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Histórias à Beira Rio, viagens e andanças com letras pelas aldeias da minha terra

"Afinal, a memória não é um acto de vontade. É uma coisa que acontece à revelia de nós próprios." Paul Auster

Histórias à Beira Rio, viagens e andanças com letras pelas aldeias da minha terra

"Afinal, a memória não é um acto de vontade. É uma coisa que acontece à revelia de nós próprios." Paul Auster

 

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A aldeia tem vida, os cães ladram, a chiadeira do arame no estendal da roupa faz-se ouvir ao deslizar na roldana, não sei onde, é perto, numa destas casas olhando o vazio no largo. Há pessoas, não se deixam ver, só a padeira as atrai para o largo. Uma vez, ou outra, há uma força invisível que traz estas pessoas à biblioteca ambulante, o pão em primeiro lugar, a coincidência boa é estarem no momento certo no largo, as histórias. A semelhança, mantêm-se na aldeia onde permaneço no momento, comparando com a aldeia anterior, no período da manhã. O som doméstico, os animais de estimação, as galinhas nas capoeiras, o canto das rolas invisíveis, o gato que salta o muro e vai à sua vida, o outro a rebolar-se no chão ao sol. As pessoas são uma visão rápida, mas não são verdadeiras no interior da biblioteca ambulante, até ao momento. Nos campos que cercam estas aldeias, as laranjas presas nas árvores que lhes dão o nome, não têm regra para os ramos que as árvores possuem. O peso é de tal maneira exagerado na ramaria, só o chão à volta as aguenta. Em Alvega, a maior localidade, sede de freguesia, mãe das duas primeiras, estacionada noutro largo, a biblioteca ambulante não tem orquestra no coreto. Consegue ouvir a voz do vento seguindo o chilreio dos pássaros. Uma mulher abordou as histórias, saudou-me, chamando-me José Diniz, não houve tempo de a corrigir, a conversa precipitou-se na leitura. Segundo ela, actualmente todos sabem ler, só que não querem. E disse mais ainda, quem sabe ler, sabe ter. A Laura e o Miguel vieram visitar a biblioteca ambulante, não são leitores, estão de férias, a escola no Gavião, onde estudam, ultrapassou o primeiro semestre. Avaliam-se os desempenhos de todos. A Laura e o Miguel exploram os espaços, retirando as histórias, lendo os títulos, abrindo as páginas, a lerem parcelas cheias de palavras. Partilham ideias, descobrindo as histórias novas, reaparecendo com independência, noutras que já leram.

30 Jan, 2024

Viajar assim ...

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Há sempre uma história no canto, num recanto, ou qualquer lugar onde ninguém experimentou explorar. A acessibilidade não é problema, qualquer leitor pode alcançar histórias em locais pouco frequentados. Foi o que a leitora fez, as suas mãos, habituadas a mexerem na terra, descobriram as sementes que desenvolvem o conhecimento. Tem uma assiduidade regular, a leitura é a sua companhia nos momentos de intranquilidade ou mesmo de alguma inquietação. Fossem assim todos os leitores, a biblioteca ambulante não teria histórias para distribuir ao longo das aldeias que visita. Na biblioteca ambulante consegue-se alcançar os cumes das montanhas, o fundo dos oceanos, ir à lua. Viagens inimagináveis a qualquer um, possíveis à boleia da leitura. Veículo sem motorização poluente, adaptável em qualquer cenário. A velocidade é imprimida de acordo com a vontade de cada leitor, sem quaisquer normas ou regulamentos. Viajar assim é a melhor maneira de atingir experiência de um lado ao outro da vida.

