Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Histórias à Beira Rio, viagens e andanças com letras pelas aldeias da minha terra

"Afinal, a memória não é um acto de vontade. É uma coisa que acontece à revelia de nós próprios." Paul Auster

Histórias à Beira Rio, viagens e andanças com letras pelas aldeias da minha terra

"Afinal, a memória não é um acto de vontade. É uma coisa que acontece à revelia de nós próprios." Paul Auster

IMG_20240830_111307.jpg

O sol conseguiu demover as nuvens que pairavam teimosamente em cima da aldeia do Souto. O brilho abriu a porta, encaminhou um pequeno grupo de mulheres para o meio da rua, a conversa entre elas ecoava pela aldeia. Quando se afastaram foi a vez de ouvir os pássaros iniciarem um concerto no coreto da aldeia, a música melodiosa é dirigida pelas asas do vento agradável. Este é interrompido pelo som do relógio da torre sineiro a bater as onze horas, os músicos no coreto desapareceram rapidamente, voaram, penetrando no mundo infinito das páginas das histórias. Deixei de ouvir a música, regressaram os sons naturais da aldeia, vozes indistintas, latidos dos fiéis amigos, um galo a cantar fora de horas. O ruído comum de alguém a manejar uma ferramenta de trabalho, o rumor prologando do silêncio, o mais ensurdecedor de todos eles. A manhã caminha para o final de um mês cheio de tudo o que foi emoção nas aldeias. O regresso dos filhos da terra, as romarias, a reunião das famílias. Daqui para a frente os dias serão de lembranças afectuosas por aqueles que se ausentaram novamente. As vindimas iniciaram-se nas aldeias da minha terra, a biblioteca ambulante cruzou-se com um veículo agrícola transportando baldes cheios de uvas. Já colhi uvas, tirar os cachos com a ajuda de uma tesoura para o efeito. Avançando devagar ao longo das videiras em linha, como se estivessem numa parada, no quartel, formadas para uma revista minuciosa. Separam-se histórias crescidas, maduras, para se experimentarem após a fermentação, da agitação que é escrever uma história. São vinhos com história, com passado, testemunhos das memórias daqueles que as plantaram na terra, ou escreveram nas folhas limpas de tinta.

IMG_20240828_150822.jpg

É agradável sentir a aragem a desoprimir a tarde, o sufoco, companheiro indesejável nos últimos dias, nas viagens e andanças pelas aldeias da minha terra. No ar as palavras rodopiam alegres, há muito que não as ouvia desprendidas. O sorriso na boca das pessoas é mais largo, vejo-o nos rostos aliviados do peso do calor, na esplanada do café do largo. Não é preciso ganhar coragem para abrir a boca e falar sem parar. Há lamentos, os dias seguintes não serão melhores. Há palavras de desesperança, a noite espreita mais cedo, a saudade anda a cambalear, foi a partida dos filhos, são os que vão partir até ao final da semana. A solidão vai regressar quando as folhas das árvores começarem a despedirem-se do verão. Os ramos ficarão despidos, as pessoas ficarão surdas com o ruído do silêncio. O vento empurrou-me, juntamente com a biblioteca ambulante para outra aldeia, não deixei nenhuma história para trás. Nesta última a desocupação continua a romper os fundilhos das calças, sentada nos bancos á sombra. Por não haver lugares para a ocupação, por terem ultrapassado o limite permitido para exercerem. Conseguem preencher as tabernas, também estas vão rareando, afogam, o passado dinâmico no vinho, até a noite os chamar. Caminham como a saudade, para suas casas, encontram as mulheres a barafustarem palavras gastas, o mais importante está na mesa à espera, uma malga de sopa, sobras de pão, e queijo. Um ato de amor.

IMG_20240827_104127.jpg

No verão, nas viagens e andanças, o ar artificial libertado pelas tubagens oriundas do ventre da biblioteca ambulante, e o bibliotecário, demonstram grande amizade amizade. Um abraço desprende-se das entranhas, envolvendo-o numa frescura sem igual nestes dias de calor excessivo nas aldeias da minha terra. Não é um aperto constante, somente no tempo em que as histórias se deslocam de uma aldeia para outra. Depois, a separação e a saudade imediata, a vontade de se misturarem um no outro. Não há melhor no verão do que este abraço frio, cheio de um entusiasmo agradável. Tem sido o melhor amigo nas tardes de viagens e andanças, os leitores nas suas casas devem ter amigos iguais, não vêm à biblioteca ambulante. Não querem separar-se do amigo comum, um companheiro invisível alastrando o seu abraço até ao âmago dos que têm sorte de o sentir. Há outros abraços que não se vêm, sentem-se, nos olhares resignados, nos rostos enrugados, no que acontece ainda na mente de cada um deles. A gratidão demonstrada silenciosamente, conquistando o interior que não se vê do bibliotecário.

