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Histórias à Beira Rio, viagens e andanças com letras pelas aldeias da minha terra

"Afinal, a memória não é um acto de vontade. É uma coisa que acontece à revelia de nós próprios." Paul Auster

Histórias à Beira Rio, viagens e andanças com letras pelas aldeias da minha terra

"Afinal, a memória não é um acto de vontade. É uma coisa que acontece à revelia de nós próprios." Paul Auster

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Os primeiros alvores anunciavam o que seria a temperatura, que incomoda ao início desta tarde. Está calor, parece verão, não se despediu há muito de nós. Deixou para trás uma sensação produzida pela acção do sol, um simpático nível térmico, a roçar o exagero, na estação meteorológica em que estamos. Depois de uns dias mais frescos, com alguma chuva à mistura, voltar aguentar tudo outra vez, o calor, a melancolia, o desalento, do tempo a correr devagar debaixo de um sol escaldante. Não quero isso, os leitores não querem chegar à biblioteca ambulante inflamados, como se alguma ignição os pusesse a arder. Prefiro-os assim, quando são as histórias a exercerem a influência, para os pôr em movimento e seguirem as palavras, nos caminhos desbravados pela caneta dos escritores. Uma águia paira sobre um terreno descampado, de fazer inveja às máquinas voadoras, imagino os seus olhos, fixos nalguma presa, um coelho distraído, um réptil absorvendo energia solar, para suportar a noite fria, o próximo inverno, no interior do seu buraco. Ali está ela, sempre vigilante ao que se passa cá em baixo, a biblioteca ambulante não é presa para ela, os predadores das histórias não estão atentos como a águia está, até ao momento não pressentiram a presença dos animais a correrem nas páginas, saltando os obstáculos, fugindo uns dos outros, do homem que os prende nas armadilhas, os abate com tiros certeiros de espingarda. Agora são os pombos, a lebre, caça feita a pé, as principais vítimas, a seguir vem o período em que as perdizes, os coelhos, não têm descanso. É com naturalidade que ouço nos dias em que se pode caçar, o som das espingardas a dispararem, ou avistar caçadores a caminharem na charneca rodeados pelos cães a farejarem por entre a vegetação rasteira. A qualquer momento saltar um animal silvestre,  ziguezagueando, tentando evitar os chumbos mais rápidos que o vento. Ou um caçador entrar na toca das histórias, apontando imediatamente a visão experiente a uma história. Nos dias seguintes alimenta-se desta, saboreará até esgotar a carne dos ossos, lendo até ficar saciado.

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Há quem continue a ficar surpreendido, sem saber bem que veículo é este, que estaciona nos sítios mais pequenos, afastados de tudo e de todos. A biblioteca ambulante é uma aventura, é magia, a história das pessoas. Que escrevem, que lêem, dos lugares menos improváveis onde encontrar leitores, da charneca sempre misteriosa, das criaturas esquisitas, folheando o tempo todo com estranhos movimentos nos dedos, concentrados, num objecto mais ou menos volumoso, conforme a área onde decorre a sucessão de acontecimentos. A bola mágica é o universo, onde se advinha o futuro, aprende o presente, ou pede uma opinião ao passado, ainda assim, há quem não entenda. A biblioteca ambulante a girar nas viagens e andanças com letras pelas aldeias da minha terra. A bola mágica mostrando os itinerários ao longo de diferentes aldeias, ao encontro das pessoas,  facilitando os caminhos, destinos desconhecidos a muitos usuários da bola de histórias. Leitores, aprendizes num mundo constantemente em transformação, seguidores das palavras, confiando a sua sabedoria ao homem dos livros. 

