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Histórias à Beira Rio, viagens e andanças com letras pelas aldeias da minha terra

"Afinal, a memória não é um acto de vontade. É uma coisa que acontece à revelia de nós próprios." Paul Auster

Histórias à Beira Rio, viagens e andanças com letras pelas aldeias da minha terra

"Afinal, a memória não é um acto de vontade. É uma coisa que acontece à revelia de nós próprios." Paul Auster

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O barulho é ensurdecedor, o espaço exterior do infantário é o estaleiro das obras necessárias à reabilitação do mesmo. Amontoam-se resíduos de alvenaria, e outros materiais obsoletos, ampliam-se as salas, dão-se condições melhores para as crianças, professoras e auxiliares. A biblioteca ambulante complementa a necessidade literária nos dias da visita à vila do Tramagal. Não é uma estranha aos olhos dos miúdos, conhecem-na, frequentam-na, estão habituados a retirarem histórias, folheiam-nas, ainda não sabem ler, interpretam seguindo as ilustrações. O primeiro passo está dado, nas salas de aula as professoras lêem voz alta para elas. A biblioteca ambulante é um princípio na curta existência destas crianças, têm a oportunidade de sentirem, tocarem no papel mágico, onde estão impressas as vogais, as imagens. Informação delicada nos primeiros olhares, ficando firme, consoante a experiência de saberem ouvir, no manuseamento. As mães foram à escola buscar os filhos, vejo-as a passarem, puxando-os pelas mãos, não os arriscam trazer à biblioteca ambulante, as histórias esgueiram-se, dão nas vistas, mesmo assim, apesar dos olhares, não atravessam a estrada para matarem a curiosidade. O último período da tarde foi preenchido por leitores, com conversas à roda dos livros, da política, interna e externa. O Tramagal tem gente, leitores interventivos, com maneiras próprias de reclamarem sobre o estado da sociedade, do mundo em geral. Unidos pela metalurgia, profissão que exerceram desde muito novos, impulsionadora no desenvolvimento da comunidade.

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Andam inquietos, o mundo está complicado, espiam quem entra no café, um copo oferecido é bem melhor do que largar uns euros. Não está fácil, o dinheiro não estica, o vício fica sempre em primeiro lugar, barbas por escanhoarem, vagabundos assalariados, de um sistema cego. O vento intromete-se nas viagens e andanças, nos leitores da biblioteca ambulante, as histórias chegam apertadas pelas mãos que as trazem, as palavras presas não servem para nada, leram-nas, gostaram tanto e não querem que o vento as leve. Não haveria qualquer contrariedade se estas escapassem entre os dedos das mãos,  demonstrando atenção aos futuros leitores destas, na biblioteca ambulante. Este sufoco continua na aldeia do Pego, as palavras, agora não estão sozinhas, eu também me sinto asfixiado pelo ar quente. Está parado, faz exactamente o que a biblioteca ambulante, permanece na aldeia. Não traz histórias, não faz cá falta nenhuma, ocorre-me muitas vezes este pensamento, aqui no Pego. Apesar de trazer histórias, não tenho quem as prenda com os olhos, com as mãos, os tempos andam extravagantes, trocam as voltas às pessoas, aos meus olhos são forasteiros na sua própria terra. Caminham cabisbaixos, mãos enterradas nos bolsos das calças, nos casacos. Apoiados nas bengalas, de olhares tristes, cansados de olharem para as suas vidas sempre iguais. Percorrem trilhos, no passado foram de terra, adulterados por passagens sem fim, alcatroados, pela  promessa, da chegada da modernidade. Afinal não se adaptam, não querem conhecer as palavras que os despertariam da dormência contínua. Até os mais jovens, a gozarem as férias, alarmam-se, espantados, condicionados pelas redes sociais, com a presença da biblioteca ambulante na aldeia. Não haverá quem os informe sobre a importância da leitura, os políticos, nos programas eleitorais, esta é, ou, mais importante como erguer estruturas, empresas, comércios e serviços de utilidade pública.  A leitura é uma ocupação saudável, é útil à mente, ao corpo, poderia designar-se como Serviço Nacional de Leitura, sem encerramentos das bibliotecas, por ausências de bibliotecários A literatura portuguesa, a estrangeira, ensaios, poesia, ficção, especialidades sempre prontas a satisfazerem os leitores. Outras de uso mais restrito, as ciências, a história, a arte ou a economia, nas estantes ao dispor dos leitores desesperados por aprenderem. Melhor saúde poderíamos ter, se lermos todos os dias, um comprimido composto de palavras, a vida seria mais racional. Vejo os pássaros, levando pendurados nas patas, ramos e fenos, ao encontro de ninhos rarefeitos, por erguer ainda. Capturam oportunidades, capazmente para resolverem o futuro da geração.

