Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Histórias à Beira Rio, viagens e andanças com letras pelas aldeias da minha terra

"Afinal, a memória não é um acto de vontade. É uma coisa que acontece à revelia de nós próprios." Paul Auster

Histórias à Beira Rio, viagens e andanças com letras pelas aldeias da minha terra

"Afinal, a memória não é um acto de vontade. É uma coisa que acontece à revelia de nós próprios." Paul Auster

IMG_20240808_152400.jpg

Hoje ainda não vi o sol, se aparecer com a energia de ontem, não faz falta nenhuma. Viria estragar a frescura do início do dia. Trazer outra vez a melancolia, a fadiga ao viajante das viagens e andanças. Falta de vontade para agir, basta, as pessoas não se deslocarem à biblioteca ambulante para olharem curiosas, interessadas em levarem histórias. Estão afastadas da rua, da aldeia, fogem de um interior sem calor humano. Privadas dos raios brilhantes da esperança. Não querem saber da leitura, dos vários caminhos que se iniciam na biblioteca ambulante. Ao volante, pedalando, de avião, caminhando, peregrinos, seguindo as palavras até ao fim da viagem. Procurem uma pátria ideal, sem afastamentos, não dêem passos nos caminhos que não sejam nos verdadeiros lugares onde moram. As histórias são um bom lugar para vivermos, aprendermos com as palavras experientes, com palavras possuídas de arte para fazer acontecer. O sol agora é rei e senhor, por detrás desta energia sopra um ar quente, para agravar ainda mais o resto do dia. Não fosse a sombra desenhada pelo contorno da casa, onde a biblioteca ambulante se resguardou, seria improvável as histórias permanecerem o tempo previsto na aldeia, no mesmo local. A casa dá ares de estar desabitada, as janelas fechadas, cobertas por uma fina camada de poeiras, confirma o que acabei de mencionar atrás. Não é a única, há outras assim, chamando pela presença dos proprietários, por quem queira habitar nas aldeias. As aldeias necessitam de sangue novo, como as páginas em branco, de tinta para se escrever palavras sem limites. Reescrever a história das aldeias, das pessoas, continuar a depositar memórias, nas comunidades, na biblioteca ambulante.

IMG_20240807_153018.jpg

A temperatura do sol está irrequieta, seca-me a imaginação. O rio não tem corrente suficiente para levar as palavras criativas a jusante. Desaguar as mesmas nas páginas em branco do oceano salgado daquilo que não é verdadeiro. O suor está a esborratar as minhas costas, são várias as linhas escorrendo. Um caderno onde abundam rascunhos de palavras que perderam a aspereza. O som das cigarras a baterem as asas é o mesmo de uma filarmónica a tocar para as gentes da aldeia. É o som mais ouvido no verão nas viagens e andanças. Sobrepõe-se ao melodioso chilrear dos pássaros, ao som das teclas do portátil do bibliotecário ambulante, a fixarem letras na página digital. Aderem vagarosamente, é frouxa a capacidade de criar, derivada da canícula que se faz sentir. Tem momentos rápidos, mesmo frenéticos, quando a faculdade de inventar ganha fôlego. Depois diminui de intensidade, ao ponto de desiludir quem escreve. Instiga a equacionar se vale a pena torturar tanto a mente. Adicionando a ausência de leitores, sacrificam a leitura pelo bem-estar. Na praia, na albufeira, em casa, evitando a temperatura elevada, saboreando o ar fresco artificial. A pouca ou nenhuma vontade de ler de alguns, a inixestência de livrarias no território para abrirem horizontes, o caminho para a biblioteca ambulante. Os dias diluem-se na exígua esperança do bibliotecário ambulante, incapaz de admoestar o sol, evitar a escassa ou quase nenhuma presença de leitores neste período.

IMG_20240805_163805.jpg

No interior da biblioteca ambulante o ar fresco entra e sai num abrir e fechar de olhos. À boleia do vento leve, chegam alguns fragmentos dos dias das festas, do último fim de semana em Martinchel. Os enfeites coloridos dançam presos nos fios atravessando as ruas da aldeia. A corrente fina, agarra-os com força, não os deixa voar livremente. Informa os forasteiros vindos pela corrente de substância escura, usada no revestimento das estradas, conduzindo os automóveis lustrosos matriculados no estrangeiro, de um período de tempo dinâmico na aldeia. Foram dias de muito movimento, juntando as pessoas da aldeia, o calor das gentes da freguesia, dos que vêm de fora, dos que regressam por pouco tempo. Uma fogueira afugentando os dias frios do resto do ano, a solidão, a debilidade do interior. Dias que falaram palavras diferentes, ouço ainda expressões das línguas estrangeiras, dialectos da capital, de outras regiões, é o vento que os traz. Misturam-se no meio das histórias, estão no sítio certo, na biblioteca ambulante. A festa terminou, as férias continuam, o final do mês irá rasurar a alegria, as pessoas. Voltarão a reescrever-se no próximo ano.

IMG_20240802_160825.jpg

O chão no largo do Cabrito está cheio de sombras, fios de telecomunicações cruzam-se, na diagonal, paralelamente. Trocas de informações, estabelecem relações na tela negra do alcatrão, correspondências do mundo inteiro, atravessam o largo distante de tudo. Local de entendimento através dos diálogos, conversas nas duas esplanadas, dos dois cafés. Palcos do sussurro do vento, dos mexericos das gentes locais. O largo também é passagem de um local para outro, não tem fim a quantidade de veículos a transitarem. Pessoas a movimentarem-se, a trabalharem. Automóveis com as rodas a chiarem, desejos que o tempo passe depressa. De noite as sombras continuam no largo, empurradas pelo vento, assustam os mais distraídos, impõem respeito aos atentos. Sombras mensageiras, trazem histórias, levam outras. Sombras dos leitores que não vieram à biblioteca ambulante. Sombras das personagens das histórias, vagueando à noite no largo, capturando palavras, agonias, gritos de prazer, choros, solidões. Regressam às páginas, disponíveis para continuarem nas histórias, dando folga à caneta do escritor. Sombras que nos protegem do sol de verão, implacável no largo. Sombras que nos abrigam, defendem da ignorância. A biblioteca ambulante, as histórias, matam a sede na sombra da fonte. Matam a falta de conhecimentos básicos, venham à fonte, bebam até saciarem a sede de viver. 

IMG_20240801_110757.jpg

As árvores acenam, alegres, o regresso da biblioteca ambulante às aldeias da minha terra. As histórias não esperavam encontrar a frescura que se faz sentir ao longo do dia. O viajante das viagens e andanças não reclama sobre o calor. Nas primeiras horas, os leitores recusaram estar presentes na biblioteca ambulante. A interrupção prolongada, apesar de saberem, possuírem o horário, quebra hábitos, deixaram de ver, de ouvirem dizer, da passagem da biblioteca ambulante nas estradas, na charneca, acompanhando o rio, o período de tempo estacionada nas aldeias. A falta de comparência produz ignorância nos leitores, no viajante das viagens e andanças, abandonados, presos no tempo a ouvirmos os murmúrios do silêncio.

Pág. 2/2