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Histórias à Beira Rio, viagens e andanças com letras pelas aldeias da minha terra

"Afinal, a memória não é um acto de vontade. É uma coisa que acontece à revelia de nós próprios." Paul Auster

Histórias à Beira Rio, viagens e andanças com letras pelas aldeias da minha terra

"Afinal, a memória não é um acto de vontade. É uma coisa que acontece à revelia de nós próprios." Paul Auster

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É provável que estejamos no outono novamente, a aparência da manhã, como aquelas que se iniciam no mês de Setembro, até aos últimos dias do mês de Dezembro, vestindo-se de modo que pareça a estação do ano entre o verão e o inverno. A diferença está na duração dos dias, aumentam em vez de diminuírem. As viagens e andanças ficam fortalecidas com a temperatura amena que se faz sentir. Os leitores saem de casa, chegam, sem reclamarem por tudo e por nada. De sorriso aberto entram com histórias para devolverem, têm tempo para percorrerem o espaço exíguo, aprofundarem o seu conhecimento a observarem atentamente as histórias. A tarde chegou envergando uma gabardina, para se proteger da bátega forte de chuva. O que foi possível de manhã, com leitores presentes na biblioteca ambulante, será difícil, no momento, a assiduidade daqueles que lêem, com esta precipitação desenfreada. Sou acometido por um bocejar que não comporta intervalos, a pausa da chuva deu lugar às melodias dos pássaros. Um sentimento de incapacidade, envolveu-me, não consigo cantar como eles, voar, pular. Saltar páginas, ir à frente, ver os dias vindouros, voltar ao parágrafo, na aldeia dos Casais de Revelhos. A chuva voltou, fechei as portas, subi os vidros das portas, da biblioteca ambulante. É como acabar uma história sem querer saber o fim, repentinamente, destruí a atenção, a curiosidade, daquele possível leitor. As moscas estão activas, voam de um lado para o outro, descansam, pousando nas minhas mãos, no rosto, nos jornais. Andam em cima dos títulos, como se soubessem decifrar o que está escrito nas letras sensacionalistas. Necessitam deste alimento, as palavras, constante, para manterem os níveis de energia, e usufruírem de uma sabedoria igual à dos leitores da biblioteca ambulante. Moscas leitoras, com aqueles grandes olhos, o aparelho bucal a consumir letras sem parar. Expelindo ao mesmo tempo tinta para digerir frases completas, depositando os ovos nas linhas rasuradas. As moscas trazem consigo uma grande variedade de palavras, alertando sempre, incomodando-nos, para encontrarmos uma história forte.

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A sensação de bem-estar na celebração dos cinquenta anos do 25 de Abril, parece ter sido ultrapassada. O início da semana não sofre qualquer alteração, a preguiça, os dias sem viagens e andanças, é sempre um regresso fatigante. Os leitores talvez padeçam do mesmo incómodo, até ao momento nenhum apareceu na biblioteca ambulante. No bairro onde os prédios altos, e fraccionados, as casas independentes, evidenciam um conjunto de pessoas interessantes. Não anunciam novidades, infelizmente esta quantidade de pessoas não se declara leitora na biblioteca ambulante. Os horários de trabalho não são coincidentes com a presença das histórias no bairro. Mas, as pessoas, nas varandas a estenderem a roupa, a entrarem na mercearia, no café, ou a tentarem perceber a vida alheia. O desejo de saberem, espreitando nas janelas, o que faz o veículo de portas abertas, de cores apelativas, estampas com livros, flores, monumentos a perpetuarem história edificada, e doces tradicionais de Abrantes. Fazendo acreditar que ali se vende bolos a alguns curiosos. A surpresa vence sempre, quando olho para os rostos cheios de espanto, todas as vezes que percebem que o interior desta, está guarnecido por livros. Podiam trazer para mais perto a vontade de saberem o propósito do veículo alegre no bairro. Terem força para transporem as portas, a capacidade de ocuparem o tempo em casa a lerem. Viajando nas páginas sem fim, o céu é o limite, foi assim que Júlio Verne desafiou a faculdade de inventar, com a obra Da Terra à Lua, em 1865. Actualmente a linha é outra, experimentem, entrarem na brochura, na encadernação, cápsulas onde encontrarão os instrumentos necessários aos voos literários. Não foi assim que aterrei esta tarde na aldeia da Lampreia, não posso mencionar a biblioteca ambulante como uma desconhecida aos olhos de quem aqui habita. São alguns anos a permanecer, neste fim do mundo, das aldeias da minha terra. Há pessoas ligadas às histórias, não aparecem, para mim, deixaram de serem leitores, não os vejo, morreram, desapareceram. A biblioteca ambulante continua a regressar, testando a sua capacidade de resistência à fraca disponibilidade da população. No céu as nuvens viajam apressadas, filhas do vento, embarcações tripuladas por argonautas, em busca da página, ou lugar, para se conservarem memórias, se fixarem as palavras ainda não escritas.