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A tarde revela-se ao contrário da manhã, mais bonita, o sol brilha, há pessoas na rua, na Sociedade Recreativa, na aldeia do Souto. Ausências somente na biblioteca ambulante, sempre que os leitores não tenham lido ainda as histórias, sempre que a curiosidade não desperte a vantagem da leitura nas pessoas das aldeias da minha terra. Os campos estão pejados de flores amarelas, anunciam o renascimento para breve, são letras a encherem páginas, textos sagrados a promoverem a liberdade, a criação das ideias através das palavras. Nos planaltos, nas encostas, na charneca, ao longo da estrada de um lado e outro, as flores amarelas iluminam a solidão, repelem o inverno das nossas mentes. Podiam ser histórias amarradas à terra, desenrolando raízes ao redor das aldeias. Onde fossem, ou andassem, a caminharem, nos automóveis, no quotidiano, com as flores amarelas sempre presentes, acenando-lhes impulsionadas pelo vento, habituavam-se. As histórias abririam as páginas, impregnando o odor das palavras em todo o território. Devagar entrariam em casa dos aldeões, ornamentando espaços, vazios de novidades, quebrariam silêncios, provocariam disputas pelos melhores perfumes. Sairiam à rua ao encontro de novas flores, odores diferentes, de palavras novas, de pessoas curiosas. O rio Zêzere corre anafado de confiança, ao ponto de um dos seus braços ter-se encostado carinhosamente na margem do lugar de Sentieiras do Souto. Aqui, todas as vezes que a biblioteca ambulante rasga a aldeia na sua passagem em direcção à aldeia das Fontes, quase não se vê ninguém, exceptuando um, dois velhos, sentados junto às portas das suas casas, a verem passar o silêncio, as histórias, as flores amarelas. Nos socalcos, a esgueirarem-se para o rio, destacam-se pequenas parcelas de terra escura, preparadas para receberem origens, pontos de partida para um novo tempo.

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A torrente das águas do rio Tejo, corre desembaraçada para jusante, ao lado do Tramagal, em direcção a Lisboa. Águas castanhas lambendo as margens, as bordas de um prato com vestígios de algum arvoredo destruído pelas intempéries do inverno. A natureza renovando-se como pode, aproveitando oportunidades, assim fossem as pessoas, agarrarem as histórias na presença da biblioteca ambulante nas aldeias. Tramagal aqui tão perto de Abrantes, à vista desarmada, mas distante nas viagens e andanças, com uma sucessão de curvas, nós de gravata tão apertados e sinuosos. Asfixiando a condução nas viagens e andanças, redobrando a concentração na estrada. Uma ponte seria a solução para desapertar o incómodo, escoando o trânsito rapidamente, aliviando as pessoas. Há semelhança na ligação que usam para acederem ao conhecimento, a biblioteca ambulante, partilhando opiniões, inspiração, de uns com os outros, ao atravessarem o tabuleiro onde jogam as motivações, as suas vidas. Na aldeia do Crucifixo a biblioteca ambulante estaciona sempre no lugar da paragem do autocarro dos transportes públicos. Hoje não o fez, ficou próxima, assim o autocarro terá o seu espaço para deixar os passageiros que chegam da escola. E as histórias irão receber desta vez a visita de leitores, apressados, a deverem a refeição do almoço aos estômagos famintos? No espaço do autocarro, as histórias estão logo ali, à mão de semear, obrigando-os a olharem, depois a entrarem. Uma estratégia para seduzir, e provocar os indecisos, os tímidos. Há outras mais, dependendo dos lugares, das oportunidades, onde estiverem possíveis leitores. Um piscar de olhos diariamente às pessoas das aldeias da minha terra.

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Na aldeia da Concavada o ruído ensurdecedor das roçadoras a eliminarem as ervas nos passeios destaca-se de todos os outros. A temperatura primaveril está arrojada nesta tarde de inverno, nas viagens e andanças com letras. Um casaco qualquer vestido, transforma-se num pesadelo infernal. Será terrível para as árvores de fruto, se, com este impulso meteorológico, iniciarem uma floração precoce. Sempre com a previsibilidade da descida da temperatura, no mês em que nos encontramos, a floração, antes do tempo morre, não haverá mais frutos destas árvores no ano corrente. Uma preocupação para todos aqueles que as possuem, são histórias incompletas, perdidas no meio das folhas, próximas, de outras que souberam esperar pela altura certa. Hoje a biblioteca ambulante ganhou uma nova leitora, estava longe de prever tal acontecimento. As mulheres estão em maioria na leitura, nas aldeias da minha terra. Homens leitores são raros por aqui, um caso de estudo para breve. A tarde soalheira abriu as portas das casas, a novidade, da presença das histórias na aldeia, entrou rapidamente, um ar agradável, a limpar a humidade instalada nas paredes, a empurrar os habitantes para a rua. No Pego um estendal da roupa agoniza debaixo da roupa a secar, o sol do inverno, é um secador natural das palavras recém escritas, das palavras pronunciadas. Fixador da motivação nas pessoas, no contentamento na leitura.

