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Histórias à Beira Rio, viagens e andanças com letras pelas aldeias da minha terra

"Afinal, a memória não é um acto de vontade. É uma coisa que acontece à revelia de nós próprios." Paul Auster

Histórias à Beira Rio, viagens e andanças com letras pelas aldeias da minha terra

"Afinal, a memória não é um acto de vontade. É uma coisa que acontece à revelia de nós próprios." Paul Auster

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Foram raios de sol, os que entraram pela manhã a revirarem do avesso a neblina matinal. Espevitando o estado da prostração, estampada no rosto do viajante das viagens e andanças. Enlearam histórias, como quem liga as linhas nos bordados, retiraram outras para lerem, muita actividade junta para o início da manhã na biblioteca ambulante. Soube em segredo, do descontentamento do proprietário de um café, referente ao estacionamento da biblioteca ambulante, sempre próximo de outro estabelecimento com o mesmo teor. Não esperava por isto, rivalidades à parte, a paragem no sítio habitual, tem de ser, pelo espaço, pela acessibilidade dos leitores a entrarem no recinto das histórias. Não fiquei melindrado pela insatisfação do dono do café, pelo contrário, tenho orgulho pela biblioteca ambulante, a fixar pessoas na orla da área do seu estacionamento. A prender leitores, infelizmente insuficientes para a dimensão do território das aldeias da minha terra. A tarde está de vento em popa, os cabelos das mulheres, na rua, equiparam-se às serpentes inquietas, na cabeça da Medusa. Não param quietos, tapam-lhes a vista, estão constantemente com as mãos no rosto a desvia-lo. O gesto não é para incitar a olha-las com o rosto sem cabelos, mas, porque incomoda, dificulta-lhes a observação atenta da biblioteca ambulante. Encaro-as sem receio, de ficar transformado numa pedra, desafio-as, a entrarem na biblioteca ambulante, para terem possibilidades de hábitos de leitura. Comparecerem umas, outras não se interessaram, levaram histórias, apesar dos queixumes do costume, têm sempre muito que fazer, menos para ler. Também houve uma leitora, quando viu a biblioteca ambulante, lembrou-se, das histórias esquecidas em casa para devolver, entrou desculpando-se do pequeno apagão da memória, mencionando de seguida que não levaria nenhuma história. Não resistiu a uma sugestão do viajante das viagens e andanças, acrescentando mais outra à sua ficha do empréstimo. As vozes exaltadas dos homens no café a jogarem às cartas, chegam à rua, sons rudes a extinguirem um dia de trabalho no campo.

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Na Aldeia do Mato as ruas apresentam ainda as cicatrizes originadas pelas pás das escavadoras, manobradas por operários, cirurgiões, dando formas a projectos na construção civil, que desventraram o subsolo da aldeia. Trocaram, melhoraram, e estenderam as entranhas, nas quais a água corre ao encontro das torneiras, quando é precisa nas casas dos aldeões. Como se fosse uma aparição, o padre, apesar das demasiadas paróquias a seu cargo, isto anda mau para todos, surgiu, segurando em ambas as mãos uma caixa contendo garrafões para se abastecer de água no fontanário. Talvez para matar a sede, depois do sermão aos fiéis, para acalmar a garganta cansada de mencionar a palavra de Deus, ou renovar a água da pia baptismal. Não creio que seja o destino desta para estas  intenções, mas, na criação da escrita tudo pode ser possível. Sem intromissão do Divino, a conversa com o viajante das viagens e andanças, prologou-se um pouco, a falarmos disto e daquilo. Não estivesse o padre próximo da biblioteca ambulante, mais ninguém teria aparecido de manhã, até os leitores se negaram a virem escolher histórias. A tarde em Martinchel não trouxe nada de novo, até ao momento, o barbeiro está na entrada do seu estabelecimento a ver passar os automóveis na estrada que nunca dorme. Ele, e a biblioteca ambulante, não têm pessoas para cortar o cabelo, se barbearem, seleccionarem histórias. Casualmente podia acontecer um leitor estar na biblioteca ambulante, levar uma história, atravessar a estrada na passadeira, esta termina do outro lado, mesmo em frente da porta da barbearia. Entrar, sentar-se na cadeira, escolher o corte de cabelo. Ao mesmo tempo, o barbeiro realizava o corte, e o leitor, iniciava a leitura nas primeiras páginas da história. O primeiro capítulo é decifrado, comentado por ambos, envolver terceiros, sentados no salão, esperando pela sua vez, de colocarem a jeito, das mãos do barbeiro, o cabelo ou o rosto, na tesoura, no pincel e navalha, ferramentas habituais nesta profissão. Imediatamente gerava-se um clube de leitura, a barbearia podia ser o local onde as pessoas da aldeia, iam ler e discutir enredos. Cortar o cabelo, ou escanhoar a barba, passarão para segundo plano. Outra vez, a imaginação a desafiar a escrita. Abandono o local, acenando com a mão ao barbeiro, respondeu com gesto semelhante. Na estrada em direcção à última aldeia do dia, no sentido contrário, vejo aproximar-se um automóvel com a cor imaculadamente branca, a conduzi-lo, uma freira. Ainda dizem que não há coincidências.