IMG_20240826_154027_794.jpg

O início da semana nas viagens e andanças é nos arredores da cidade, o local onde a biblioteca ambulante se encontra estacionada, permite avistar as muralhas do seu castelo. Actualmente são mais os emigrantes que passam no bairro, do que os próprios naturais. Olham cheios de curiosidade as histórias, não se atrevem a entrar, conhecerem de perto os assuntos, nos quais poderiam abraçar de outra maneira a sua integração na nova realidade em que estão. Tapam o corpo com roupas originárias dos países de onde vieram, as cores extravagantes empurram o meu olhar numa viagem por África. Poderia ser  do Cairo à cidade do Cabo, através do mato, no deserto, aproveitando a corrente dos rios, atravessando vários países. Também eles realizaram grandes viagens, arriscando, talvez, as suas próprias vidas para se estabelecerem noutros países, próximos da biblioteca ambulante. Algo semelhante acontece com as histórias, acolhidas na biblioteca ambulante. Originárias de todas as partes do mundo, procuram refúgio nas bibliotecas, onde são lidas em segurança, por leitores curiosos de saberem outras vivências, acontecimentos testemunhados por quem as escreveu. Para lá da imaginação, há sempre uma realidade, é nesta última que tudo começa, extravasando, quando o autor avança para outros patamares da criatividade, sempre a derramar emoções. A escalada do sol faz aumentar a temperatura, a fina cortina de nuvens, não impede esta de fazer o que quer com o viajante das viagens e andanças. Advinho o segundo período do dia, não irá ser fácil, sem sombras que protegam a biblioteca ambulante, a leitura vai ser complicada. No café a Vuelta encanta alguns, gostam de ver (eu também) os ciclistas a pedalar por estradas estreitas, a subirem a níveis difíceis ao comum dos mortais. Curva, contra curva, olhando para trás não vá algum adversário surpreender com uma pedalada mais forte. Não tiram o rosto da televisão, há outros que se resguardam do calor expondo-se ao ar artificial, a refrescar o estabelecimento de uma ponta à outra. A solidão, fica na rua, ouvem as conversas, quando há oportunidade falam para o ar, pode haver quem apanhe as palavras proferidas. Agarram as palavras soltas, em conjunto constroem diálogos. As vozes elevam-se no ar saturado de silêncio, gargalhadas à mistura, o tempo assim passa mais depressa, até que a noite os devolva ao marasmo. Estacionam os veículos cara a cara com a estrada, para se irem refrescar com bebidas, pouco depois aí estão eles de volta. Põem os motores em funcionamento, partem apressados a rasgar os pneus no alcatrão, como se a estrada fosse uma pista para explanarem os problemas que os atormentam. Estão sempre a entrarem e a saírem do café, os afazeres podem esperar, trabalhadores, forasteiros, viajantes do tempo. As histórias misturam-se umas com as outras, chegam e abalam depressa, no ar ficam palavras, vários dialectos, para mais tarde, na mesa do jantar, com a mulher, com os filhos, com as paredes brancas, reporem o que ouviram.

IMG_20240821_151600.jpg Desvio o olhar para o horizonte e vejo a esperança como uma linha ténue, regresso com o mesmo olhar desesperançado ao ponto de partida. Vejo à minha frente uma leitora desesperada procurando numa revista desenhos com rendas que nunca tenha experimentado ainda. Só pode ser fantasia da minha mente, não é, ela está mesmo aqui defronte do rosto surpreendido, do viajante das viagens e andanças. Na penumbra, inspeccionou várias revistas, falou sozinha, falou com as histórias, falou comigo. As páginas não tinham estabilidade nas suas mãos, os dedos revistavam cada folha das revistas, apontava para um desenho, mostrava-me. Eu oscilava a cabeça, sempre com um sinal de aprovação ao que me explicava. Continuava sem perceber onde a agulha puxava a linha para construir o desenho estampado na revista. A tarde  desapareceu por entre os bordados e as rendas, aprendi mais um pouco. A leitora foi com as revistas seleccionadas, a falar nas toalhas que bordaria para os filhos, apesar deles não se interessarem muito pelo trabalho manual da mãe.