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O nevoeiro esta manhã não motiva ninguém a sair de casa para vir à biblioteca ambulante. Só mesmo quem tem de sair, pelo trabalho, pela necessidade de adquirirem géneros alimentícios, irem à farmácia, tão comum nos dias de hoje, as vacinas, os medicamentos, inevitabilidades sem sucesso, pois continuo a encontrar pessoas a fungarem. Caminham na rua encolhidas, o frio pesa-lhes no corpo, sempre apressadas tentando escaparem às maleitas do inverno. Abri a porta grande da biblioteca ambulante, convidando a entrarem todos, os transeuntes trazem olhares distantes, ignoram o que os rodeia. Viajam com os pés no chão, a mente a milhas de distância, vidas anónimas, apoios para longas histórias de páginas intermináveis. O sol, descobre as ruas, as paredes brancas, os prédios, escondidas pela cortina espessa. No bairro o mexerico é corriqueiro, vejo-as de vassouras nas mãos, varrendo a más-línguas de que são alvo para a rua, na entrada dos prédios, dentro do carro, conquistando, aspirando, cigarros electrónicos, falando ao mesmo tempo umas com as outras, não sei o quê, não interessa. Preocupante é a biblioteca ambulante dar nas vistas, e não mostrarem qualquer relevância à presença das histórias. Um espaço cheio de intrigas, contidas dentro dos livros, se gostam tanto de curiosidades, vidas alheias, não há melhor lugar do que a biblioteca ambulante. Biografias, romances, jornais, revistas cor de rosa, filmes, suportes que nunca mais acabam, tudo isto tão perto. Não aproveitarem a oportunidade de continuarem a intriga é incompreensível. Cheias de novidades, nas futilidades enganadoras, deixam-me os cabelos em pé, não ambicionarem encherem a mente de enredos. Na pequena aldeia da Lampreia, dois homens sentados na paragem do autocarro, olharam a chegada da biblioteca ambulante com uma intensidade curiosa. Talvez nunca a tenham visto por estas paragens, ainda por cima, um veículo transportando lucidez. Expressando bem o que a traz diariamente às aldeias da minha terra. Não houve tempo de agirem, o transporte público levou-os. Foi virar uma página, acontece muitas vezes nas viagens e andanças, a esperança mora sempre ao lado, nos cafés, naqueles que andam na rua, nos que estão a espreitarem nas janelas, detrás das cortinas. Os que dizem que vêm, depois nunca voltam, há confiança de que algo de bom acontecerá sempre. Tudo tem o seu tempo, é o que não falta ao viajante das viagens e andanças. O jornal é bem escrutinado na mesa, na tarde soalheira, o leitor deste investe na informação, tira vantagem da presença da biblioteca ambulante.

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Não consigo evitar de abrir a boca involuntariamente, o bocejo está sistematicamente a assaltar-me. Não estou aborrecido, talvez sejam efeitos dos comprimidos para atenuarem a constipação. Arrebatou-me no fim de semana, e está difícil de expulsar. Acontece o mesmo com o sol, depois de uma manhã cheia dele, foi tomado ao início da tarde por uma espessa camada de nuvens. De repente, a tarde transformou-se, vieram leitoras com ânimo, contagiaram o viajante das viagens e andanças de boa disposição. As conversas escorreram abundantemente na biblioteca ambulante, assim se esvaziasse a criação do escritor perante uma folha em branco. A facilidade das palavras de andarem à solta no espaço rodeado de histórias, saem das bocas sedentas de troca de ideias, das páginas por descobrir. Parecidas com as folhas que se despegam das árvores, mantendo-se no ar algum tempo, ecos de quem as escreveu, precipitando-se depois no chão da biblioteca ambulante. Submetem um processo de requalificação nas pessoas que entram na dimensão literária. Resgatam leitores, à partida sem hipóteses de voltarem a continuarem a crescer nas páginas das histórias.

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Hoje, o céu é uma cabeça de chuveiro, tem os buracos todos desimpedidos. Tiram vantagem os animais no campo, nas pastagens, têm a erva tenra, a água limpa, condições para crescerem saudáveis. Debaixo deste chuveiro natural não arriscarão banharem-se os leitores, os corajosos que se atiram para debaixo do jacto de água, podem vir à sauna, a biblioteca ambulante, é um espaço aquecido. Um lugar excessivamente quente, ocupado por histórias, chamas invisíveis, aquecendo quem as lê. Só a água fria reprimirá os sentimentos calorentos causados nas palavras impressas, nos terrenos, nas pastagens, nos baldios, onde não se conhece o autor, nas páginas. Campos de letras fixadas pela tinta dos aparos, o sangue, e as lágrimas, jorradas na escrita literária. Ao atravessar a ponte na margem norte, rumo ao sul, vi, estas abraçadas às águas do rio, matam saudades, beijam-se num aperto, possível na imaginação do escritor. A curiosidade trouxe o sol ao largo do Cabrito esta tarde. O espaço está animado com as pessoas cavaqueando despretensiosamente umas com as outras. Mãos nos bolsos, boinas a taparem as cabeças, protegendo a calvície da hesitação do tempo. Os telhados do casario são o pasto das estrelas, nas noites frias do mês de Janeiro. Deixaram de proteger as pessoas, ou não existem, morreram, andam desalinhadas com a sociedade. O resto, são aqueles deambulantes ocupando o tempo nos cafés, estão reformados, dependentes de subsídios, ou não querem trabalhar. Os tempos actuais projectam um futuro cheio de incertezas. No Rossio ao Sul do Tejo, o coreto, há boleia dos pássaros dá música ao silêncio.

