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Histórias à Beira Rio, viagens e andanças com letras pelas aldeias da minha terra

"Afinal, a memória não é um acto de vontade. É uma coisa que acontece à revelia de nós próprios." Paul Auster

Histórias à Beira Rio, viagens e andanças com letras pelas aldeias da minha terra

"Afinal, a memória não é um acto de vontade. É uma coisa que acontece à revelia de nós próprios." Paul Auster

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O espaço no centro da aldeia está a ser cuidadosamente limpo, as ervas daninhas são arrancadas por alfaias mecanizadas, o restante acumulado na rua é afastado violentamente pelo sopro de outra máquina. Substituta de Éolo, o Deus do vento, esta é manobrada por um homem, é possível que seja Zeus, pai dos deuses, só tem de fazer pressão com um dedo num botão, depois os mecanismos recebem a energia e o soprador de folhas ganha vida, os quatro grandes ventos fazem o resto, levando tudo à sua frente. Aproxima-se o dia da celebração do nascimento do poeta António Botto, na aldeia da Concavada, tem de estar tudo arrumado para receber a actuação do Grupo de Teatro Palha de Abrantes, com a sua nova representação, "Botto em palavras" .Quinta feira, dia 17, o largo acolherá os locais, os forasteiros curiosos, os que não sabem quem foi António Botto, contemporâneo, amigo de Fernando Pessoa e de outros criadores da época. Ventos menores trazem odores de tabaco, só podem estar fumando os clientes sentados na esplanada do Café do Largo. Ocupando um pedaço do passeio, duas mesas, umas quantas cadeiras e grades de cerveja empilhadas dão visibilidade ao espaço, ou a quem precise de se refrescar. A estrada nacional também atrai, e há os que estão ali a ocupar as cadeiras a verem passar os carros, o tempo. À semelhança da outra aldeia onde a biblioteca ambulante e as histórias vão, a estrada é a mesma, as pessoas são outras, os hábitos não se alteram. A ausência de ocupação empurra-os para a companhia do alcóol e da vagabundagem, onde os cigarros fumados atrás uns dos outros são confidentes.

11 Ago, 2023

O gato leitor ...

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Os automóveis observados no retrovisor lateral da biblioteca ambulante a transitarem na auto-estrada, somem-se rapidamente, são como lermos histórias sem pregar o olho numa noite. São  veículos potentes, circulam depressa, as histórias merecedoras de atenção, são lidas apressadamente, para chegarmos ambos ao destino o mais rapidamente possível. Nos primeiros a vontade de cumprirem horários, estarem nas suas cidades, em casa, após um dia de trabalho. Viajarem para o litoral na direcção das praias, uma nova quinzena de férias está a iniciar, o regresso para outros. Com as histórias, nas páginas não há pausas, quando o tema é apelativo ao leitor, o desenlace gera curiosidade, as personagens, a vida destas ao longo do texto. Chegarão ao fim, ficarão pelo caminho, no final de um capítulo por exemplo. O relacionamento umas com as outras, as cidades, as regiões, no mar, nos rios, nas florestas, uma quantidade ilimitada de possibilidades para quem escreve, poder estender as palavras. O gato leitor, pode ser um modelo para representar um papel, assim como a biblioteca ambulante um "plateau" para a história se desenrolar.

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Estou na aldeia da Lampreia, não se vê ninguém na rua, excepto quem abre ou fecha o portão grande de cor azul, situado do lado oposto da estrada, ao local onde me encontro. As entradas e saídas foram algumas, pensei que as pessoas da aldeia estivesse todas ali, na quinta, guardada por muros pintados de azul e branco. Não consigo vislumbra-las como quero, são rápidas a entrarem nos veículos.  O sol e o vento são os únicos a visitarem a biblioteca ambulante, envolvidos na rua principal, disputam qual deles entra primeiro no espaço das histórias. A sombra também lá está, mas esta pertence ao sol, afastando-se para se afogar no horizonte, o sol deixa a sombra aproximar-se. Chega atrasada, e não vai a tempo de estar com as histórias, a biblioteca ambulante nesse momento estará noutra aldeia. Nesta última, a tranquilidade não existe, a passagem sem limite de veículos motorizados, ligeiros pesados, motociclos, motores barulhentos constantemente a atormentar ouvidos frágeis. Indiferentes são os que estão sempre sentados nas esplanadas dos dois cafés que ladeiam a estrada que nunca se cala. Sorte tem o proprietário dos mesmos, há sempre cerveja e garrafas perfiladas nas mesas, ali estão a tarde inteira, a falarem dos outros, a verem o trânsito diferenciado, conjecturando uns com os outros os modelos dos automóveis aproximando-se, ouvindo os movimentos esforçados das máquinas a passarem diante daqueles olhares esgotados de observarem o tempo sem novidades. Isto, sou eu a cogitar, a sentir-me assando vagarosamente, numa fritadeira a vento quente e seco, confiando na aparição dos leitores. Para além disto não há mais nada de relevante, os jornais, as revistas os livros, as músicas os filmes, não são para eles, uma duas vezes por mês permanecem na aldeia com a biblioteca ambulante. Amparados no ócio, não têm curiosidade, não entram, não querem viajar, saírem daqui para fora.