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Na aldeia das Bicas, o sol rompeu com o cinzentismo dominante desde que o dia amanheceu. Uma revolução celestial que terminou de vez, na aldeia, com a opressiva pluviosidade. A biblioteca ambulante tem as suas portas abertas de par em par, sem condenações ou repressão social. Todos podem aproximarem-se, entrarem, sem se molharem no exercício livre da leitura. A primeira metade do dia foi bastante opressiva, a chuva não permitiu quaisquer ligeirezas, naqueles que gostam de ler. Não apareceu nenhum leitor, um passo fora de casa, e a punição caía imediatamente nas suas cabeças, uma guilhotina de gotas de água acertando em cheio na capacidade de tomarem a decisão de irem ao encontro das histórias. A temperatura subiu, não é necessário usar a camisola, basta a camisa de mangas curtas. Andamos assim às turras com este tempo completo de incerteza. São as guerras, o orçamento, a ressaca dos incêndios, decisões que teimam a encontrarem os caminhos certos. São as indecisões na história que se escolhe, quando não está a que foi fisgada na última visita. As árvores dançam felizes, aproveitam os últimos dias, antes de se despirem, para receberem o inverno na cama. Nuas farão amor durante os dias frios, nesta fúria ouvir-se-ão os gemidos do vento, os espasmos da chuva e do gelo. Os ecos farão a primavera despertar, as árvores voltarão a vestirem-se. O ponto de partida para lermos as palavras novas, regressarem as sombras, o ar fresco que estou a receber neste momento.

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As folhas das árvores denunciam a presença do outono, cores quentes começam a despontar pela charneca adentro, as romãs penduradas nos ramos espinhosos da romãzeira aguçam o olhar do viajante das viagens e andanças. Os chuviscos irritam as pessoas, transpõem o lugar onde a biblioteca ambulante está parada, sem olharem, sem uma breve saudação às histórias. Querem sair da rua o mais rápido possível, a chuva é fraca, ainda assim mantendo-se com o intuito de molhar. Na ligação para outra aldeia, avistei na estrada três carneiros a ocuparem toda a largura da via, indo na direcção que a biblioteca ambulante tomava. Contornei-os vagarosamente, sem evitar uma buzinadela a um mais teimoso que os outros. Segui o destino com esperança de encontrar alguém na aldeia logo a seguir, para informar da situação dos desertores. Infelizmente não avistei ninguém, segui a estrada, a pensar no assunto, a ausência das pessoas, que tanta falta fazem nas aldeias, ainda que fosse somente para serem informados da presença dos animais na estrada. As gotas miúdas da chuva serenaram, o céu continua ameaçador, na rádio estão constantemente a avisar a chegada de uma tempestade para o norte e centro do país ao início da tarde. Na aldeia seguinte, um vendedor ambulante estacionou a camioneta a seguir à biblioteca ambulante, agora só tem de aguardar como eu, não foi preciso muito tempo, passou imediatamente uma mulher com um saco dobrado numa das mãos, desprezando as histórias, com os olhos postos no toldo levantado, tentando adivinhar que legumes ou frutas poderia adquirir na camioneta. Agora a chuvinha não dá intervalo aos leitores para se dirigirem à biblioteca ambulante. Na aldeia onde de manhã tentei perceber onde estavam todos, no largo do Café Areias, levanta-se uma neblina. Diminui a visão para a charneca, cala o som das aves, protege os animais silvestres dos seus predadores. O café Areias tem a porta aberta, sempre que há jornais locais para distribuir, deixo uns exemplares no estabelecimento. Nunca entrei com o espaço iluminado, a obscuridade captura o lugar, onde um vulto ou outro estão sentados. Não se deixam conhecer, a escuridão impede-me de distinguir estas pessoas, sempre caladas. Há sempre o reconhecimento pelas notícias de quem está por detrás do balcão, os outros são semblantes enigmáticos. Desconfiados dos forasteiros, avaliando-os, caçadores, ou cobradores de vidas ceifadas inadvertidamente por eles. Vindos das muitas páginas das histórias, figuras bizarras transformadas de humanos durante o dia, para devolverem a realidade das suas identidades após o sol se pôr. Calcorreiam a charneca procurando vítimas para se alimentarem, arriscando a permanência nesta terra, ao penetrarem nas ruelas da aldeia, mexendo com o imaginário dos aldeões, ao ouvirem-nos arrastando as patas com as unhas afiadas. Não há nenhum aldeão que não tenha sido assaltado pelo ruído destas criaturas a farejarem as portas de entrada das casas da aldeia, espreitando pelas frestas das paredes, pelas janelas entreabertas nas noites quentes do verão. No inverno ainda é mais medonho, os dias fecham as portas à luz mais cedo, sobra a iluminação pública dos candeeiros. Não são impeditivos de evitarem o assalto às ruas, às memórias dos mais velhos, à oralidade, às narrações escritas sobre estas figuras que continuam a influenciar as vivências a quem ouve histórias nas aldeias.