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Olhares de curiosidade perseguem a biblioteca ambulante, desde o início da rua, na aldeia do Brunheirinho, até ao local onde as histórias tiram a preguiça, abrindo as páginas de par em par. É junto da fonte, do banco vazio de pessoas, e cheio de sol, dos aparelhos de ginástica, nos quais os velhos estiram os membros superiores e inferiores. Espaço adequado para quem quiser, também, esticar um pouco mais o conhecimento, puxarem pela mente, regulando a maioria das funções corporais e mentais. A carrinha vendendo géneros alimentícios pelas aldeias da minha terra, chegou buzinando fervorosamente. Foi o suficiente para as mulheres saírem de casa, rodearam o vendedor, sem tirarem os olhares do interior do veículo, tentando alcançarem imediatamente, primeiro, umas que as outras, o que irão levar para o almoço. Reconheço-me nestas mulheres e homens, a calcorrearem as estradas, vendendo o pão, os alimentos, aqueles que não têm como adquirirem de outro modo o sustento. A dar outras possibilidades, a leitura, na qual aprenderão a conhecerem, viajando nas páginas das histórias. Viagens a pé, de automóvel, de barco, de submergível, de avião, de foguetão. Nas viagens e andanças com letras pelas aldeias da minha terra. Correndo, para ultrapassarem o tempo perdido, a realidade, concebida nas imagens, na literatura. Os sacos cheios, estão poisados no chão, junto deles, as mulheres banhando-se no sol agradável do meio dia, falam sem parar umas com as outras. Serão os últimos diálogos do dia, depois de entrarem em suas casas, jamais sairão, a realização das refeições, o calor da lareira, travam quaisquer tentativas de se aproximarem da porta da rua. Excepcionalmente, uma olhadela curiosa à passagem da biblioteca ambulante, só de a observarem basta para um comentário à mesa, no jantar. Os campos conquistados pelas flores não enganam, aproxima-se o tempo meteorológico da primavera. O renascimento, a comemoração da liberdade, de escolhermos o futuro que queremos para o nosso país, de podermos ler o que nos apetecer, a continuação de ser feliz na biblioteca ambulante. No largo do Cabrito o ar está áspero, a esplanada da padaria, e pastelaria Central, não tem clientes ao início da tarde. O frio é mais forte, não permite atrevimentos, naqueles com vontade de fumarem um cigarro, enquanto saboreiam o café. Ou lerem uma história, sem serem incomodados com a violência das páginas a tentarem sobreporem-se perante a leitura atenta.

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O vento sacode a biblioteca ambulante, embala o berço das histórias, o mata-borrão que impede as palavras se dispersarem no papel, que não conhece ainda o amor de quem as escreve. A perpetuar acontecimentos, personagens, emoções, reunidos nas nuvens, impelidas com vigor pelo vento. Está frio, o odor a fumo vindo das chaminés impregna a aldeia das Bicas, a rapidez do ar incita as brasas nas lareiras. Torna os leitores mais ardentes, puxando-os há biblioteca ambulante, chegam enregelados, de rostos espavoridos, abraçando as histórias e o corpo ao mesmo tempo. Querem escolher histórias novas, colocarem-se o mais rapidamente defronte do bibliotecário, para terminarem a aprovação do empréstimo. Saem como se fugissem de um enredo diabólico, misturando-se no fumo pairando invisível no ar. Depois de arriscarem o confronto com personagens estranhas, e sem escrúpulos. Mesmo assim a curiosidade impele-os sempre a regressarem, de voltarem a explorarem páginas cheias de astúcias, de paixões abrasadoras, e aventuras nas regiões mais inóspitas que se possam conhecer. O vento ruge como um leão, não tem medo, é o rei da atmosfera, a sua força abre as portas aos saberes alheios, à intelectualidade. Afugenta os receosos e cobardes da verdade das palavras, que as usam com intuito de enganar ou iludir. Servem-se do passado no mau sentido, e não como uma lição para não se repetirem ideias egocêntricas. Da união de sociedades em torno das grandezas nacionais, da demolição de uma imprensa livre, ou da sociedade civil, adulterando a justiça nos seus próprios interesses.