 

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Cruzei-me com o peixeiro a meio da viagem para a Aldeia do Mato, a biblioteca ambulante e a carrinha do peixe são velhos conhecidos nas estradas das aldeias da minha terra. O peixeiro e o viajante das viagens e andanças incansáveis à procura de fregueses, o primeiro a buzinar uma melodia conhecida de todos, alertando as populações da sua aproximação, o segundo no veículo de cor amarela,  com as flores e os monumentos expressados na carroçaria, manifestando a chegada das histórias às aldeias. A aldeia está ainda na ressaca da festa anual, os vestígios são muitos, os enfeites coloridos, oscilando na tábua suspensa do tempo, as matrículas estrangeiras dos automóveis estacionados, exprimem o último acontecimento na povoação. O verão também traz forasteiros à sua praia fluvial, os automóveis percorrem a rua principal atrás uns dos outros em direcção ao rio. Do interior destes há quem continue a olhar para a biblioteca ambulante, como se fosse do outro mundo, leram, ouviram histórias destas máquinas de levarem livros às pessoas, nunca tinham visto uma tão próxima. Reduzem a velocidade, admiram a mensagem estampada, afastam-se dando sinais de aprovação nos sorrisos. Vão, informem quem não sabe, não viu, a boa nova, da presença de uma biblioteca ambulante na aldeia onde foram felizes um dia de verão. Após expulsar a manhã agradável, a tarde chegou quente à aldeia de Martinchel, os leitores apareceram ao mesmo tempo do vento corajoso e ameno.

 

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O calor no largo do Cabrito está insuportável, o alcatrão exprime a força da temperatura, estou encurralado, o meu corpo é uma fonte de suor. Os poros assemelham-se a um crivo do chuveiro no qual as gotas incansáveis saem escorrendo nas minhas costas. Os condutores ao transitarem nos automóveis, com os vidros fechados, confortados pelo ar condicionado a protege-los da canícula, olham para mim confusos, ou admirados, da permanência da biblioteca ambulante, do viajante das viagens e andanças debaixo de um sol impiedoso. A paixão pelos livros, os leitores as viagens pelas aldeias da minha terra, ultrapassam qualquer fenómeno natural, independentemente do período do ano. Sou eu e todos os outros bibliotecários ambulantes do território nacional. Com o passar dos anos atingimos qualidade para suportarmos seja o que for sem perdermos a calma. Os leitores, as restantes pessoas são o mais importante, somos vigilantes, protectores das culturas das comunidades, damos condições para permanecerem informados. Somos testemunhas do cataclismo ambiental, da aflição constante  no verão perante os incêndios a espreitarem, a devastarem o património natural das aldeias, colocando em risco os seus pertences. Oficio nem sempre valorizado, pelo desconhecimento da importância que tem nas pessoas abraçadas. Nas aldeias trabalham a terra, plantam, semeiam, colhem frutos, vindimam, sustentam os nossos estômagos, também decifram palavras. São as bibliotecas ambulantes,  os abrigos aos quais recorrem para afugentarem os silêncios, cais de embarque de viagens e aventuras.

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Pela manhã não foram os 35º de temperatura a demover o viajante das viagens e andanças de iniciar a semana a levar as histórias aos leitores. A primeira paragem do dia foi no Centro Social de S. Miguel do Rio Torto, ouvir o que os mais velhos têm para contar. Infâncias sem escola para alguns, as mulheres foram as que tiveram menos instrução, famílias alargadas, onde os irmãos mais velhos tinham o privilégio de se sentarem nos bancos da escola. Os restantes, ficavam em casa, trabalhavam na terra, ajudavam na vida doméstica do lar. O trabalho era contínuo, nos dias de semana trabalhavam para outrem, ficando o sábado e domingo reservados para a manutenção das suas hortas e outros cuidados diversos. Neste momento estão 47º temperatura, a sombra do Freixo é incapaz de reter o calor na aldeia das Bicas, no interior da biblioteca ambulante as moscas não se atrevem a fremir as asas. Podem imaginar a canícula instalada hoje nas aldeias da minha terra. Os leitores até ao momento não se atrevem a aproximarem-se para devolverem as histórias, ou tentarem levar histórias novas, viagens que nunca tenham realizado. O ar quente invade o espaço das histórias, um intruso, sem interesse nenhum pelas histórias, traz torpor e insuficiência de leitores.

