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Histórias à Beira Rio, viagens e andanças com letras pelas aldeias da minha terra

"Afinal, a memória não é um acto de vontade. É uma coisa que acontece à revelia de nós próprios." Paul Auster

Histórias à Beira Rio, viagens e andanças com letras pelas aldeias da minha terra

"Afinal, a memória não é um acto de vontade. É uma coisa que acontece à revelia de nós próprios." Paul Auster

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A chuva é mesquinha a cair, não lhe escapa nada, atenta, não deixa ficar nada por molhar. Tive que fechar as portas da biblioteca ambulante, proteger as histórias, do afecto extremo da água. Após o almoço, no largo do Cabrito, a precipitação está acelerada, desleixou-se com as pessoas, com os leitores. Não se vê ninguém no largo, os automóveis circulam, como a chuva, cheios de pressa, ignorando a biblioteca ambulante estacionada. Não há tempo a perder com olhares indiscretos às histórias, no interior, os condutores e passageiros não vêm a hora de chegarem aos destinos. As histórias estão abrigadas e firmes, voltam sempre ao mesmo sítio, são mais uns dias. O verão irá voltar, o sol e a temperatura farão o resto, pararão para se refrescarem, viajarem na sombra das histórias. Serão exploradores nas páginas a descobrirem as letras, alpinistas a treparem degrau a degrau as etapas do crescimento, apoiando-se nas palavras. Não ficam por aqui, vão da terra à lua a sonhar, mergulham no abismo do oceano, guiados pelo Nautilus. Aventuras fantásticas a bordo da biblioteca ambulante, transformada numa fragata marítima, num submarino ou num foguetão, naquilo que a leitura possibilita, a representação da realidade.

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Estão para breve as festas na aldeia do Vale Zebrinho, na rua principal as paredes de algumas casas foram alvo dos pincéis e das trinchas. Na minha passagem para outra aldeia, a conduzir a biblioteca ambulante, ainda tenho tempo de ver os aldeões a pintar os muros que as resguardam dos olhares curiosos. No local onde se afogam as tristezas, e matam as saudades, anualmente, nos cantos e recantos do espaço, onde se baila, atraem as moças, se dão os primeiros beijos, os beijos fugazes, os toques leves de reconhecimento do corpo que se acompanha ao ritmo da música, não se vê qualquer grão de lixo. Uma página em branco com a possibilidade de experimentar outra vez a história da romaria da aldeia. Parece que os estou a ver a dirigirem-se para a festa, ao som dos primeiros acordes, a reunirem-se, sentados ao redor das mesas. Os frangos e as batatas fritas não têm descanso, as fileiras das mini, um exército continuamente a dar vida nova a quem as enfrenta, que bom seria se as guerras fossem assim, como se não houvesse outro dia. A página da história deixou de ser uma, são muitas mais, capítulos cheios de paixão, gavetas de memórias que se abrem estimuladas pelo álcool, lembranças de histórias antigas. No final restam as lágrimas, do regresso da saudade, dos que partem, dos que ficam, a contarem os dias que faltam para a próxima história.

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Amanheceu, sem se ver indistintamente o sol, a temperatura está a anos luz da que se fez sentir ontem com ausência de compaixão, pelo viajante das viagens e andanças, e pelos leitores. Em Alferrarede Velha, depois de uma leitora ter estado a escolher histórias, apareceu repentinamente uma mulher, tinha-a visto a pintar o muro exterior da casa da leitora, referida atrás. Bom dia jovem, disse ela, presenteando-me com uma voz alegre, e um sorriso do tamanho do mundo. Não aparentava cansaço pelo trabalho realizado a reavivar o muro da leitora. Tinha sido remunerada com dez euros, ia continuar a pintar outro muro, noutra casa. Lá foi trajando uma bata, a proteger a roupa casual, manchada com pingos de tinta branca, na direcção do muro destinado a receber a massagem do pincel espalmado. A tarde trouxe palavras alegres e leves, na estrada estreita em direcção ao Vale Zebrinho, no lugar de Negrinhos de Cima, um cão, rafeiro alentejano, desatou a correr do lado de lá da cerca da propriedade, acompanhando a biblioteca ambulante, sem parar de ladrar. As histórias, não são novidade por aqui, apesar de não estacionarem, a sua passagem é frequente. Imagino que fique um cheirinho a tinta de impressão, que algumas palavras possam soltar-se, ficando a pairar no ar. Talvez sejam estas as hipóteses que tenham despertado o cão, deixando-o eufórico de tal maneira, que o instigassem a querer agarrar a biblioteca ambulante. O vento no Vale Zebrinho está audaz, impulsionando as folhas do plátano grande, com os ouriços presos nestas, a baterem com algum estrondo na carroçaria da biblioteca ambulante, abrigada na sombra. Um ranger sem parar arrasta-se na parte de cima, semelhante a unhas de alguém furioso a rasgar páginas de uma história que não quis que acontecesse. Uma história inundada por palavras feridas, amputadas de liberdade. A mesma agilidade que as histórias possuem, deslocando-se pelas aldeias da minha terra, da entrada nas casas dos leitores. São como filhas, um vínculo institucional semelhante a uma filiação natural.

