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Histórias à Beira Rio, viagens e andanças com letras pelas aldeias da minha terra

"Afinal, a memória não é um acto de vontade. É uma coisa que acontece à revelia de nós próprios." Paul Auster

Histórias à Beira Rio, viagens e andanças com letras pelas aldeias da minha terra

"Afinal, a memória não é um acto de vontade. É uma coisa que acontece à revelia de nós próprios." Paul Auster

12.07.24

As primeiras leituras ...


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As primeiras leituras são como o início das primeiras explorações marítimas, por navegadores, enfrentando as enormes vagas do oceano, em frágeis barcos de madeira. A descobrirem palavras novas, terras desconhecidas, aventuras, até então, possíveis em sonhos. Transpondo páginas, dobrando cabos, sublinhando com o dedo, fixando o padrão. A referenciarem palavras novas, atribuindo terras aos reis, às nações que os enviaram. A leitura é um oceano sem limite, onde é necessário navegar sempre atento aos ventos, às correntes que podem seduzir, e as marés nas quais ficamos distraídos. Luís de Camões escreveu sobre as ondulações, no seu tempo, viu monstros e sereias, naufragou, nadou, segurando numa das mãos, um mar de palavras novas. Salvou-as, a história guardou-as para sempre na memória da literatura. As primeiras leituras são outro nascimento, o início da criação intelectual tem dor, receio, hesitação. Um parto difícil como todos, depois a bravura, como a dos navegadores, traz a curiosidade para seguir em frente, descobrir histórias novas.

(As viagens e andanças com letras pelas aldeias da minha terra, prosseguem em Agosto)

11.07.24

Um silêncio demasiadamente ...


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Anda ao redor da biblioteca ambulante, a ler o que está escrito na carroçaria, devagar aproxima-se da porta grande, a que permite o acesso ao novo mundo. Convidei-o a entrar, não quis, disse-me que não gostava de ler, questionou-me, é funcionário do município, respondi, sou bibliotecário ambulante. Entre, venha ver as histórias, insisti, voltou a negar, não gosto de ler, frisou. Está desconfiado, não ande, eu nas aldeias, a dar banha da cobra em vez de literatura.  Frequentou a escola até à quarta classe, pelo gesto do braço, enquanto falava, percebi pelo movimento do membro superior, o difícil ter de ir diariamente à escola nesse tempo. Admiti, a violência física e moral exercida por professores  afectou-o, por isso não gosta de ler. Houve muitos mais que sofreram, ganharam medo de irem à escola. Não foram somente causas económicas, a precariedade das famílias, também foi pelo ensino hostil, praticado aos que tinham dificuldade em apreenderem as matérias na sala de aula. Um silêncio demasiadamente profundo até hoje, sobre a maneira de leccionar nesses tempos. Encolhemos os ombros, sentimos todos fisicamente e moralmente, foi um obstáculo sempre presente para os que se habilitaram a escolher a escola. Melhor do que o trabalho agrícola, cuja violência não seria menor para as crianças ainda de tenra idade que não conseguiram almejar o acesso à escola. Este e outros factores, contribuíram para a escassez de leitores, a leitura tal como o pão foram parentes pobres no crescimento das pessoas, nas aldeias da minha terra. Felizmente, as bibliotecas itinerantes não desistiram, continuam a percorrer distâncias ao encontro dos restantes leitores que cresceram num passado que está na história, mas não esquecido. Hoje o céu é uma biblioteca, cada nuvem que passa é uma história, é uma frase, é uma palavra, é uma letra, é um leitor. É o tempo a passar depressa, a história que se leu.

10.07.24

Não são maneiras de andar ...


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A corrente de ar entra sem ser convidada, traz o canto das cigarras, a fresquidão numa tarde de verão. Acompanha-a as palavras fortes do vento, as melodias dos pássaros, o eco das páginas nas histórias, a avançarem perante os olhares empolgantes dos leitores da biblioteca ambulante. Talvez seja o motivo pelo qual só ter vindo um leitor à biblioteca ambulante esta tarde até ao momento. Os outros apressam a leitura, falam com os personagens, dizem-lhes para tornarem mais rápido as suas acções nas histórias. Querem terminar, encontrar as respostas, saberem quem foi, rapidamente. Gritam aos personagens para correrem nas palavras, resmungam com o detective por ser lento a descobrir o assassino, ralham com o rei que vai nu. Não são maneiras de andar assim na história, vista-se para sairmos da história. Disseram a Ludmila para deixar de se admirar no espelho, pegar outra vez no pincel, e pintar a história definitivamente. Incentivam o Crisóstomo a deixar a tristeza para trás e arranjar uma namorada, faça-lhe um filho e seja feliz para sempre na história. Despachem-se queremos acabar, queremos começar outras histórias na biblioteca ambulante. A tarde e as viagens e andanças com letras pelas aldeias da minha terra, chegam ao termo por hoje a deixarem palavras ao vento.

