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Histórias à Beira Rio, viagens e andanças com letras pelas aldeias da minha terra

"Afinal, a memória não é um acto de vontade. É uma coisa que acontece à revelia de nós próprios." Paul Auster

Histórias à Beira Rio, viagens e andanças com letras pelas aldeias da minha terra

"Afinal, a memória não é um acto de vontade. É uma coisa que acontece à revelia de nós próprios." Paul Auster

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A confusão instalou-se nas cabeças das mulheres na aldeia do Tubaral. A padeira ainda não chegou com o pão, a biblioteca ambulante, buzinou freneticamente, copiando a carrinha do pão. Sem intenção, induziu em erro as mulheres com o estratagema do serviço concorrente. Uma destas mulheres, insiste, mencionar em voz alta, para outra, colocada de atalaia ao pão, mais abaixo na rua. É um dia igual aos outros, não se cansando a repetir estas palavras, insensíveis, relacionadas com a celebração do Dia da Mulher. Não é igual, benditas as mulheres que todos os dias abusam da biblioteca ambulante, acalmam a fogosidade das histórias, desfolham as páginas, apagando o fogo das palavras repletas de paixão. A quebrarem a inquietação, das palavras do protesto, das palavras da solidão. Uma manifestação de curiosidade, de quererem saber, do prazer na leitura, não compartilhada pelos homens, nas aldeias da minha terra. As mulheres nas aldeias da minha terra, trabalham no campo, mantêm diariamente o bem estar nas suas casas, estão alojadas temporariamente ou permanentemente, por incapacidade, autonomia, nos Centros Sociais e Lar para Idosos. Têm tempo para estarem umas com as outras. Têm disponibilidade para discutir, as histórias que lêem, de permutarem sentimentos intensos, de partilharem os mesmos sonhos. De serem felizes na biblioteca ambulante.

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Ontem, aconteceu um episódio com a biblioteca ambulante, ao deixar o rasto das histórias, as últimas casas, na derradeira aldeia do dia. Atento à estrada na condução da mercadoria valiosa, o olhar do viajante das viagens e andanças é interrompido momentaneamente na ligação ao destino. A impaciência das luzes projectadas a partir de uns faróis de uma carrinha pick-up, aproximando-se rapidamente do espelho retrovisor lateral da biblioteca ambulante. Ao tentar perceber a perseguição que estava a acontecer, o primeiro impulso foi abrandar a velocidade até parar. A carrinha perseguidora desviou-se na direcção de um trilho, parando o motor imediatamente. Um homem sai apressado com um livro na mão, ainda sem entender, foi tudo muito rápido, encarei finalmente a razão para o alarmismo rodoviário. O homem esbaforido, a proferir palavras de desespero e alívio ao mesmo tempo disse-me, avistei-o ali em baixo estacionado, fui a casa buscar o livro da minha mulher para o entregar na biblioteca. Cheguei cá acima e já não estava, dei pela carrinha a desaparecer na curva. Foram estas as sua palavras, acalmei-o, não haveria problema se não conseguisse alcançar a biblioteca ambulante. Explicou os motivos das sucessivas ausências nos dias da presença das histórias na aldeia. Estão em Lisboa, nem sempre a visita à aldeia coincide com a da biblioteca ambulante. Ontem foi esse dia, e o marido da leitora, quase falhava a devolução da história.  Hoje, a chuva e o frio são dois amantes envolvidos nos lençóis da manhã, praticam o amor desprovidos de cuidado, há algo de violento na maneira como se comportam no leito atmosférico. O som dos gemidos, do vento, e da chuva, ecoam nas aldeias da minha terra. Arrebatam a ansiedade dos leitores perante a aproximação da trovoada de histórias na biblioteca ambulante. A algazarra das palavras reunidas perante a presença dos leitores, fechou-se no final da história. Quando o prazer terminou com a intromissão do sol, de um momento para o outro a roupa da cama, acenava, chamando as nuvens, aprisionada pelas molas, no arame do estendal.

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Enquanto houver estrada para andar, pessoas para conquistar, e leitores para lerem, a biblioteca ambulante continuará a estacionar nas aldeias da minha terra. Um início promissor esta manhã aconteceu, ao atravessar uma aldeia para chegar a outra como destino. A saudação com o braço levantado de uma leitora, não há nada mais motivador para o viajante das viagens e andanças, o reconhecimento daqueles que usam e abusam das histórias, à passagem apressada nas suas aldeias da biblioteca ambulante. Fui abordado na rua, na aldeia do Souto, por um tractorista a conduzir o seu veículo agrícola. Abrandou a marcha até parar junto de mim, a questionar-me sobre o José Diniz. Que era feito dele, se vivia ainda. Respondi-lhe, infelizmente não se encontrava entre nós, partiu de vez, está a levar histórias nas aldeias do céu. Disse-me, que tinha sido o seu dentista noutros tempos, que o via muitas vezes a trazer histórias às aldeias também. Não é o primeiro a chegar-se perto de mim para me confidenciar a experiência de ter conhecido o José Diniz, através da leitura, ou pela necessidade de tratar os dentes. A sua memória continua a perdurar nas gentes das aldeias da minha terra, ou melhor, a importância dos livros, da sua leitura, no passado, para estas pessoas. O José Diniz, a biblioteca ambulante da altura, deixaram uma marca impossível de apagar. Uma saudade que os mais novos não conhecem, e não querem saber. A tarde iniciou-se com a inscrição de uma leitora na biblioteca ambulante, a pouco e pouco, as pessoas abraçam a leitura, apertam as emoções, estrangulando assim os seus problemas, a exclusão social. As cabaças penduradas, dançam na melodia do silêncio, estimuladas pelo vento frio. Afagam os desejos da solidão nas noites do inverno, vibram nos dias de verão com alegria nas romarias. O céu ficou cinzento, a biblioteca ambulante, amanhã regressa outra vez.