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O vento leva tudo à frente quando atinge o crédito do sol, aquecendo demasiadamente as aldeias da minha terra por estes dias de uma forma mais acelerada. O ar quente vagueando há demasiado na charneca está subindo, possibilitando a intromissão do seu gémeo dizigótico, o ar frio. Com este fenómeno meteorológico os cabelos do Manuel não paravam de um lado para o outro no topo da cabeça, uma das mãos teimava em estabilizar os parcos pelos que lhe restam sem sucesso. A outra agarrava as histórias para devolver, na biblioteca ambulante, as palavras abrigadas, confiavam na força exercida pela extremidade do braço do leitor. No leito onde criam emoções, estas chegavam após uma temporada na aldeia da Ribeira do Fernando, na casa de um ex-emigrante. Sei, porque ele me disse, pela voz da sua mulher ao telefone, de todas as vezes que comunico da aproximação das histórias à aldeia. O estrangeirismo nas palavras vindas através do aparelho, é bastante pronunciado ainda, ao  responder-me que ele anda para a horta, ou isto, ou aquilo. O homem nunca está presente, está sempre atarefado com qualquer trabalho por realizar. Até a vizinha o vai chamar na ausência da mulher ao telefone, acaso vislumbre a biblioteca ambulante permanecendo na sombra da pinheira grande. Aproximando-se a questionar-me se o Manuel já tinha estado em contacto com as histórias. O Manuel aparece sempre, embora uma ou outra vez nos tenhamos desencontrado, é um bom leitor e bem informado. Aqui ao lado há outro leitor, a assiduidade não é a mesma do Manuel, mas é sabedor de muitos assuntos, a vizinha de ambos hoje levou uma revista de lavores. Disse logo que iria à cidade adquirir papel vegetal para sobrepor no exemplar desenhado para bordar, anexado na revista.

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Entrei na rua que rasga a aldeia, de um lado e outro as fachadas das casas continuam engalanadas, assim como o principal acesso. Atravessam-no superiormente arranjos florais coloridos com motivos variados. A festa na aldeia terminou, certamente foram dias eufóricos para as gentes da Amoreira, ficaram as memórias. Está escrito nas paredes, nos muros, nas ruas, o empenho que tiveram para acolherem os familiares, os amigos e forasteiros na sua terra. Com palavras diferentes as mãos escrevem nas folhas e paredes. Absorvidas pelo tempo como se um mata-borrão as pisasse, as últimas não irão perdurar materialmente, ficam as impressões retidas para voltarem no próximo ano. As primeiras multiplicar-se-ão na cultura livresca, na biblioteca ambulante. Ambas avançam no tempo, narrando as histórias da comunidade.

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No largo do coreto as novidades escasseiam, exceptuando o avanço do tempo sem refrear a continuidade da canícula. O relógio da igreja faz-se ouvir anunciando a meia hora em falta até às dezasseis horas da tarde de mais um dia de viagens e andanças. Aqui os leitores são como as novidades, vêm quando lhes apetece e não pela presença da biblioteca ambulante assiduamente na aldeia. Apesar dos intervalos prologados, as histórias saem, muitas vezes estranhando algum abandono em cima de uma mesa ou cadeirão. São a novidade nas casas onde ficam, objectos diferentes, alterando, quando é necessário as rotinas há muito estabelecidas na solidão. Quando voltam com as histórias há sempre mil desculpas pelo atraso, não comento, no fundo gosto de os ouvir. Comprometidos pelo atraso na devolução, continuam a levar histórias, o regresso aos lugares das estantes será para quando lhes aprouverem lerem outras. Curiosamente a esplanada situada  no espaço que circunda o coreto não tem ninguém, ali, a alegria, por hábito é entornada nas goelas sequiosas dos que não fazem nada, daqueles que aproveitam possibilidades de enganar o trabalho para matar a sede apressadamente ou por outros, cujo tempo é o que lhes resta. Não querem lucrar com a permanência das histórias na aldeia, apesar de olharem a biblioteca ambulante de soslaio, ainda acredito de os ver entrarem, serem leitores.

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Estamos na semana das Jornadas Mundiais da Juventude, vamos ver, ouvir, falar e ler sobre religião, somos católicos, pouco praticantes, sou um exemplo. Na leitura está distante o dia, do último, talvez, único livro requisitado por uma leitora sobre o tema, foi uma biografia do Papa João Paulo II, na biblioteca ambulante. Esta não possui outros no seu acervo, ninguém os solicita, um peso desnecessário para a tonelagem do veículo, ou uma quantidade de informação que deveríamos absorver. Por estes dias estabelecem-se no país milhares de jovens oriundos do mundo inteiro, iludindo até os argonautas exploradores de constelações, levando-os a interrogarem-se, que terra é esta, cheia de jovens. Ontem testemunhei isso mesmo, vindos do aeroporto, um grupo de jovens polacos, com as bagagens atreladas encheu uma carruagem do comboio com destino a Santarém, onde ficaram alojados. No largo da aldeia um cão ladra desafiando a solidão, impondo-se ao silêncio.

 

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