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Hoje, o céu é uma cabeça de chuveiro, tem os buracos todos desimpedidos. Tiram vantagem os animais no campo, nas pastagens, têm a erva tenra, a água limpa, condições para crescerem saudáveis. Debaixo deste chuveiro natural não arriscarão banharem-se os leitores, os corajosos que se atiram para baixo do jato de água, podem vir à sauna, a biblioteca ambulante, é um espaço aquecido. Um lugar excessivamente quente, ocupado por histórias, chamas invisíveis, aquecendo quem as lê. Só a água fria reprimirá os sentimentos calorentos causados nas palavras impressas, nos terrenos, nas pastagens, nos baldios, onde não se conhece o autor, nas páginas. Campos de letras fixadas pela tinta dos aparos, o sangue, e as lágrimas, jorradas na escrita literária. Ao atravessar a ponte na margem norte, rumo ao sul, vi, estas abraçadas às águas do rio, matam saudades, beijam-se num aperto, possível na imaginação do escritor. A curiosidade trouxe o sol ao largo do Cabrito esta tarde. O espaço está animado com as pessoas cavaqueando despretensiosamente umas com as outras. Mãos nos bolsos, boinas a taparem as cabeças, protegendo a calvície da hesitação do tempo. Os telhados do casario são o pasto das estrelas, nas noites frias do mês de janeiro. Deixaram de proteger as pessoas, ou não existem, morreram, andam desalinhadas com a sociedade. O resto, são aqueles deambulantes ocupando o tempo nos cafés, estão reformados, dependentes de subsídios, ou não querem trabalhar. Os tempos atuais projetam um futuro cheio de incertezas. No Rossio ao Sul do Tejo, o coreto, há boleia dos pássaros dá música ao silêncio.

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- O patrão foi à Bemposta! Foi a expressão que a mulher do Gregório mencionou, único leitor da aldeia do Vale de Açor. – Eu aguardo! Respondi-lhe! Com esperança que o Gregório não se atrasasse nos seus afazeres na outra aldeia. O sol espreita, o frio foi dar uma volta, o tempero matinal é bom. A biblioteca ambulante tem as portas abertas, a convidar as pessoas da aldeia a espiarem as histórias. A seguirem o exemplo do Gregório, leitor desde o primeiro dia da visita da biblioteca ambulante na sua aldeia. Façam como o sol, tragam calor às histórias, mais luz ao vosso conhecimento, o ensombrar a seguir não trará a solidão. Primeiro a sombra, depois a pessoa, finalmente o leitor, com pequenos passos, para alcançar grandes saltos e crescer através da informação. Nas Bicas, aldeia próxima do Vale de Açor, as leitoras justificavam as suas ausências na anterior permanência da biblioteca ambulante, preocupadas. Não dei importância aos relatos, incentivei-as a olharem as histórias nas estantes, motivando-as a escolherem outras. Há sempre afastamentos por motivos diversos, o que deve ser levado em consideração é a leitura, mesmo que não seja praticada de acordo com as regras estabelecidas. Não quero deixar de possuir leitores por situações irrelevantes. São as peças principais do motor da biblioteca ambulante, por eles, criaram-se as viagens e andanças com letras pelas aldeias da minha terra. Rumando diariamente aos quatro cantos do concelho, colocando o ponto final do dia de hoje na aldeia de S. Miguel do Rio Torto. O largo da aldeia não tem ninguém, oiço vozes, não vejo os transmissores. O dia fecha-se num tom cinzento, apesar de ter existido cores alegres, diálogos, leitores, na biblioteca ambulante. Lá fora está a chover, as primeiras águas deste dia de viagens e andanças. Chegou devagarinho, não a ouvi bater à porta, sabia que vinha, não desta maneira. Quem ainda não veio foram os leitores desta aldeia, os pingos delicados da chuva não os trarão, serão as histórias a cadeia que os prende.  

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