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O nevoeiro é matreiro, num instante esconde, noutro descobre, automóveis, a transitarem à frente da biblioteca ambulante, lugares, a espreitarem quem passa na estrada. Na Associação Comunitária de Apoio à Terceira Idade de Mouriscas, alguns, que desfrutam do apoio da instituição, estão ausentes da vida, ou no caminho em direcção ao túnel, que lhes tirará a luz para sempre, têm momentos onde conseguem romper a neblina. Surpreendem, como se fosse ontem, as histórias estão ali à mão de semear de quem os ouve. Vejo os vultos, parados no tempo, no fim das histórias, semelhantes, talvez, não sei, um dia, se irei ler. Em Sentieiras, os jornais da biblioteca ambulante, estão num tumulto exagerado, páginas para a frente, para trás, notícias frescas, a bola ainda rola, nas cabeças de quem os agita. A manhã amena, está convidativa aos leitores casuais, aqueles estreitamente vinculados às histórias. A folga permitida no Carnaval, deu boleia a outro dia, trouxe pessoas às aldeias. As memórias, atropelam-se à mesa do almoço, comendo cozido à portuguesa, os pratos cheios de palavras, e os copos de alegria. Condições para se escrever no tempo histórias, relembrar episódios, fixar para sempre mais um dia em família, com os amigos. As aldeias da minha terra, geram a saudade, dos avós, dos pais, dos tios, dos primos. Dos que partiram, e já não voltam. Do passado, e do presente que perderam. A tarde está quente, a roupa de inverno é um estorvo, os meus pés estão assando lentamente dentro das botas. Um calor sobe devagar e preenche a biblioteca ambulante. A pequenada baloiça, empurradas pelo amor da mãe, cujos braços são alavancas, para lhes dar o impulso para crescerem. Ouço a palavra avó, a palavra mãe, ecoando no ar, lugares a partir dos quais se iniciaram, se desenvolveram condições para se viver, ou estar presente. A biblioteca ambulante é um desses lugares, onde se pode começar a conhecer, e a difundir ideias. Um local de partidas, de viagens, um cais de acolhimento ao silêncio, ao som das palavras.

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O vento puxa-me, não quero ir, o arco-íris é a ponte para chegar à outra margem do rio, nas viagens e andanças. O sol rasgou as nuvens ao meio, de um lado há alegria, no outro a tristeza. Em ambos há histórias contadas, há histórias por contar, a biblioteca ambulante está cheia delas. O vento não as levou, não sabe ler, é um conquistador, leva tudo à sua frente, de um momento, para o outro, conquista o mundo. A biblioteca ambulante não é o vento, voa nas asas deste, para chegar a todas as aldeias da minha terra, ao mesmo tempo. A chuva veio e já se foi, uma ausência provisória, o silêncio na história na passagem de uma página para a outra. Os leitores ultrapassam o limite de tempo combinado, não aproveitam a ausência da chuva, da tinta, que não escreveu no intervalo do capítulo da história. O marcador trava o avanço precipitado na leitura, lesse mais logo, ou amanhã, quando os leitores chegarem.