 

 

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O vento seca a água da chuva que caiu sobre a estrada nas viagens e andanças, os campos ensopados, a roupa no estendal. O vento é uma máquina de secar memórias, apaga tudo à sua frente, é uma doença, uma borracha não faria melhor. O vento não me deixa voltar ao passado, empurra-me para o futuro. Vou na biblioteca ambulante, com aqueles que presenciaram acontecimentos, lembranças, guardadas para sempre, na escrita, nos livros, cujas páginas amarelecidas o vento não soprou. A biblioteca ambulante, é a caixa, ou a arca, onde as histórias estão em segurança, que se abre sempre quando os leitores têm necessidade de regressar ao passado. É uma máquina do tempo, um portal, se a quiserem apelidar assim. O regresso ao futuro também é possível, a confiança não será a mesma que o passado nos dá. O presente, foi o futuro do passado, poderá dar-nos alguma convicção daquilo que encontraremos nos dias vindouros. A biblioteca ambulante é a estabilidade que precisamos, é o caminhar para a frente. É o vento a levar-nos, do passado ao presente, supondo o que ainda vai acontecer.

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Os primeiros pingos de chuva começam a cair, sobre o vale, a charneca beija a planície apertada pela intromissão natural do declive. As primeiras flores de cor branca, da planta, conhecida como esteva, estão a aparecer. De um dia para o outro a charneca ficará repleta destas flores, uma página em branco onde o silêncio escreverá sobre a harmonia e a tranquilidade, a solidão sobre as ausências. Irão misturar-se com as flores amarelas predominantes no momento, as do tojo, com folhas espinhosas. A erva verde é a base promiscua para estas duas cores, não retirando importância a muitas outras plantas selvagens, cujas flores de cores diversas dinamizam o vale. O conjunto provoca sempre no viajante das viagens e andanças, motivação para continuar e regressar outra vez, a alegria do vale é contagiante. É uma leitura, sobre aventuras, memórias, passagens de uma meninice veloz, para se conseguir agarrar a paisagem, a fauna e a flora. Com o crescimento e após prolongada ausência, a biblioteca ambulante foi a oportunidade para voltar a percorrer a charneca e as aldeias desta parcela da minha terra. O olhar também está diferente, observar, saber, perceber e ler o vale, as pessoas, os costumes, são páginas sem fim, cheias de emoção. Depois de visitas seguidas a trazer histórias, conquista-se os olhares, no início interrogativos, actualmente, esclarecidos, e conhecedores do papel da biblioteca ambulante nestas paragens. A dificuldade está na atracção, a sua função não está a ser cumprida. Não há leitores suficientes, e somente um deles vem esporadicamente escolher uma história. Nas outras aldeias próximas, a superioridade na leitura não é motivo para festejar. Quem escreve histórias, é conhecido no país pelas mensagens desenvolvidas nos livros publicados, podia ser incentivado a alcançar as aldeias, dar-se a conhecer, com a sua presença a estas pessoas. Trazer a sua informação pessoalmente. Descentralizar os autores é importante, não basta estacionarem nas cidades, as aldeias possuem gente capaz para os ouvir e perceber. A biblioteca ambulante fará o resto, levando as histórias destes, abrindo as emoções escondidas, mostrando horizontes impossíveis de serem partilhados sem a leitura. Vamos pensar no assunto, trazer os criadores de escritas, empurrar as pessoas nas aldeias para o exterior do espaço onde estão. A chuva abateu-se violentamente no vale, um sinal da possibilidade mencionada, para as pessoas, para as aldeias.  