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A ramagem das tílias está suficientemente frondosa para dar existência à sombra. É nesta que a biblioteca ambulante se esquiva dos raios solares, quando permanece na aldeia de Martinchel. As flores destas árvores ganham força e impressão visual, a progressão dos dias trará cor às flores. Do mesmo modo, conduziram uma leitora nova, destacando-se, assim, das outras pessoas da aldeia. Assumindo-se como uma flor da árvore, cujos frutos são as histórias, a semente que um dia irá gerar outro leitor. A biblioteca ambulante não se cansa, a deixar sementes pelas aldeias da minha terra, há flores por despontar, há flores coloridas, há flores a murcharem. Até ao fim são regadas por palavras frescas, para não desistirem, para continuarem bonitas, para brilharem para sempre.

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O Dia Mundial do Livro, não podia ter começado da melhor maneira, com a vinculação de uma instituição de apoio à terceira idade na biblioteca ambulante. O incitamento à leitura, através da mediação, em linha recta com o leitor. Ler para quem foi leitor, para quem nunca foi leitor, ou para quem não sabe ler, é o habitual nestas instituições de acolhimento diurno ou permanente. Entusiasmados, continuamos a ir atrás das histórias deles, há sempre algo a surgir da gaveta das memórias, libertar as palavras presas no passado. As portas da biblioteca ambulante abertas como sempre, receberam os leitores do costume. Entraram, andaram por aqui, explorando histórias desconhecidas, escritas por autores conhecidos. A descobrirem outros diferentes, temas, sobre os quais nunca tenham lido. Não sei, não questionei, se tinham conhecimento da celebração do livro. O importante é exaltarem diariamente a lerem as histórias. Não há melhor forma de demonstrar a importância desta ferramenta de prazer. Vivam os livros. Vivam quem os escreve.

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Dia da Terra, o sol, as flores, de cores amarela e roxa, flanqueando os caminhos nas viagens e andanças com letras pelas aldeias da minha terra. O aspecto, dos campos impressionam, tapetes de alegria a perder de vista não deixam indiferentes aqueles que percorrem as estradas apertadas. Dão esperança, iludindo a alteração do estado de emergência em que o planeta se encontra. O alívio urbano dá que pensar na aldeia do Vale de Açor, os veículos pesados a transportarem grandes quantidades de troncos. Eucaliptos, ou pinheiros, aptos para as serrações, indústria do papel e outras, são os únicos a intrometerem-se, a provocarem desordem sonora na aldeia. Hoje ainda não vi ninguém, só oiço palavras que não consigo alcançar. Ecoam nesta parcela da aldeia, onde está a biblioteca ambulante, as histórias inquietas. Há um leitor inscrito recentemente, levou livros sobre peixes do rio, até hoje, não os devolveu, estou curioso por saber se tiveram sucesso. Se o esclareceram sobre as espécies existentes no rio e afluentes. Se o acompanharam nas explorações, ou usou a cana da pesca para prender algum peixe no anzol. Saí da aldeia com um homem velho a acenar-me com um braço levantado, devolvi-lhe o cumprimento levantando o meu braço esquerdo. As leitoras da aldeia das Bicas chegaram uma de cada vez, a primeira partiu com pressa, foi avisar a segunda da presença da biblioteca ambulante. Antes, conversamos da celebração dos cinquenta anos do dia 25 de Abril. Estava casada, vivia em casa dos seus pais com o marido. Trabalhava no campo, juntamente com os progenitores, o marido exercia a sua profissão na manutenção militar, no Campo Militar em Stª Margarida.  A segunda, chegou agindo com pressa, tinha que estar ao meio da tarde no Centro de Saúde, para uma consulta médica. Teme algo grave a importunar o seu organismo, uma ideia fixa, confiei-lhe o meu diagnóstico, dizendo, está tudo bem com a sua saúde. Leia uma história, isso passa. Muitas vezes os leitores dão a conhecer as emoções, o desassossego, destapam a sua vida interior. Nesses momentos sou um ouvido gigante, recomendo com histórias, procuro convencer com a imaginação.

