo nas gargantas sequiosas de temas, capacitando os mais tímidos de  falarem sem receios.

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No campanário da igreja, o relógio dá as 15h, um pouco abaixo envolvida na sombra do plátano grande, a biblioteca ambulante é favorecida pelo sopro, ao mesmo tempo, quente e fresco do vento. O sussurrar da aragem bate na charneca e regressa logo trazendo o fremir dos insectos pousados nos ramos das árvores. O vento não sabe o que quer, tem momentos que não se sente, parece adormecido, é engano meu, sem avisar volta a agitar as copas das árvores. Os pássaros não se ouvem, também eles sofrem com o calor, camuflados na folhagem, talvez aproveitando o embalo do vento quando o há, adormecem numa sesta merecedora. O relógio volta a tocar, desta vez projectou as 15h30m, finalmente surge um automóvel, é preciso coragem para conduzi-lo, um forno sobre rodas, sei bem o que é. Leitores nem vê-los, a novidade foi um pequeno pássaro cinzento querer arriscar entrar na biblioteca ambulante, não sei decifrar a linguagem dos pássaros para perceber o que pretendia. Talvez depenicar as letras das histórias, o tempo da construção dos ninhos já passou, como seria um ninho erigido por letras. Os passaritos aprendiam a ler até se aventurarem no primeiro voo, batendo as asas conscientes dos perigos, do homem analfabeto.

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Quando estaciono a biblioteca ambulante, trago sempre alguma ideia, ou um tema para iniciar a escrita do dia nas aldeias. A manhã preserva a inspiração aprisionada no resto do dia anterior, durante a noite a tentar esquecer a temperatura, há que aproveitar a oportunidade, esta arrumação toda baralha-se em Rio de Moinhos. A mesma leitora surge sempre quando estou no início de esvaziar as palavras  para a folha digital, o texto começa  logo aos solavancos. Entra na biblioteca  a falar, explora  as histórias para levar a expressar-se como se o mundo terminasse brevemente, e não obtivesse tempo de dizer tudo. Neste momento o meu cérebro entra em ebulição, a tentar manter o conceito  esboçado, a pouco e pouco avanço, escutando o que me vai dizendo, solto algumas palavras sem tirar os olhos da folha, ouço-a atentamente, querendo delinear ao mesmo tempo sem me perder no teor. Muito do que oiço, não é novidade, repete-se nalgumas das histórias, mexo a cabeça de cima para baixo, aprovando o que diz. Ultrapassado o intervalo, encontro novamente o rumo, no que escrevo, para a aldeia seguinte. Agora o calor é o meu parceiro, andou aqui um leitor, estava longe de imaginar que a indecião, encontrar a  história certa, o autor preferido, o que nunca  leu, deixava o leitor a escorrer gotículas de suor pelo rosto. Um esforço árduo mesmo para quem é um assíduo leitor, o mesmo faz o arqueólogo na escavação para achar testemunhos de escritas primitivas. Ou o bibliotecário da biblioteca ambulante, o que se faz por paixão não gera cansaço ou fraqueza.

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Hoje o dia promete temperaturas elevadas nas aldeias da minha terra, não é novidade por aqui o intenso calor. A boa nova foi uma leitora vir devolver a história lida, e levar outra, um bom sinal para o início de semana de viagens e andanças. O silêncio no largo é interrompido pelo som das pás, dos martelos, da betoneira misturando a solidão e o isolamento. Serão posteriormente fixados nos blocos de argila para serem eliminados pela tinta que cobrirá de novo as paredes de uma casa a ser reabilitada, este ruído traz esperança à aldeia. O zumbido das vozes dos operários sobressai por momentos, um deles deixa-se vislumbrar quando tem necessidade de encher um balde com areia, surge de cigarro ao canto da boca, parecendo o " Marlboro Man ",  uma camisola branca sem mangas, alivia-lhe o calor. Segundo a leitora, têm sido compradas algumas casas na aldeia, após a sua recuperação, vem gente nova nas férias, estes novos habitantes sazonais trazem outros, as casas estão assim ocupadas durante o verão. Um pequeno passo para ficarem preenchidas permanentemente num futuro próximo, seria bom.  O calor destaca-se em Alvega, a sombra atenua a colisão dos raios solares com a biblioteca ambulante, ninguém se atreve a passar no largo do coreto, os pássaros não se ouvem, os cães e os gatos não se deixam ver. A tarde está concluída a respeito dos leitores e da sua presença junto das histórias.  Não compreendo porque desistem da continuidade, a canícula afugenta qualquer um, bem sei, mas as histórias são pedras de gelo, dão qualidade quando se lêem, arrefecem tristezas, os medos da solidão.

