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Histórias à Beira Rio, viagens e andanças com letras pelas aldeias da minha terra

"Afinal, a memória não é um acto de vontade. É uma coisa que acontece à revelia de nós próprios." Paul Auster

Histórias à Beira Rio, viagens e andanças com letras pelas aldeias da minha terra

"Afinal, a memória não é um acto de vontade. É uma coisa que acontece à revelia de nós próprios." Paul Auster

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Laços que perduram entre avô e neta, transversalmente nos leitores e as histórias, são quase sempre para a vida toda. Ligações espontâneas, seduções, auxiliadas pelo bibliotecário ou conselheiro na leitura. Amizades, capturadas nas páginas das histórias, personagens diversos, criações, pensamentos do mundo, ensinando quem lê, prazenteando mistérios, paixões, aventuras, onde, somente as palavras escritas com a tinta derramada, sangue, lágrimas, dos conflitos, das conciliações civilizacionais, dos aparos das canetas dos criadores de sonhos, permitem. Perambulam no exíguo espaço, os dois, para atingirem a liberdade do conhecimento na biblioteca ambulante. Veículo do passado, do presente, dos tempos vindouros certamente, assim, haja viajantes das viagens e andanças sonhadores, e corajosos de continuarem a levar as palavras e os autores.

Não foi só apresentar, argumentar, contestar e polemizar, os últimos dias no 2º Encontro Internacional das Bibliotecas Itinerantes em Pombal. Ir descobrir novas viagens e andanças pelas aldeias de outras terras, promover o livro e a leitura, conhecer outros sonhadores, transportar outras experiências, é disto que se constroem as bibliotecas itinerantes. Solidificar as suas características, a nossa paixão de levar e trazer histórias, comunicando com diferentes pessoas que têm em comum o gosto pela leitura. Sabemos seduzir, aceitamos a vontade das pessoas, dos leitores, não leitores, dos que nunca aprenderam a lerem. Mediamos sentimentos e solidões com as histórias, amenizadoras de conflitos íntimos, de alguma desordem colectiva também. Queremos continuar assim, transpor as histórias para outras ocupações não é o mesmo que conduzir as pessoas a outras dimensões. A confronta-los nos diversos contextos dos enredos, encarnando os personagens que perseguem nas páginas cheias de vontade de serem exploradas. Vou, vamos,  ali, além, acolá, com as letras, às aldeias das  nossas terras, queremos continuar o que sempre fomos, sermos feitiçeiros com as palavras.

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A pequenada está atenta ao que a professora diz, apontando ao mesmo tempo para o topo da árvore sob a qual estão todas observando as folhas. Daqui a pouco estarão todas no interior da biblioteca ambulante a misturar as histórias. A prepararem a salada composta por enredos diversos,  de palavras e figuras, pessoas, animais, casas, nuvens, estrelas, e muitas mais, envolvidos em camadas coloridas. Depois, quando se forem embora, para a sala de aula, é a vez do viajante das viagens e andanças, voltar a colocar nos sítios certos, a mixórdia de letras e palavras. Procuram o pontinho da letra i, por indicação da professora, são explorações realizadas nas primeiras palavras caídas da árvore das histórias. Com o outono à porta, a queda das folhas na biblioteca ambulante fertilizará todos os que gostam de sentirem o vento que traz as palavras. Delicadas, as letras batem no rosto como se fossem gotas de chuva, não molham, perspectivam viagens nas nuvens a descobrirem novos horizontes.

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No pátio da escola os gritos das crianças ecoam no largo e nas ruas confinantes. As palavras são desconhecidas ainda para alguns destes, ali a correrem atrás uns dos outros, aprisionados no tempo, fogem. Só agora começaram a conhecer as letras, quando acordarem das brincadeiras já saberão entrelaçar e a compreender o alfabeto. Da escola alcançarão as palavras coladas na biblioteca ambulante, depois a curiosidade impulsionará a vontade para se acercarem das histórias. As fantasias, as aventuras, pairando no interior da biblioteca ambulante, farão o resto.