08.07.24

O olhar sábio leva-a ...


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No terreno situado junto ao lugar onde a biblioteca ambulante se demora na aldeia da Foz, uma mulher colhe tomates para  dentro de um balde. O olhar sábio leva-a a escolher os que estão prontos para cozinhar, os que se envolvem com a alface nas saladas num momento de amor e  sabor, os que se golpeiam com os dentes. Um leitor quando se abeira das histórias na biblioteca ambulante atira-se igualmente com o olhar que sabe muito. Prudentemente, vai seleccionando as histórias, aprontadas com antecedência no catálogo, ou intercalar leituras com outras, as que se lêem no imediato. A horta e a biblioteca são espaços de culturas, agrícolas e literárias, ambas ancestrais, árduas nas maneiras de serem concebidas, unidas a alimentarem os espaços recomendados para o efeito nas pessoas. É conveniente alimentar um para se acomodar conhecimento no outro. A tarde em Alferrarede corre devagar, no local onde as histórias aguardam os leitores, passam transeuntes olhando de esguelha para a biblioteca ambulante. A inexistência de curiosidade para explorarem os trilhos das palavras, manifesta-se intensamente. Não querem saber dos caminhos tranquilos, seguirem as letras nas praias de areias de papel. Mergulharem no oceano salgado de aventuras, descobrindo naufrágios, baús de sonhos, cheios de palavras douradas. Subirem montanhas, conquistarem o topo das histórias. Tesouros da literatura, personagens ricos, em acções arriscadas, acontecimentos extraordinários, monstros impactantes na profundeza das histórias. Do que se alimentarão as pessoas hostis à leitura, alguma vez terão colhido legumes, frutas, na horta, entrado na biblioteca, e varrido as histórias de uma ponta a outra, com desejo de se alimentarem. O que preencherá os seus espaços?

05.07.24

Firmar sonhos, estabelecer ...


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Na aldeia do Souto a manhã caminha sozinha, não vejo pessoas na rua, de mãos dadas com a aragem fresca, no sítio onde as histórias estão abrigadas dos raios do sol. Há que aproveitar ambas, daqui a pouco o calor vingará quem ousou partilhar os primeiros momentos do dia com o frescor matinal. As histórias não vão ficar na aldeia para sempre, voltarão quando o mês de Agosto for dividido, com a chegada dos que estiveram de férias, por aqueles que as iniciarão precisamente nesse período do tempo. Finalmente surge alguém, um homem a empurrar um carro-de-mão, transporta algumas ferramentas úteis no seu trabalho. Talvez eu possa fazer o mesmo com as histórias, impelindo-as dentro do carro-de-mão, batendo porta a porta, nas ruas da aldeia. Voluntariando-me, usando as minhas ferramentas para fazer alicerces, construir lugares defendidos das solidões. Firmar sonhos, estabelecer hábitos eficazes no crescimento social da comunidade. Cimentar, com a colher de pedreiro, as memórias, de cada um, as paredes, com palavras de esperança. Protege-los das intempéries debaixo de folhas cosidas, de papel, sustentadas por capítulos de conhecimento. Telhados duradouros, vigas inquebráveis à passagem do tempo, as histórias são abrigos, sujeitos a condenações, a críticas, a reprovações ideológicas. Demasiados esforços de flexão amparados pelas bibliotecas, pelos leitores, nas palavras perpetuadas nas páginas da literatura.

04.07.24

Estamos cá para o que ...


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OH! OHHHH! Senhor João! Senhor João! Ouvia a voz arrastando-se no ar do início da manhã, enquanto procurava uma nesga, entre os raios do sol, a ferirem-me a vista, ainda a acordar, tentando ver quem me chamava aquela hora. Finalmente alcanço o vulto, auxiliado pela mão a substituir a pala, reconheço uma leitora. Quando vai a Alferrarede, tenho dois livros para entregar. Não consegui dizer o dia, fazer uso da razão, repentinamente, não é oportuno nas primeiras horas do dia. Sem o calendário não ia longe, disse-lhe, sem aumentar a sua preocupação, para esperar, a biblioteca ambulante há de chegar à sua aldeia, terá oportunidade de substituir as histórias. O dia estava no princípio, longe de supor encontrar uma leitora, afastada da sua aldeia a interrogar-me de um modo aflitivo, por causa de duas histórias. Interiormente a sensação foi boa, o caminho nas viagens e andanças é longo, mas as impressões são óptimas. Existe receio nos leitores de superarem o período da permanência das histórias na sua posse. Ou dissimuladamente solicitam ao viajante das viagens e andanças para não se esquecer das aldeias, dos lugares do costume, onde a biblioteca ambulante se demora prazenteira. A tarde chegou, o sol e o calor, não respeitam ninguém, no caminho vi pessoas de mangueiras nas mãos a molharem as paredes das casas, atenuando a temperatura interior, tentando-o manter fresco. São batalhas difíceis de vencer nos próximos dias, a dedicação o gosto pela profissão, as histórias, de as levar às pessoas são armaduras impenetráveis que os bibliotecários ambulantes possuem para enfrentarem os excessos dos elementos naturais. Haja quem nos reconheça como merecermos. Estamos cá para o que der e vier.

