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Histórias à Beira Rio, viagens e andanças com letras pelas aldeias da minha terra

"Afinal, a memória não é um acto de vontade. É uma coisa que acontece à revelia de nós próprios." Paul Auster

Histórias à Beira Rio, viagens e andanças com letras pelas aldeias da minha terra

"Afinal, a memória não é um acto de vontade. É uma coisa que acontece à revelia de nós próprios." Paul Auster

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As últimas viagens e andanças deste ano acontecem hoje, aguentando o frio matinal, a gozar a tarde soalheira nas aldeias da minha terra. A cidade fica sempre para trás, quando o dia é ainda um menino, no fim deste, velho e cansado, homem feito, a cidade está sempre de braços abertos a receber a biblioteca ambulante. Repositório das histórias das aldeias, do mundo. Abrantes, nunca virou as costas às suas bibliotecas, protectora das oralidades, dos escrevedores, impulsionadora, a levar as palavras a todos. Da cidade às aldeias não podem dizer que não têm histórias para lerem, seria bom, para o ano, houvesse  mais leitores. As bibliotecas estão ai para os acolherem, fixas, móvel, sempre com histórias novas a surgirem, como sucedem os dias, novos e velhos, histórias para todas as idades. A biblioteca é uma anunciadora dos acontecimentos, partilhando com leitores,  não leitores, intenções no acesso ao direito de aprenderem e sonharem. BOAS FESTAS, BOAS LEITURAS.

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O vale parece saído das páginas de um conto de Natal, as ovelhas a pastarem, os leitores a comerem as letras com os olhos, cobiçam mais palavras novas. Estão o dia todo com o focinho no solo, a procurarem as ervas macias, nunca estão saciadas. A tarde adormece devagarinho, a pastora junta-se ao rebanho com os cães. Os leitores marcam as páginas da história, para não se perderem na noite fria a olharem para o céu estrelado. A lua é a estrela maior, a que emite mais luz, será esta a anunciadora do dia que está ainda para vir. As velas de pano cheias de caracteres do alfabeto avançam impulsionadas pelo sopro do leitor, ansioso pelo resultado das palavras espremidas na pedra cilíndrica. O ruído da mente do moinho, a imprimir as palavras na noite gélida, os murmúrios da ribeira, são interrompidos com a chegada dos reis Magos. Na biblioteca ambulante há oferendas, a esperança aguardada por todos, é a estrela cadente a iluminar as aldeias da minha terra.

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O reflexo das folhas douradas que caem, ornamenta a tarde a preparar-se para mergulhar no reino da escuridão. O espólio de algumas destas obras da natureza, aguardam  a vez para se sacrificarem na fogueira de Natal. O fogo irá consumir vorazmente a lenha amontoada nos próximos dias, ao redor deste, os leitores do tempo, na aldeia, juntam-se para comerem e beberem. Momentos de escutarem com atenção os murmúrios do fogo, estão seduzidos pelas danças das chamas.  O calor proveniente da euforia das histórias, do início dos tempos, fulmina as fragilidades, extingue o afastamento. Aproveitam o calor intenso  das palavras apaixonadas, para recolherem os ensinamentos da reunião entre todos.  Um sentimento que cresce, com as chamas a elevarem-se. São histórias que nascem sem se escreverem, amores que ardem sem se verem.

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A temperatura fria expressa-se pela tarde dentro no Tramagal. Suponho que o restante dia nas viagens e andanças traga leitores. O toque da campainha da escola terminou, a saída dos alunos está breve. Vejo a primeira leitora a aproximar-se, as pesquisas das histórias para levar são sempre minuciosas, não vá ficar a leitura incompleta. No início a acção enche-se sempre de promessas, depois a vontade esfuma-se no meio das páginas cheias de palavras que não demonstram qualquer novidade. Vieram mais, ocuparam o espaço, têm coragem suficiente para agarrarem universos, e afrontarem o que poderá acontecer no final das  paixões literárias.