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A manhã não está completamente vestida, e o calor apanhou-a desprevenida. Apesar da sensação de mal-estar, esta não teve outro remédio, continuou a vestir-se, escolhendo ao pormenor a roupa adequada para enfrentar a temperatura elevada. Pouco tempo depois de estacionar a biblioteca ambulante na aldeia de Rio de Moinhos, entra a primeira leitora, precedendo os outros leitores, sempre que me demoro na aldeia. Esta difere dos outros leitores, testando a tolerância do bibliotecário, a ouvir episódios reservados à sua privacidade. A filha, o marido, os pais, são sempre assuntos expostos, que tenho de aguentar enquanto não chegam outros leitores. Hoje não bastou a manhã estar desnuda quando o calor deixou de ter clemência, não apareceu mais nenhum leitor, foi quase até ao fim do primeiro período das viagens e andanças a escutar a leitora. Gosto de os ouvir, as histórias que trazem, a vontade de ver, de conhecer algo de novo, aprendo muito com eles. Mas evidenciar sempre a vida familiar como esta leitora faz, é preciso providenciar o necessário para aguentar. Arrumo histórias nas estantes que estejam desequilibradas, sento-me, fixo o olhar na tela do computador, carrego nas teclas como o pianista faz. O som não é melodioso, é enfadonho, volto a levantar-me para me dirigir ao escaparate dos jornais e revistas. Ponho-os direitos, como fiz com as histórias, tudo isto, com a leitora a falar dos seus temas de conversa. Espreito o largo esperançado com a aproximação de outro leitor, não acontece nada, regresso outra vez ao meu lugar, olhando o rosto da leitora a expressar-se para não ser mal-educado. A leitora partiu, foi preparar o almoço, a filha não tardava da viagem de regresso a casa para gozar férias depois de ter terminado outro ano na universidade. Enfrentar a tarde foi árduo, parece que o verão chegou todo de uma vez, amanhã já não há. Amplitudes térmicas com distâncias curtas, não são boas, as alterações causam incerteza nas rotinas das pessoas, nos leitores.

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O campo está cheio de formas geométricas, a disposição dos fardos de palha, rectangulares ou circulares, espalhados, empilhados, por vários terrenos planos, próximos das aldeias da minha terra, dão dinamismo à paisagem. Por terra está a palha ainda por enfardar nas máquinas agrícolas, mais formas e dimensões por meter em fardo. Podem ser representações de pensamentos e das palavras por meio da colocação ordenada dos fardos. Um modo de expressão pessoal, ou uma caligrafia antiga. Nas viagens e andanças, gosto de observar a palha arrumada. A paisagem fica organizada, é uma história bem escrita por pessoas com pouco desenvolvimento nalguns conhecimentos intelectuais. Mas, com muita sabedoria na escrita na terra, estão sempre a semear, a plantar palavras, a criarem histórias para nos alimentarem. Em Alvega o largo do coreto, está ocupado por pequenos stands, para se realizar um festival de gastronomia. O mesmo trará nos próximos dias pessoas de outras aldeias para saborearem os petiscos e alguma doçaria local.  São outras escritas, mais elaboradas, nos tachos e panelas. Na biblioteca ambulante está pronta para ser consumida em casa ou noutro lugar.

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O verão chega agasalhado, apoiado aos ombros traz um casaco comprido, quase até aos pés. O frio nas aldeias da minha terra continua mandrião. A leitura absorve-o, no hemisfério sul estão cansados de o solicitar, com palavras, há os que gritam do outro lado do mundo, para se apressar a apaziguar os dias endiabrados de calor. A indecisão na história, sobre o clima, assimila os seus medos e alegrias. Está inerte no leito do tempo, com os olhos fixados na história, quer saber como termina. Assim estão os pequenotes leitões selvagens, desorientados na estrada, a fugirem da biblioteca ambulante. Correm na direcção da história de hoje, não imaginam que irão perdurar para sempre nas histórias à beira rio. A tarde não suporta o capote, deixou-o pendurado numa nuvem, arregaçou as mangas da camisa para dar as boas vindas ao verão. Também os leitores desistiram do conforto das suas casas e vieram largar as histórias lidas na primavera. Traziam na boca, os odores perfumados das palavras que leram, os olhos brilhantes pelas experiências vividas nas páginas das histórias. Perscrutavam nas estantes as melhores simuladoras de aventuras, de paixões arrebatadoras, de estremecimento causado por emoções intensas. O mesmo sentimento dos pequenos leitões selvagens quando repentinamente avistaram as histórias na biblioteca ambulante.