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A manhã acordou cinzenta, a poeira iludiu-me, a sua semelhança com a densidade do nevoeiro, normal nas manhãs de inverno, obrigou os condutores a manterem os faróis dos veículos acesos. O largo do Cabrito, tem os lugares habituais de estacionamento ocupados, a biblioteca ambulante ficou em segunda fila, sem estorvar os automobilistas e peões a deambularem por aqui, olhando com admiração as histórias. Entrou um leitor, mais ouvinte, retira e coloca, hesita, finalmente, traz os CD’S escolhidos. A primeira coisa que faz depois de sair, foi entrar no seu carro, mata-velhos, ou papa-reforma, como são designados, estas máquinas, duvidosas, de transportar pessoas, muitos destes condutores desconhecem o código da estrada e a interpretação dos sinais verticais. O som elevado, encheu o largo, puseram-se a dançar os limoeiros e as laranjeiras, nos quintais das casas que cercam o largo. As pessoas não estão para bailarico, preferem estarem sentadas nas esplanadas em ambos os cafés existentes, separados pelo diâmetro do largo. A dormitarem, olhando não sei o quê, nas conversas uns com os outros. O som da música em altos berros, as histórias, não os motivam, para eles, uma boa história da vida alheia, do lugar onde habitam, um estranho, presente periodicamente no largo, numa carrinha cheia de livros, trazem assuntos à superfície. Exploram o que podem e o que não podem sobre estes, tempo desperdiçado, ninguém quer ler, o que está aqui a fazer. Bem fez o leitor, ou ouvinte, não deu ouvidos ao cepticismo, deitou fora a descrença e agarrou a oportunidade de ser leitor ou ouvinte na biblioteca ambulante.

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Há histórias novas na biblioteca ambulante, oportunidades diversas, informação local, escritas diferentes, enredos, política, ideias e acções, criadas pelas canetas de quem as escreveu, na Rússia, na América, na Islândia e Portugal. Lugares distantes uns dos outros, separados pelo oceano Atlântico e pelo Estreito de Bering, onde a tinta que dá vida às palavras, sublinha a importância da escrita através dos tempos. Não há barreiras a impossibilitar o avanço do conhecimento com a escrita, nas histórias, foi isso que fez um habitante da aldeia, do Vale de Açor. Nunca o tinha visto, ele, pelo contrário tem conhecimento da visita da biblioteca ambulante, periodicamente à sua aldeia. Veio, meteu a cabeça no interior, a espreitar cheio de curiosidade. Quer livros sobre peixes, espécies existentes nos rios e albufeiras no nosso país. Esteve muitos anos emigrado, gosta da pesca lúdica, quer saber variedades, onde e quando os pode pescar. No meu ponto de vista um novo leitor está no canal de acesso à leitura na biblioteca ambulante. Na aldeia passarão a ser dois leitores, outra batalha ganha, num conflito contínuo, pelas aldeias da minha terra. O sol escondeu-se, realçando uma aragem fria, na aldeia das Bicas. As primeiras leitoras estão a chegar, entregam, voltam a levar histórias, deixam no ar, ais e suspiros. As hortas obrigam-nas andarem numa roda viva, em volta das ervas daninhas, de sacho na mão, percorrem as parcelas cultivadas, tal e qual uma ronda num aquartelamento, garantindo a segurança das novas plantas, face a uma possível invasão de infestantes. No largo, na aldeia de S. Miguel do Rio Torto, as avós olham atentamente os netos a brincarem nos baloiços, a escorregarem furiosamente nas rampas, correndo uns atrás dos outros, em aventuras imaginárias, as quais só as histórias sabem descrever, nos parques de recriação, páginas de entretenimento onde as brincadeiras aceleram futuros homens e mulheres.