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Os aguaceiros estão de passagem, limpam as memórias que o vento deixou. Trazem apontamentos novos, ficou para traz uma página, lê-se outra e mais outra, vamos andar nisto até o tempo se cansar de nós. A tasca do Ti Zé e a mercearia com o mesmo nome, na aldeia da carreira do Mato, encerraram de vez. Talvez aguardem por outro contrato para transferirem a propriedade a outro interessado. Num lugar pequeno como este o fecho de ambos os estabelecimentos, isolou ainda mais a aldeia. A carrinha da padeira segue em frente, não há pessoas a lerem os jornais no escaparate da biblioteca ambulante. Há um leitor que vem sempre, estaciona o seu automóvel, seleciona a história, e volta à viatura para desaparecer como os aguaceiros fazem com as memórias. O vento na aldeia deixou de trazer memórias novas há muito tempo, as poucas que conseguem livrar-se da sua força, não aguentam prolongarem-se no tempo. Anda tudo muito rápido, como as palavras efémeras. Até ao momento a chuva não é mais que uma ameaça meteorológica, na aldeia do Vale Zebrinho. A aragem oriunda nos confins da charneca, chega mais fria do que o habitual, à muralha formada pelas histórias. Não consegue ultrapassar a elevação com alguma espessura de palavras a guarnecerem os leitores, fortalecendo o conhecimento destes valentes nas aldeias da minha terra. Está uma tarde de outono, o silêncio é cortado pela passagem de um veículo ou outro, a debandarem da aldeia. Receando o desmoronamento da parede formada por letras seculares, não acreditando na eficácia da leitura na sua formação. À medida que a tarde se inclina para o ocidente, o sopro do vento denota mais audácia, sem que a muralha dê sinais de fragilidade. Foi sempre assim desde a união das primeiras letras, foram muitas as tentativas para as derrubarem, quando robustecem páginas em branco, não há força que as deite abaixo.

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Em Rio de Moinhos o ruído do motor do cartepílar de um lado para o outro próximo da biblioteca ambulante, deixa o viajante das viagens e andanças incomodado. Foi de manhã, acontece outra vez no período da tarde. Está a ser um dia de outono perturbado pelo som de uma ferramenta a cortar pedra, a buzina intermitente do tractor constantemente alertando a sua deslocação aos mais distraídos. Só não ouço a voz dos trabalhadores, concentrados no exercício da sua actividade. A história de hoje poderia ter em consideração o início do outono, mas a concentração do som relativo ao trabalho envolvente, retirou a beleza deste dia. Os leitores andaram por aqui, a sentir a indignação das histórias pelo atrevimento do sons produzidos pelo estrondo da pá da máquina, das pedras a caírem, da areia a ser despejada de um camião. Da injustiça de não  poderem ouvir os rumores do vento, as folhas das árvores arrastando-se pelo chão, ao sabor da aragem que não se deixa perceber. As páginas das histórias a realizarem a acção dos personagens, o sentido que as emoções tomam, a crónica que poderia ser outra, mas não foi.