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Os automóveis ocupam os lugares destinados ao parqueamento no centro da aldeia, a biblioteca ambulante não teve outra solução do que improvisar um espaço para permanecer no Souto. Em pleno mês de Agosto, os filhos da terra regressaram para gozarem alguns dias das férias. Bronzeados pelo sol das praias onde se mantiveram nas primeiras semanas, passeiam-se na rua mais importante da aldeia.  Os gigantes chapéus na esplanada do café,  protegem-nos do sol atrevido enquanto saboreiam o café matinal. O rumorejar das conversas chegam ao viajante das viagens e andanças, o som é interrompido quando o relógio da igreja decide prazentear as onze horas,  alto e bom som. Depois de uns meses de ausência da aldeia, os diálogos são renhidos entre eles, as curiosidades, as novidades, sobre a aldeia, dos lugares de onde vêm, sobrepõem-se a quaisquer problemas. Os avôs trazem os netos pela mão à mercearia, estas visitas,  fazer ver aos outros, trazem sempre recompensas aos pequenos, quase sempre saem a segurar nas mãos um chupa-chupa, ou um gelado. No cemitério local as flores novas e coloridas relembram a continuação dos entes queridos no seio da aldeia, desviam os momentos mais difíceis. As ruas engalanadas anunciam a festa no final da semana, os automóveis guiados por aqueles que pretendem beber um café depois do almoço, na Sociedade Recreativa, continuam a surpreender o viajante das viagens e andanças, aos olhos de alguns, são veículos do outro mundo. Do interior destas diabólicas máquinas ressaltam olhares esbugalhados na direcção da biblioteca ambulante, oriundos do novo mundo, do distrito de Lisboa, não sabem tudo. 

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Não está no planeamento, uma e outra têm existências independentes, são guiadas para uma mesma direcção, as pessoas. Hoje encontraram-se ambas na aldeia do Crucifixo, vão estar juntas durante a tarde, segue-se a vila do Tramagal. A papelada e as histórias andam sempre desencontradas, a norte, e a sul do rio Tejo, pelas aldeias da minha terra, uma vez por outra descobrem-se uma à outra. Neste momento a Carrinha do Cidadão tem um freguês sendo informado sobre o assunto que o trouxe junto da mesma. Os leitores nesta aldeia são poucos e fazem intervalos prolongados, não me lembro qual foi o último a estar no interior da biblioteca ambulante. Umas quantas mesas e cadeiras próximas da entrada do café acolhem alguns homens, as suas conversas chegam-me aos ouvidos, trazidas pelo vento, esgrimam palavras sobre futebol. O tema são os recentes jogos disputados pelos clubes que idolatram, os primeiros do calendário desta época. Reclamam as tácticas adoptadas pelos treinadores, as más e boas arbitragens dos homens de negro e tudo o que envolve o futebol, independentemente da vontade de cada um deles. No Tramagal, as pessoas dividiram-se por ambas as carrinhas, houve quem frequentou as duas, as histórias foram exploradas, na carrinha ao lado os papéis são muitos, as pessoas não querem atrasar-se, chegam todas ao mesmo tempo.

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