IMG_20240820_154723.jpg

O vento é soberano nas aldeias da minha terra, o horizonte não está totalmente aberto. Um pouco embaciado, há nuvens aqui e ali, espreguiçando-se no céu. O vento chamou-as, deram boleia aos leitores, ainda não vi nenhum hoje, nas viagens e andanças. Andam devagar no céu, está uma sobre a biblioteca ambulante, protege-a por momentos, da bola de fogo que paira no ar. É bom quando as nuvens substituem os panos de lona. O resultado de fazer a vez, é o mesmo que os leitores sentem ao lerem histórias. São as histórias que substituem viagens físicas, impossíveis de se realizarem, acontecimentos no passado, contemporâneos, que não conseguimos presenciar, não fosse a descrição, a imaginação, nas palavras fixadas pela tinta na linha que une o céu à terra. No teatro os actores falam as palavras das histórias, relacionam-se, num cenário idêntico ao descrito por estas. Tomam o lugar dos personagens das histórias. Não há ninguém para trocar com os leitores que não vêm. Só o vento entra na biblioteca ambulante, sacode as páginas das histórias, faz a vez dos leitores ausentes. Cria dinâmicas nos personagens, iludindo-os, estão a ser sobrevoados por olhares experientes. Ficam entusiasmados por serem caçados, como as presas das aves de rapina. Primeiro observados no alto dos céus, interpretados nas acções, nas páginas, e capturados rapidamente para os locais de nidificação. São processos de construção a acontecerem, nos que lêem histórias, na cabeça do viajante das viagens e andanças.

16 Ago, 2024

Ambos escrevem ...

IMG_20240816_145254.jpg

O calor é uma cola, é maçador, apesar da copa das amoreiras protegerem a biblioteca ambulante com a sombra. Um trabalhador com o tronco desnudado, coloca numa betoneira, areia, cimento e água. O tambor gira como se fosse um satélite em torno da imaginação do arquitecto que idealizou a construção. O escritor para escrever também tem de girar as ideias na cabeça para conseguir construir a história. Ambos escrevem com ferramentas diferentes, edificando paredes, folhas em branco, criadores de alicerces, de abrigos. O passado e o futuro estão presentes na criação, são a sustentabilidade para se continuar a acreditar na obra do homem. O ar quente interrompe os pensamentos, um leitor entra, ainda bem, é um aparelho de refrigeração para acalmar o ar denso no interior da biblioteca ambulante. O olhar habituado, percorre as estantes, sabe onde pode encontrar a história, gosta de explorar outros lugares, não esteja lá escondido um autor, um título, possam estimular a curiosidade, o que não se encontrava há bastante tempo. A biblioteca ambulante é o sítio mais provável para se chegar a todo o lado. Um espaço pequeno que alberga um vasto conhecimento. Histórias, acontecimentos, maneiras de escrever, disputando leitores, sentirem as palavras instáveis nesta atmosfera fogosa.

IMG_20240813_154314.jpg

O sol enche o largo, uma clareira própria da cidade, rodeada por edifícios em Alferrarede. Com intervalos longos é atravessado por gente apressada, desinteressados na biblioteca ambulante e das suas histórias. O carteiro com o seu veículo cheio de correspondência, contas para pagar, invade o largo para estacionar defronte da entrada de um deles. Sai do interior do mesmo com uma resma de envelopes para distribuir nas respectivas caixas do correio de cada condomínio. Um dia destes vou fazer o mesmo, substituindo os sobrescritos por histórias. Não são valores de despesas para pagar, são livros e autores para conhecerem. Fiquei curioso para saber como seria a recepção dos mesmos. Ao abrirem as caixas do correio, deparariam com as histórias, diversos géneros, a literatura no seu melhor, para ser lida por todos no prédio. Trocavam a correspondência, todos liam as histórias da biblioteca ambulante, as que o viajante das viagens e andanças colocou pelas aberturas das caixas. O sucesso do conceito alastraria pelos restantes edifícios que cercam o largo. Todos se envolveriam no romance, na poesia, saberiam da vida de pessoas através das biografias, deixariam os mexericos para trás. A ciência, a história, a arte, acrescentariam mais conhecimentos, aos moradores dos edifícios que puseram cerco ao largo. O vento sacode a copa dos enormes plátanos que vigiam o largo. Vejo a festa anual que aqui se realizava, os plátanos são testemunhas dessa romaria. Ouço as vozes das crianças a brincarem, aqui perto, mas longe da biblioteca ambulante para não conseguirem a avistar. As palavras leva-as o vento, o largo está cheio delas, só as não vê quem não quer.