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A biblioteca ambulante, é e será sempre uma janela aberta nas aldeias da minha terra. Onde os aldeões, os leitores, possuem a sorte, estarem debruçados para a Rua dos Saberes. Verem passar as palavras, as letras de mãos dadas umas com as outras, conhecerem de perto quem as empurra pela rua adiante. Há sempre olhares sedutores de quem passa, para quem está sempre de olho à espreita. A torrente de palavras na rua não tem fim, umas atrás das outras, a provocarem risos, a puxarem lágrimas, a esclarecerem ausências de convicção, da insegurança no conhecimento. A rua está constantemente cheia de ruído, os vários personagens nunca se calam, a questionarem-se sobre as histórias de onde são oriundos. Do tempo, da pré-história, da Antiguidade, da Idade Média, da Idade Moderna, ou da Idade Contemporânea. Os mais distraídos à janela, têm momentos, de olharem para a rua e julgarem estarem a ver um cortejo de Carnaval. É fácil deparar com Alexandre o Grande, verificar o seu entusiasmo após a derrota dos persas, com um olhar no horizonte, a esquadrinhar a cidade de Alexandria. Ou os gladiadores lutando, divertindo os romanos no coliseu, ver o Robin dos Bosques, a manusear o arco e a flecha. Ficar salpicado de água salgada, com os mergulhos do gigante Adamastor, assustando os marinheiros, no imaginário do poeta. Olhar para o céu e ficar assustado com o tamanho do Gulliver, sem os liliputianos a incomoda-lo. Pedir ajuda ao Tomás Noronha para ajudar num qualquer caso de difícil resolução. Por exemplo, a incapacidade da biblioteca ambulante em conseguir captar para o seu seio mais leitores. Por fim, é fácil conhecer o percurso de vida  daqueles que mudaram o mundo. As ruas são as veias das cidades, não podem ser fechadas, são os caminhos que dão possibilidades ao dinamismo nas actividades comerciais, nas actividades sociais, e culturais. Os centros mais antigos das cidades são cruciais no quotidiano destas, sem histórias, sem transito, perdem vitalidade, morrem. As janelas fecham-se para sempre.

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Na pastagem a disputa pela erva macia está ao rubro, com os mais novos a não largarem a sombra das progenitoras. Os que estão de pança cheia, estão deitados a aproveitarem os raios do sol, indiferentes ao que se passa ao redor. Enquanto as nuvens não impedem os traços do sol, acertarem no lugar onde os animais pastam. Na rua a conversa está ao rubro defronte do café, vozes roucas, competem pela sua vez de falarem, ao mesmo tempo só gera confusão e ruído. O cheiro intenso, causado pelo tabaco a ser consumido, invade o interior da biblioteca ambulante. Quem fuma, está aproximadamente a uma distância de vinte a trinta metros, há boleia, na aragem, o odor chega rapidamente, impregnando as narinas do viajante das viagens e andanças. Desabituei-me deste cheiro, artificial no tabaco actualmente, há uns anos passados, foi mais doce, mais natural. Há ainda o tabaco consumido nos cachimbos, exalando um aroma harmonioso. Quantas páginas terão, e são lidas, entre reflexões e cachimbadas, em espaços cheios de neblina tabagista. Intimamente ligados ao romance policial, a outros géneros literários, por personagens, por viciados na leitura, o cachimbo e o cigarro, foram e são companheiros na escrita e na leitura. (Não sou fumador, e não sou fundamentalista em relação aos fumadores).

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Resgatar memórias de há 50 anos atrás, a guerra colonial, amizade, reconhecimento. O fim da carnificina humana, a independência das colónias, os olheiros, informadores misturados na população, captando os diálogos, as ideias e acções que não estivessem em concordância na ideologia do regime de então. Quem fosse atrevido nas palavras, quase sempre era abordado para comparecer no posto da guarda mais próximo. As mulheres não votavam, somente os homens influentes das aldeias. O trabalho árduo no campo, do início do dia, ao pôr do sol, escassez de comida, para os dias de trabalho intenso. O receio de quem estava próximo dos acontecimentos da revolução, acompanhando o desenvolvimento pela televisão (quem possuía) e rádio. Os mais afastados, no interior do país, com o avançar do dia, começaram a perceber o que acontecia em Lisboa. O silêncio estranho que envolveu a aldeia naquele dia, fazendo-os vacilarem no modo de agirem, sem certezas do que aí viria, o primeiro que mudaria as suas vidas para sempre.

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