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A charneca canta e chora de alegria, as plantas selvagens molham as raízes nas pequenas correntes de água, que continuam à superfície do solo. A biblioteca ambulante, acelera nas estradas estreitas, escoltadas por sobreiros e carvalhos, as viagens e andanças prosseguem outra semana pelas aldeias da minha terra. No largo do Café Areias, com vista privilegiada, para a charneca abastada, para uma leitora da biblioteca ambulante, sentada, numa cadeira, na varanda da sua casa, protegida na sombra de um chapéu de esplanada. As suas primeiras palavras foram de que não tinha lido completamente a história que levou da última vez que aqui estive. Tem na sua posse outra que lhe chegou inesperadamente às mãos, um barbicaho, resolvido, lendo ambas, disse. Intervalando os momentos da leitura com o preenchimento dos quadrados em branco das palavras cruzadas. Processo ao qual estava absorvida, quando a biblioteca ambulante estacionou defronte da sua casa. Ao longo do percurso pelas aldeias da minha terra, hoje, vi roupa no estendal a secar, nos lugares mais improváveis. Afastadas das casas, onde cobrem as intimidades, agasalham, e calçam os proprietários destas, no meio de áreas verdejantes, planas como réguas. A roupa, assim estendida é uma armadilha para caçar o vento a fustigar aquelas paragens. Esgota a energia deste, secando os tecidos molhados na lavagem. Espalham no ar pudores, pela força da limpeza, não somos perfeitos, lavamos a alma na leitura, com chapadas de palavras que nos abrem os olhos. Arrepiam o nosso corpo, como a água gelada do mar, batendo-nos com força, remexendo o pensamento. É o que faz a leitora, à beira mar de um oceano de palavras. Molham-lhe os pés, sempre que a onda de palavras se desfaz nas páginas de areia, numa enorme sopa de letras. Exercitando as células nervosas, tentando a reunião acertada das palavras, a leitora estanca a possibilidade, da alienação conquistar a sua independência. Os limões pendurados nos limoeiros, assemelham-se a confetes espalhados nas viagens e andanças, não é por acaso que o Carnaval está a chegar.

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A cooperação da temperatura não é a melhor hoje de manhã, no trabalho, nas histórias, com a biblioteca ambulante. As bancadas na pequena feira estão atulhadas de roupa, as freguesas mexem e remexem, como se as mãos tenham olhos. O que pretendem é orientação, a textura, os padrões, a qualidade apresentada no que está exposto. Não muito diferente de quem lê uma história, folheando as páginas, explorando detalhes, prognosticando, imaginando, ou cheirar a tinta impressa, tudo isto até ao âmago de quem a escreveu. Vejo leitoras da biblioteca ambulante focadas no negócio que pretendem realizar, disputam valores, afastam-se reclamando, regressam seduzidas pelo desconto imediato. Os valores disputados na biblioteca ambulante estão relacionados no sentimento dos leitores, no confronto com as histórias que lhes dão a liberdade de passarem a saberem.  Experimentarem com a leitura a habilidade de compreenderem melhor os momentos da actualidade, os horizontes ainda desconhecidos. O sol aquece os ossos frágeis dos velhos, sentados defronte das casas. Hoje celebra-se o dia da Nª Senhora das Candeias, uma leitora evocou-me o que sempre ouviu, através da oralidade dos antepassados. Heranças das comunidades, sapiências populares, provérbios resilientes. Nesta festividade, no sorrir do dia,  do nascer ao pôr do sol, o inverno estará ainda para vir. Os caminhos do tempo, nas aldeias, continuam sendo desbravados pelos adágios, nada se faz sem as opiniões populares. As histórias complementam na inovação, no aperfeiçoamento, nos prazeres da leitura casual ou não. O Vale Zebrinho é uma festa, o céu azul, e a charneca abraçam-se numa boda cheia de ruralidade. O interior, importante no planeamento do património natural, tem os seus arquitectos reclamando por condições melhores ao desempenho do trabalho, das suas vidas. Não estamos em liquidação, queremos respeito, somos as raízes do país. Sei-o pelas histórias que li.

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O calor na aldeia da Amoreira trouxe leitores à biblioteca ambulante, a reabilitação total de um prédio, vai de vento em popa, meia dúzia de operários repõem estruturas novas, erguem paredes, cobrem intervalos de tempo, lugares de histórias. Espaços que guardam memórias, ambicionando novas sensações. O fontanário desafia quem aqui habita, água inesgotável para saciar a sede, os trabalhos domésticos, limpar almas. Canta histórias, os lamentos da aldeia, todas as vezes que se abrem as duas torneiras. Em Rio de Moinhos a primavera antecipou-se, realçando os perfumes campestres, a magia de quem escreve na terra, deixa-me curioso com algumas caligrafias no solo. O sol aguenta-se no seu brilhantismo, apesar da tarde avançar para ocidente, a noite chegará outra vez fria, um livro a fechar-se, uma história para recordar.

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