IMG_20240812_111504.jpg

Há mais automóveis estacionados na aldeia, modernos, alguns usados pela primeira vez na visita à aldeia, nas férias. Há pessoas novas na rua, falam com um tom de voz mais elevado. São protagonistas durante os dias de descanso, nas casas dos avós, dos tios, nas casas fechadas... Após o regresso das famílias no verão, abrem-se portas e janelas, para deixarem sair as histórias da última vez que a usaram. O cheiro peculiar dos espaços não arejados também desaparece. Sai a solidão, entram sorrisos, as vozes, com pronúncia estrangeira, as novidades de quem regressa após longa ausência. A biblioteca ambulante provoca estranheza a quem nunca a viu estacionada no centro da aldeia. Olham-na de esguelha, não se atrevem a aproximarem-se, ou a entrarem. Sussurram palavras que não compreendo, pronunciam outras, do país que os acolheu, não estou atento ao que dizem, o importante são as histórias gerarem comentários. Duas jovens exploram as ruas da aldeia, montadas em duas bicicletas, passaram pela biblioteca ambulante, pareciam duas flechas indo num sentido incerto. Não quiseram, ou não estavam atentas ao melhor alvo que poderiam ter atingido. Imóvel, de portas abertas, com as aventuras do Robin dos Bosques, do Guilherme Tell, e outras histórias capazes de as ensinar a acertarem nos alvos futuros. O vento provoca um rumorejar desconhecido, olho desconfiado cada vez que o ouço, não vejo nada, são as palavras invisíveis, apontamentos, lembranças do passado, arrastando-se nas poeiras do tempo. O presente nas aldeias não tem palavras para o vento trazer nos dias vindouros. A morte leva os velhos, o isolamento das aldeias no interior, rouba os bebés à nascença. Enjeitados socialmente, fogem para longe, onde têm trabalho e segurança para construírem família. No céu há nuvens que lançam sombras, redes que trazem conforto quando ficamos presos nelas. Tiram-nos do sol escaldante, fico assim quando sou apanhado numa história. A ligação é forte do início até ao final, a libertação tem um sabor de reconhecimento por quem escreveu, me enleou, nas palavras gravadas nos lugares onde leio. As férias, as romarias, eventos, o Natal, a Páscoa, trazem pessoas, alegria, são acontecimentos onde se criam memórias novas nas aldeias. Até quando?

IMG_20240804_082800.jpg

O calor comprime cada vez mais a mente, os movimentos, o sol é um ditador. Não permite tréguas, a sombra é uma enorme frigideira onde as histórias estão a fritar. Batatas fritas para os leitores consumirem, acompanhando com bebidas frescas. Pacotes coloridos, cheios de letras estaladiças, trituradas com sofreguidão. Vários sabores, aumentam a curiosidade de experimentarem a variedade existente na biblioteca ambulante. Vamos chamar-lhes “Reading Street”, um conjunto de veículos adaptados, espalhados nas ruas, sob a protecção da sombra das árvores, em esquinas formadas pelo cruzamento das mesmas. Pontos atractivos aonde se dirigem para degustar, apaixonados pela leitura. Histórias rápidas de se lerem, diálogos ao redor dos pacotes de batatas, com vários sabores, ou pensamentos, ideias, para debaterem ao mesmo tempo que as consomem. O sol continua a queimar, os leitores a chegarem a conta-gotas, uma secura nos últimos dias desta água ledora. Todos reclamam, fazem saber da possibilidade de não aparecer nenhum. O certo é que continuam a vir, não tenho pacotes de batatas fritas, mas há muitas histórias para provarem.

Pág. 1/2