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Está difícil de acompanhar as letras pelas aldeias da minha terra, os leitores, as histórias escolhidas temporariamente, têm ocupado o viajante das viagens e andanças. Sem tempo para escrever, vendo os dias transformarem-se, as manhãs enevoadas, as tardes asfixiadas por nuvens, o outono pronunciando-se, deixando para trás, imperceptível, um verão demasiadamente quente. Viajar, sem as temperaturas infernais traz outro ânimo ao bibliotecário, aos leitores, a rapidez da noite devolve a vontade de lerem. Cessam os trabalhos ao ar livre mais cedo, adaptam-se maneiras de viverem ao tempo que se aproxima, despontam outras vidas, explorando as páginas das histórias ao serão. A azeitona engrossou com as recentes chuvas, o olival está ansioso pela campanha que se avizinha, a extracção do óleo temperará pratos, a leitura conciliará as pessoas. 

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À volta das palavras, um passeio rápido pelas ruelas da biblioteca ambulante. Passagens estreitas, percorridas a pente fino, onde as mãos têm dificuldade em penetrar nos intervalos que separam os prédios onde habitam as palavras. As letras mostram-se às janelas esperançadas que alguém compartilhe alguns mexericos, lhes pegue, as leve dali para fora. Penduradas no estendal, as frases dançam ao sabor do vento, apelam à leitura, pedem que compareçam nas pequenas ruas, incentivando a visitarem as partes, os capítulos. Há dias melhores que outros, com as mãos atropelando-se umas nas outras, querendo entrarem ao mesmo tempo nos prédios. Desarrumam as construções literárias, trocam os números de policia, confundindo as voltas aos leitores que chegam depois. São momentos intensos, de agitação, vividos no centro da cidade das histórias. Assim houvesse esta força nos centros, nas ruas, e largos das nossas cidades e aldeias, a ocupação de palavras.

08 Set, 2023

Lambem os dedos ...

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O primeiro olhar pelo jornal é igual ao que fazemos perante uma vitrine repleta de bolos. Perdemo-nos na variedade de palavras, as massas, as texturas, os recheios, um conjunto de cores e sabores para lermos em casa, no sofá, seguir as frases umas a seguir às outras. Ler é importante, estar informado ainda mais. A assiduidade da biblioteca ambulante nas aldeias, promove, sem os leitores notarem, hábitos de leitura. Os gestos, a paixão de olharem para as palavras, viajarem pelas histórias adentro, ocorre naturalmente nas pessoas frequentadoras da biblioteca ambulante. Lambem os dedos, não vá ficar alguma letra esquecida por lerem, ou migalhas importantes no auxílio da leitura. As histórias para eles são fornadas de palavras quentes que consomem sempre com prazer. No largo do coreto em Alvega, um homem varre as folhas sopradas pelo vento. Não tenho palavras para encher o largo vazio, sumiram-se as folhas, as pessoas e os leitores, não há elementos para construir a história, a massa sem as substâncias suculentas, não tem sabor, é uma folha em branco. As nuvens regressaram, o céu está com má cara, não tardará desprende-se numa choradeira.

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A mulher velha caminha pela rua, o vento sopra no que resta dos ornamentos da festa de verão, criando a única sonoridade na aldeia. É evidente que não se dirige na direcção da biblioteca ambulante, escapa-se por outra rua, com as histórias na sua frente, não tem curiosidade de as conhecer, ou não as viu. A horta, puxa-lhe os pensamentos para o que resta dos frutos presos nos tomateiros, os cachos das uvas por colher, ou a perda de alguns destes frutos, derivado da chuva intensa da última noite, os javalis. Os assaltos constantes destes animais mais parecidos com orks, perturbam estas comunidades, não há ninguém que saia de casa diariamente e não vá às hortas verificar o estado dos terrenos cultivados.  Os animais esfomeados viram tudo do avesso procurando alimento, as cabeças enormes onde sobressaem  dois dentes afiados, metem medo a qualquer um. Os cães deixam de ladrar para não serem enfrentados por estes antepassados dos porcos. A guerra aberta até agora está inclinada para o lado destas quadrilhas selvagens, com o sol a desaparecer no horizonte, é o momento  apropriado para saírem dos buracos escavados no chão, e saquearem legumes, fruta, raízes de árvores, deixando-as moribundas. As aldeias desguarnecidas de protecção pouco podem fazer perante estes indivíduos, um conflito que acontecia na floresta ocasionalmente, para equilibrar a espécie. As queimadas sucessivas destruíram as florestas, que deixaram de ser apetecíveis, actualmente sem alimento confrontam-se com os humanos. Perderam o medo, assaltam as searas do milho, os quintais envolvendo os espaços habitacionais, não saíram de nenhum filme, transpondo os écrans gigantes, são reais, tenho-os avistado nas minhas viagens às aldeias a levar histórias. Abeiram-se da estrada vindos da floresta, pelos trilhos medievais, a palmilharem a charneca. Mercenários ao serviço do homem que destrói os habitats onde sempre viveram. 