03.07.24

A palavra amor acelera a ...


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Outra aldeia, mais uma romaria prestes a acontecer. O verão é farto em romarias, nas aldeias as ruas nunca deixarão de estar engalanadas até ao regresso do outono. Atraem os forasteiros, os filhos da terra, não é só a palavra solidão a fazer companhia. A palavra cozinha irá estar sempre presente nos dias vindouros, a preparar refeições para eles. A palavra brisa refresca-os após as noites de folia, a bailarem, até olharem a palavra céu, verem a lua a iluminar a noite. Quantas histórias se escreveriam com as palavras proferidas durante os dias e as noites, de romarias, nas aldeias da minha terra. Palavras alegres, palavras tristes, palavras molhadas, palavras imemoriais, palavras sem fim. Chegará o dia em que as palavras voarão para outros lugares, no ar fica a palavra saudade, antes desta, a palavra adeus, a mais difícil de soletrar. Apertada na garganta é sempre complicado de a expressar. A palavra amor, acelera a palavra coração, acontece sempre no regresso e na partida. No fim de tudo fica a palavra solidão, a fazer companhia aos restantes, à vontade de estar só.

(Este texto foi influenciado no poema Limpa-palavras, escrito por Álvaro Magalhães)

 

02.07.24

As histórias escritas, assentes ...


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Gonçalo Cadilhe, Paul Theroux, são uns dos muitos escritores viajantes. Por terra, no mar e no ar, visitam em toda a extensão, continentes, países, cidades, lugares. Com história, património natural, diferentes dos demais, não perdendo a oportunidade, algumas vezes, de utilizarem meios de transporte famosos. O Transiberiano, na Rússia, o Maharaja Express, na India, o Tren del Fin del Mundo, na Argentina e outros tantos, na ferrovia, atravessando desertos. Ultrapassando oceanos, à boleia, a bordo de navios mercantes. Nenhum deles passou através das aldeias da minha terra, usando a biblioteca ambulante. A história crua, elaborada mentalmente nas viagens e andanças, desenvolvendo-se na continuidade, no encontro com aldeias novas com os olhares destes distintos viajantes. As histórias escritas, assentes nas estantes da biblioteca ambulante, viajando na expectativa. A história que testemunham, como será depois de concluída, serão elas mencionadas, no acaso de algum leitor as escolher para levar para casa. O pior que poderia acontecer, serem alguma vez preteridas pelos leitores, por esta que ganha espaço na cabeça dos nossos viajantes. Seria de um valor inestimável um destes viajantes relatar as viagens e andanças, para a biblioteca ambulante. Alcançaria notabilidade para além das aldeias da minha terra, as pessoas e os leitores seriam referências, as maneiras de viver, os costumes, os dialectos, comunidades expostas aos olhares dos leitores do mundo. Talvez um dia sejam impressas, os leitores as possam vivenciar, manuseando as páginas, conhecendo ao pormenor as aldeias da minha terra.

01.07.24

As sombras das árvores ...


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A manhã iniciou-se nos Meninos da Floresta, onde se desocupa os tempos livres das crianças. Brinca-se ao ar livre, aprende-se a semear e a plantar, legumes e hortaliças. Há cozinha, elaborada com mistura de terra humedecida e de outras substâncias orgânicas, há lama por todo o lado, nas mãos, no rosto, na roupa. Não há melhor lugar para se aprender, e adquirir conhecimento. A biblioteca ambulante hoje visitou os Meninos da Floresta, a Celeste prendeu-os com uma história, deixaram-se ir na viagem, puxados pelas palavras lidas em voz alta. As sombras das árvores demonstraram benevolência, sentados no espaço privado da luz directa do sol, ouviram, dirigiram palavras à Celeste. A história mexeu com as emoções da pequenada. Entraram na biblioteca ambulante, retiraram livros, folhearam, alguns, vinculados, nesta, na biblioteca António Botto, seleccionaram histórias para levarem. O hábito de leitura não está assim tão mal, vejo as crianças entusiasmadas a lerem sentadas no chão da biblioteca ambulante, questionam se há «O diário de um banana», apontam com o dedo para outros títulos que leram, expostos nas estantes. Fomos conhecer a horta, os legumes estão crescidos, os morangos estão a ficar maduros, os tomates ainda estão verdes e pequenos. Naturalmente aprendem as cores, adicionam frutos, contam sementes, dividem o que colhem, multiplicam os sonhos, diminuem a ansiedade, têm histórias para lerem. Melhor escola não há do que esta para aprender a brincar.