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A porta aberta aos leitores, não é suficiente para seduzir os curiosos, ao passarem, nunca deixam de olharem para o interior da biblioteca ambulante. As histórias em sentido, direitas, na parada, acumulada de páginas escritas, esperam pela inspecção detalhada dos leitores experientes. Deitadas estão as mais novas, ao verifica-las, levantarão as mesmas, descobrindo que nunca as tinham visto em linha com as outras. São as primeiras a ausentarem-se na missão, comandadas por dedos conhecedores do ofício, encaminhando os olhares, explorando linhas imaginárias cheias de palavras desconhecidas. A discussão surgiu instantaneamente com o livro na mão, Bala Santa, do autor Luís Miguel Rocha. A origem da desordem surgiu na semelhança de títulos do mesmo autor. Escutei, ao mesmo tempo que escrevia o nome, os dados pessoais, da nova leitora na plataforma. A defesa de argumentos ao redor de histórias lidas, por ler ainda, as hesitações sobre as quais se leu, ou não. A biblioteca ambulante transformada num espaço de debate literário com leitoras experientes, e saberes literários. Prevaleceu a razão com a moderação inesperada do bibliotecário, na sua independência, e algum conhecimento no assunto partilhado pelas leitoras. O sol desapareceu, o céu está cinzento, num instante a tarde perdeu fulgor, o frio e a chuva estão de regresso. A biblioteca ambulante não se ausenta, vai e vem, pelas aldeias da minha terra.

20 Fev, 2024

Onde foram elas ...

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A renovação da casa, no largo da aldeia, no Tubaral, avança paulatinamente. O som do berbequim a perfurar a solidão, a explorar a história das paredes de outrora, tentando saber as histórias. As memórias enraizadas, nas paredes da casa, do martelo a bater no silêncio, dão energia ao largo. A betoneira a girar é a roda da sorte, da densidade populacional da aldeia. A sorte está nas palavras consoantes, seleccionadas,  «casa, janela, ninho» e numa vogal, «a». Após a betoneira parar o seu movimento giratório, ganhou a aldeia. Não há muito tempo, no banco construído em alvenaria, debaixo da copa, da laranjeira, um pequeno grupo de mulheres da aldeia, aguardava sempre pela carrinha da padeira. Actualmente não acontece essa demora, não acontecem as novidades, os mexericos, a vida no largo. Onde foram elas, a pandemia levou-as, tirou-me leitoras, a alegria da aldeia. As obras na casa são um recomeço, a reedição de uma história, com apontamentos novos incluídos. A actualização num tempo novo, a curiosidade no que diz respeito à casa e aos futuros habitantes será cada vez maior, sempre que a biblioteca ambulante regressar à aldeia.

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A neblina esbateu o início das viagens e andanças, como se um lápis a carvão cobrisse levemente a manhã. Não demorou muito ao desenhador, vincar o brilho à obra, tornando-a mais alegre, com cores de fazer arregalar o olhar do bibliotecário da biblioteca ambulante. As cegonhas batem o bico, fazendo saber às outras da presença das histórias. Não sei se é por receio, ou curiosidade, de ficarem para sempre presas nas páginas das histórias, ou quererem fazer parte das mesmas, como personagens principais. O som do batucar dos bicos não cessa, a porta está aberta, é um bilhete para entrarem, e voarem nas folhas brancas. Construírem ninhos de palavras, criarem esperança, e determinação para novos leitores construírem alicerces, desenvolverem saberes. O lápis continua a reunir novas paisagens, ou elementos, de modo a que a folha perca a inocência. A tarde demonstra o que realmente não é, o sorriso alargado, a energia libertada, enganam os mais distraídos, trajando roupa leve, de braços despidos. Mostrando outras maneiras de comunicação, marcados na pele branca, por imagens e palavras. No campo a tecelagem natural acrescenta padrões novos ao tear, no final os tapetes fabricados causam incentivos, e alguma evolução naqueles que os vêm. O desenho chegou ao fim, os lápis estão mais curtos, e a folha ocupada com uma história.

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O sol, não abriu ainda o horizonte, a luz para a aldeia alcançar outros conhecimentos. A biblioteca ambulante, espalha a luz que pode, é o atalho para descobrir outros lugares, e povos. Entrando pela sua porta, é experienciar estímulos diferentes, atravessar uma comprida ponte suspensa. Olhar páginas de horizontes desconhecidos, sentir a agitação do equilíbrio em cima das tábuas, suportes das primeiras escritas. O vento forte bate nos rostos, paralisados na surpresa, das palavras nunca lidas, em baixo, no despenhadeiro, o rio apertado, esquiva-se dos obstáculos, sempre prontos a riscarem palavras incomodativas. Na ponte, o olhar evita o abismo, a situação está complicada, não se prevê uma resolução a curto prazo. É preferível levantarem os olhares, seguirem em frente e transporem a desgraça. O rio corre em liberdade, sem desigualdades, apesar das circunstâncias naturais, ao encontro de um oceano cheio de utopia. Depois da ponte, o caminho difícil termina numa clareira onde há luz, há tempo, para perceberem que estão na biblioteca ambulante.

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