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As nuvens cinzentas ameaçam desabarem, navegam em cima das  nossas cabeças. Impulsionadas pelo vento são incapazes de despejarem  a água que transportam, por enquanto, até a sua velocidade diminuir. O outono, precipita-se surpreendentemente neste início do mês, designado por quem criou as normas meteorológicas, a estação após o verão, ou estará iludido o viajante das viagens e andanças. Ao lermos histórias, constatamos no final destas, a variedade de mistérios, aventuras e personagens desfilando pelas páginas, assim estão as nuvens, gordas, esticadas, grandes e pequenas, lançando incertezas na avaliação da chegada da precipitação, borrando de tinta o pedaço de papel incompleto pela escrita. O céu é um tinteiro de tinta líquida, não há mata-borrão suficiente para absorver derramamentos inesperados, os aparos deslizarão dias e noites, acontecerão maratonas de escritas a redigirem palavras perpétuas. Neste atelier de escrita criativa a protagonista mais importante continua a incorporar leitores, à minha frente tenho um olhando atentamente as histórias, descaradamente disponíveis, perante a vontade de as experimentar nas suas mãos. Mostra experiência, um amante conhecedor das partes emocionais destas rameiras das palavras. Toca-lhes com mestria, abrem-se facilmente permitindo-lhe ler-lhes os segredos, dão-lhe prazeres escondidos, nunca revelados a qualquer um. Ele não é como os outros, pede histórias desesperançadas, há muito arrumadas nos depósitos, onde nós um dia terminamos. À tona de uma nova vida, há leitores que as reconhecem de outros momentos, passaram-lhes os olhares por cima. A memória traiçoeira, empurra-os para as verificarem outra vez,  se as emoções continuam lá, nas entrelinhas, se o prazer continua o mesmo, ao lerem  as palavras nas páginas do tempo.

 

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A manhã fluía normalmente até à foz do meio-dia, as portas da biblioteca ambulante abertas de par em par convidavam os que passavam a entrarem, como sempre acontece. Gritos estridentes de crianças chegam aos ouvidos do viajante das viagens e andanças, a escola não reabriu, donde poderá vir o som animado cheio de candura, de brincadeiras. Sobre a passadeira de peões um grupo de crianças acompanhadas por zeladoras, ultrapassam a faixa alcatroada ao encontro das histórias. De um momento para o outro a alegria, as questões sobre livros, o trabalho realizado, encheram o pátio interior da biblioteca ambulante. Voltaram do avesso as palavras, com algum esforço as letras conseguiram agarrarem-se à unidade linguística da qual faziam parte. Unidas umas às outras pelas pernas não se perderam da linha condutora da narração das histórias, se acontecesse uma desgraça, e fossem cair noutras palavras onde não pertencessem, como seria. As histórias ficariam ilegíveis, os leitores não compreenderiam o que estava escrito. Instalava-se a confusão nas histórias, os personagens perdiam características, animais, árvores, plantas, pessoas, encarnariam aparências  diferentes na leitura. As letras intrometidas transformariam um gato, num regato, a laranjeira em macieira, o girassol num farol, e pessoas em meloas. Dificilmente se conseguiria desenredar os enredos de palavras trocadas. Com a tarde veio uma fina camada de nuvens a cobrir o céu, com a biblioteca ambulante estacionada junto a uma passagem de nível esperando o comboio que não passou. Atravessou à minha frente e não o vi, saiu de uma história de ficção científica, viajando a grande velocidade, transportando histórias sem fim.