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A claridade persiste frouxa após o raiar do dia, depois da viagem até à aldeia do Souto. A rua deserta, com vestígios da queda da chuva durante a noite, não traz as pessoas ao ponto mais importante da aldeia. O local onde estão as histórias, a igreja, e o coreto. O conhecimento, a religião, o estrado erguido no pequeno largo. A cultura, e tradição, unidas como as amigas íntimas. O empenho dos antepassados da aldeia, a resiliência da biblioteca ambulante, a olharem a rua que não contém coisa alguma. O sol conseguiu forças para retirar o crepúsculo matinal, abriu a cortina, a janela do tempo, permite agora aos aldeões a visibilidade para rua. Duas mulheres encontram-se a falarem no centro do largo, distantes uma da outra, falam alto. O som das vozes ecoa no espaço, para se perder na escalada do ruído, do relógio da torre sineiro da igreja, a subir até às onze horas da manhã. O sol persiste na teimosia, demonstrando que existe, com os seus raios a alegrarem os dias das pessoas. Atrai-las para a biblioteca ambulante, aproximarem-se, roçarem o corpo na lombada gigante. Sentirem as vibrações das palavras, das escritas, das notícias, dos recados.  

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Um deles mencionou em voz alta que as histórias não falam. Imediatamente a professora corrigi-o, dizendo para todos, que as histórias, se exprimiam por palavras, e conviviam com quem lhes tocasse ou lesse. Nenhum deles hesitou, atiraram-se, os olhos mergulharam nas letras, nadaram no meio das linhas, rodeando as imagens lentamente. Quem os observasse, veria os peixinhos coloridos no aquário, nadando de um lado para o outro. Às vezes a rapidez das braçadas colocava-os num instante no lado oposto do aquário. Batiam com as barbatanas na parede de vidro, regressando ao sítio da partida, a manhã na biblioteca ambulante deixou-se escoar, como se água do aquário desaguasse no oceano. Levasse os peixinhos coloridos nas ondas a correrem as palavras, alimentando-se das letras. A chuva apareceu sem avisar, fui a correr como os peixinhos coloridos fizeram no oceano, nas palavras, fechar as portas. O vento ficou furioso, bastante para a nuvem escura fugir, e levar a chuva daqui para fora. Ficando a tarde apta para os leitores se encaminharem para o sítio onde está a biblioteca ambulante.

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As Festas da Cidade terminaram, é tempo de regressar à estrada, aos leitores, às aldeias da minha terra. No campo, na orla do caminho alcatroado, as flores que nunca deixam de espreitar, acenam alegres a volta da biblioteca ambulante, das histórias. Na aldeia da Concavada, pouco antes de estacionar, houve quem não tirasse os olhos das letras impressas na carroçaria, da capa gigante, que protege, as memórias, os acontecimentos, reais ou imaginários. Atmosfera de encantamentos, aventura, paixão, realidade, ficção. Um acervo de experiências emocionais, e sensoriais, ao dispor de todos. Assim os hajam em quantidade suficiente nas aldeias, primeiro, pessoas, depois leitores. As nuvens estão a tapar o céu azul, a envolverem as aldeias da minha terra. É o desmoronamento do conjunto dos dias anteriores de grande alegria, da agitação, da ilusão, de encontros, das promessas que nunca virão. É o regresso à normalidade, bem vindos à biblioteca ambulante.

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O viajante das viagens e andanças, com algum esforço colocou-me numa estrutura, onde as rodas da frente estão estacionadas em duas rampas de modo a estar posicionada horizontalmente ao largo, no centro da cidade. O largo é a sala para receber os abrantinos, os forasteiros, todos aqueles que vêm visitar a cidade, embaixadores das aldeias e de outros lugares. Aqui em cima, no trono, alcanço-os a todos, sou a rainha das Festas da Cidade, a embaixatriz nas viagens e andanças nas aldeias da minha terra. Ao meu redor há leitores, curiosos, nestas ocasiões especiais, sentados para encontrarem a leitura. Para conhecerem personagens, segui-los noutras aventuras, descobrirem palavras, viverem emoções diferentes. Nestes dias de ausência, eles dizem-me, da importância da mobilidade das histórias no meu regaço, pelas aldeias da minha terra. Viagens interrompidas durante o período das Festas da Cidade, no qual os aldeões podem levar histórias. Visitando-me no intervalo dos petiscos, da euforia da bebida, das actuações dos artistas, estou de portas abertas, cobiçosa de os ter no meu espaço, no assento que as histórias ocupam. São dias únicos, onde se misturam a alegria, o cansaço, a ansiedade de voltar outra vez à estrada, voltar a ser conduzida pelo viajante das viagens e andanças.

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