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Na igreja, o som das mulheres orando ao defunto, chega à biblioteca ambulante na aldeia de S. Facundo. O sino toca, avisando a saída do féretro, iniciando-se, a derradeira viagem deste aldeão em direcção ao cemitério. Não é a melhor maneira de iniciar a crónica, mas a morte também partilha as viagens e andanças. Há leitores alcandorados com o seu saber nas bibliotecas do céu, há subtraídos à vista das histórias. Conhecidos do viajante das viagens e andanças, todos eles personagens reais nas viagens e andanças com letras pelas aldeias da minha terra. Contribuíram como leitores, interessados na leitura das histórias, com fraqueza no carácter, simpáticos, unidos pelo prazer na leitura. A tarde está cinzenta e agradável ao mesmo tempo, a leitora aposentada da profissão de professora, voltou com as histórias confiadas para devolver. Tinha muito para ler em casa, desta vez não levaria história nenhuma, ao percorrer com a vista as estantes, houve uma que lhe acenou, esboçando um largo sorriso. Parou bruscamente o olhar nessa. Vou levar esta, gosto do autor, disse. Estreitamente, fiquei agradado com o desejo súbito da leitora. A biblioteca ambulante, gosta da ligação umbilical entre os leitores e as histórias. Crescem com as trocas nutritivas das palavras, cheias de saberes, estão na origem do crescimento intelectual.

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O vento agita os panos, nas mesas onde estão outros panos. Toalhas, lençóis, soutiens, cuecas, meias, camisolas, calças e vestidos. Conjuntos, onde nos limpamos, tapamos, usamos diariamente para estarmos confortáveis, não andarmos nus, ou expostos dos contratempos do clima. Dos olhares fulminantes, ou libidinosos. Mulheres experientes não se cansam de observar a exposição da mercadoria, mexem e remexem, contornam ao tronco. Muitos alterados pelos partos, ou outras deformações. Não vejo chapéus do lugar onde estou, na biblioteca ambulante. Aqui as histórias são os chapéus, protegem, alertam, para problemas diversos, desafiam a superar, a continuarmos a evoluir. Todos devíamos usar chapéus, entraram alguma vez num chapeleiro, ou colocaram chapéus numa chapelaria de um restaurante, de uma discoteca, de um teatro ou cinema. Vamos imaginar a biblioteca ambulante uma chapeleira ou um chapeleiro, onde vêm entregar chapéus, ensaiar outros, há muitos para protegerem a cabeça. Há o Chapeleiro Louco, na história, Alice no País das Maravilhas, o chapéu de mosqueteiro do Gato das Botas Altas. Depois vêm os chapéus, do Sherlock Holmes, imortalizado nas histórias de detectives de Arthur Conan Doyle, o chapéu do personagem Gandalf nas obras O Senhor dos Anéis, escritas pelo J. R. R. Tolkien. Ainda há o chapéu da Willy Wonka, personagem da história Charlie e a Fábrica de Chocolate. Ou o chapéu mágico Seletor que pertenceu a Godric Grynffindor, nas histórias de Harry Potter. Na biblioteca ambulante, todos eles são mágicos, pois, quem os colocar na cabeça irá renascer nas personagens das histórias. Viverá num corpo diferente, assumindo paixões e desilusões. Tirará da cartola arte para agir, produzindo fascínio de forma inexplicável naqueles que não querem ler. A biblioteca ambulante é um teatro, um espaço que serve de cenário durante a rodagem de filmes. Um local de verdades, de mentiras, de simulação literária. Onde podemos ter vontade, ter faculdade, ter razões para sermos felizes na casa dos sonhos.