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O dia não tem tempero, nem é ausência de sal, falta-lhe alegria, não tem leitores para fortalecer o sabor. Fico com o tempo para explorar as receitas da escrita, bem ou mal, cozinho com vontade, procuro aromatizar os pratos, vou às margens dos ribeiros encontrar as ervas e folhas selvagens, as mesmas que os antepassados aproveitavam nas suas escritas. A mesma, na qual a ninfa se transformou na sua árvore, unida a outras num círculo, distinguiram personagens da história.  O dia está desenhado a lápis de carvão, as cores branco e preto predominam na folha de papel cavalinho. Arrisco a desenhar, não é a mesma coisa do que escrever, explanar o traço na folha de desenho permite narrar uma história diferente aos olhos dos observadores da obra exposta. Novamente no fogão, mexendo os ingredientes no tacho, misturando as ideias, salteando as letras na frigideira para se formarem palavras. Provo, é necessário um pouco mais de caldo para a inspiração do prato, a concepção literária sem os sucos dos legumes e das carnes, e frutas também, perde os amantes dos saberes culinários. A literatura leve é uma boa entrada para gastronomias enriquecidas com substâncias diferentes. A chuva manifesta-se de forma excessiva na aldeia do Pego, lugar famoso pelos petiscos confeccionados com carnes do porco. Todas as quartas-feiras, os forasteiros abeiram-se das tascas, ou casas de restauração, para lamberem os dedos cheios de gorduras, aromatizadas por condimentos modificados no calor das brasas do carvão.

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O sol está receoso, ainda assim, há quem encontre uma débil esperança que o mesmo substitua o agasalho. Aquele abafo necessário às histórias, as mãos manuseando páginas, selando uma de cada vez, indicando o destino, guiando a leitura até ao final. A casa onde as palavras se reúnem após um dia laborioso, esgotadas, com a facilidade que surgem no papel, na indecisão, no desaparecimento inesperado, no renascer. A vida das palavras é dura,  até se fixarem definitivamente debaixo do agasalho que as protege. Finalmente, quando conquistam o escritor, perdurarão para sempre no interior da construção usada para morarem. Juntam-se as personagens, os leitores que as visitam, o tempo vai passando, o material onde se deitam amarelece. É a vida a acontecer, são as palavras que mudam pensamentos, fazem sonhar, ensinam, quem se abriga da ignorância na biblioteca ambulante.

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As viagens e andanças com letras dissipam-se na névoa obstinada, as palavras das histórias diluem-se na água da chuva. A tarde, assim é um romance inacabado, uma história incompleta, faltando-lhe o derradeiro capítulo. A parte onde alcançaríamos o prazer da leitura, a fatia de bolo desejada por todos. O desenlace não vai acontecer, todas as palavras escritas para o expandir, afogam-se nas lágrimas dos personagens, na última parte da história. A guerra, o excesso de poder, não permitem a liberdade das palavras. As pessoas na rua evitam a água, protegem-se, fogem para não serem apagados, ou mesmo perderem o brilho. A vivacidade que os protagonistas dão às histórias, fazendo acontecerem paixões permitidas ou proibidas. Enredos fantásticos, proezas que só os melhores conseguem ler, aqueles que se distinguem pela qualidade de serem curiosos. Os marinheiros nas histórias e náufragos nas letras.

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Ninguém está indiferente ao frio, ainda por cima o mercúrio do termómetro está preguiçoso, não sobe além dos 10º Celcius. A chuva amedrontada, cai silenciosamente sobre o vidro grande da biblioteca ambulante, avisando-me da possibilidade de não ter leitores esta tarde. Não foi o aviso, mas a malícia a mencionar a novidade, a água desejada por todos nós, não quer as histórias a disputarem-lhe o lugar no largo do Cabrito. Há espaço para as duas correntes, pluvial e literária, podem coexistir no mesmo período, neste momento, onde a primeira ganhou vantagem. As ruas no Rossio ao Sul do Tejo estariam desertas não fossem os automóveis a sacudirem a solidão com o ruído dos motores. Onde estão as actividades portuárias, os armazéns associados ao comércio fluvial, os barcos a navegarem de montante a jusante, as mercadorias, as pessoas que fizeram acontecer tudo isto. O tempo não tem compaixão, oprime as viagens e andanças, e as histórias.

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O rio Tejo está vazio, do alto da ponte rodoviária, nas viagens e andanças, advinho a sua intimidade. O nevoeiro concentra-se nalguns locais do trajecto, a estrada molhada fere a vista, pelos raios do sol projectados no asfalto. Na aldeia das Bicas as árvores despem-se e dançam ao mesmo tempo, estou animado por testemunhar a sensualidade destas belezas da natureza. Desnudadas e com as folhas a seus pés, desvendam as cicatrizes do seu crescimento, as partes ocultas, onde as aves se protegem e criam gerações. A possibilidade de um dia poderem estar a servir quem motiva a imaginação, os criadores de histórias,  de personagens, de sítios maravilhosos, de lugares misteriosos. Conquistadores de papel sem quaisquer impurezas, causadores de vidas, pintores de paisagens, arquitectos, e construtores de cidades. Autores de rios, de palavras flutuando ao sabor das correntes da tinta, da vontade das emoções, da habilidade de prender aqueles que lêem. As árvores são eixos transmissores de hábitos e costumes, de maneiras de viver. As árvores são histórias.