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Em Rio de Moinhos as andorinhas voam raso, quase tocando o alcatrão na rua. Este comportamento nestas aves é pronuncio de chuva nos próximos dias, é um dito popular. A instabilidade climática está a alterar os ecossistemas, as andorinhas também são agarradas pelas incertezas do tempo. Hoje vi uma reportagem na televisão, na praia da Nazaré, na qual foi abordado a inexistência de nadadores salvadores nas praias para além do período estival. Podem ser excessivamente ridículas, as informações sobre praias sem vigilância, nesta época do ano, na primeira visualização. Com imagens de alguém a mergulhar e nadar no início da manhã no mar. Mas a ausência de consistência climatérica está a transformar o conjunto de relações entre os seres vivos. Na biblioteca ambulante a ligação entre histórias e leitores têm variações, com dias intermitentes, ausências, incertezas na selecção, confiança no viajante das viagens e andanças. Exprimindo alegria ou tristeza, problemas quotidianos. Adaptamos mutuamente as alterações inesperadas, que não se conseguem controlar. As amoreiras estão cheias de amoras verdes, não fosse a sombra destas árvores, a biblioteca ambulante estaria debaixo dos raios solares esta tarde na aldeia da Amoreia. Os lugares possíveis para estacionar a biblioteca ambulante estavam ocupados, quando assim é, a alternativa está situada junto da Associação de Moradores, mais afastado do centro da aldeia, onde tudo acontece. Alguns telefonemas depois os leitores aparecem segurando as histórias. O sol está mais forte, novamente em Rio de Moinhos, os leitores vespertinos não costumam tardar os compromissos com as histórias.

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Absorto, quase dei um salto do banco, na biblioteca ambulante. Uma mulher deu-me a saudação, ao passar próximo, consolidou, em voz alta, há pessoas na aldeia. Afastou a dormência, tentando conquistar-me, a seguir apareceram outras, saindo do café, apressadas para chegarem a suas casas. Está calor, as histórias não são importantes para a solidez social destas, nem o olhar desviaram, na aldeia não se passava nada. A sombra das casas em Alvega, abrigou a biblioteca ambulante com as suas histórias. As portas abriram-se todas, sem pedir licença, o ar fresco começou a entrar e a sair. Nesta corrente, juntaram-se, o chilrear dos pássaros, o som dos motores dos automóveis, as vozes de pessoas ao longe. Iniciou-se uma dinâmica que pode capturar futuros leitores na biblioteca ambulante. Sem obstáculos entrariam as histórias da aldeia, narradas pelos aldeões, na boleia, sairiam outras do universo da biblioteca. Os automóveis, precedentes de outros lugares parariam, deixando os passageiros, entrariam leitores no recomeço das viagens. Os pássaros cessariam as melodias, levariam nos bicos, letras para alimentarem os filhotes nos ninhos. Não quero fechar as portas da biblioteca ambulante, quero estar na corrente, explorar a vantagem das palavras a entrarem e a saírem.

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O Manuel regressou à sua terra definitivamente. Conheci-o nas viagens e andanças. Frequentava o Centro Social na aldeia, não foi um leitor na acepção da palavra. Aprendeu a ler com o tio, desde muito cedo começou a trabalhar, acompanhava-o nas campanhas agrícolas. Nos momentos de lazer, o tio deu-lhe a conhecer as primeiras letras, não ia além da leitura de jornais, sabe escrever o seu nome. Sempre que a biblioteca ambulante regressava, lá estava o Manuel a espreitar as gordas nos jornais, junto à porta grande da biblioteca ambulante, relatava acontecimentos da sua vida. Criou-se empatia, o Manuel jamais deixou de comparecer junto das histórias, sempre que esta visitava a aldeia. Passava os dias no Centro Social, as noites ia para sua casa, noutra aldeia, o que o preocupava, não se sentia confiante estar de noite sozinho. Um dia fomos surpreendidos mutuamente, avistamos-nos noutra aldeia, a norte do rio Tejo. Disse-me que estava a frequentar dia e noite o Centro Social, desta, instituição localizada no mesmo largo da permanência da biblioteca ambulante. A partir daqui fomos-nos encontrando, confessou-me, gostar de ali estar, mas as saudades de onde tinha vindo, da sua aldeia, avivam-lhe memórias. Deixei de o ver, até encontra-lo novamente num lar, na cidade, recebeu-me com um largo sorriso, estava mais perto da sua aldeia. Assim continuamos, até me dizerem que o Manuel estava no hospital, nunca mais o vi. Ontem informaram-me da sua morte.

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