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A biblioteca ambulante prolonga a sua permanência na Festa do Futuro, outro dia, outras pessoas, oriundas de concelhos limítrofes, numa união nunca vista na aldeia. Rostos surpresos quando deparam com a sua presença na aldeia, relembrando a outra, noutro tempo. Os da cidade grande, onde é fácil aceder ao futuro, não sabiam da existência da biblioteca ambulante, um lugar onde as pessoas das aldeias da minha terra, têm um sítio permitindo acessibilidades ao futuro. Noto até ao momento a indiferença, poder ser um equívoco meu, da imprensa local e regional no evento. Não os vejo a colherem informações das pessoas da aldeia, habituadas a viverem o presente no passado, a fazerem a notícia do acontecimento na aldeia. Dar nas vistas a petiscar tripas e bucho acabados de cozinhar tem influência. Também devia ser importante ser observado a descascar amendoins, todos sabemos o trabalho que dá tirar as sementes comestíveis, sacudir a finíssima casca. Ao redor de uma mesa a discutir o futuro das aldeias da minha terra, a ouvir ideias, retirando o que não interessa, colocando possibilidades para um futuro diferente. A continuidade das aldeias será possível com o apoio de todos, populações, instituições, e autarquias. O futuro ao vento na aldeia do Souto, vi pessoas das aldeias da minha terra a conheceram pela primeira vez uma aldeia situada no território onde as suas aldeias estão inseridas. Tão perto e tão longe ao mesmo tempo. A biblioteca ambulante um veículo do passado, projectado para melhorar o futuro das pessoas nas aldeias, continua o seu desempenho, a trazer oportunidades, descascando histórias nas aldeias.

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A tarde amena na aldeia do Souto, trouxe a biblioteca ambulante à Festa do Futuro, um conjunto de actividades numa aldeia, igual a todas as outras aldeias da minha terra, onde não acontece nada. Exceptuando as romarias anuais, os funerais, os casamentos, cada vez mais raros e aparatosos. As crianças aprendem jogos tradicionais, fazem inscrições numa parede, perpetuam a Festa do Futuro, o dia em que as histórias também são uma fracção do evento. O futuro da aldeia depende dos jovens que estão dinamizando as acções durante os dias do fim de semana. Não são naturais da aldeia, vivem em Lisboa, as suas raízes ainda os seguram, os avôs, os tios, a família que não teve a coragem para fazer algo difícil, separar-se da terra que os viu nascer. Prometem que é para continuaram com o acontecimento, nas romarias anuais estão sempre presentes, alguns intervalos semanais também os conseguem demover de permanecerem na grande cidade. Conversas dispersas, agarradas sem querer, referem a tentativa de trabalho à distância, uma semana para começar, depois logo se verá, a entidade patronal tomará uma decisão. As possibilidades pairam no ar da aldeia, nas outras também as há, a biblioteca ambulante fixa leitores, hajam políticas para estabelecer pessoas, criar memórias novas.

 

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O largo tem dois carros estacionados, são demais quando a biblioteca ambulante também faz parte do exíguo espaço da aldeia. É o sítio de encontros, de passagens, de comércio ambulante, o padeiro, o automóvel da farmácia, demoram-se, e transitam no largo para qualquer outro local da aldeia. As histórias permanecem no mesmo lugar desde sempre, nas viagens e andanças. Testemunharam desde a primeira vez que aqui chegaram, no largo, as mulheres sentadas no banco de alvenaria aguardando a carrinha da padeira. As suas conversas traziam sempre a vida dos outros à tona das palavras, o bibliotecário oferecia-lhes o jornal local, os diálogos mudavam de rumo ao encontro das notícias, o clamor esbatia-se quando a buzina da carrinha se fazia ouvir à entrada da aldeia. Com o pão nos sacos cada uma ia à sua vida, certas de se encontrarem novamente no dia seguinte. A pandemia chegou, um vendaval atropelando tudo e todos, a aldeia não foi excepção. A biblioteca continua a regressar, a carrinha do pão também, as pessoas deixaram de estar à espera. Desapareceram nas páginas da história da aldeia, algumas andarão por lá, outras sumiram-se com a passagem dos capítulos. A história na aldeia não é a mesma, os leitores não são os mesmos, quase não os há. Noutro largo, em Alvega, de manhã na deslocação da biblioteca ambulante à aldeia do Tubaral, o interior dos seus limites tem barracas com venda de roupas, de artigos diversos, com, plantas aptas para preencherem os regos abertos nas hortas circundantes da aldeia, fruta e legumes, trouxeram dinamismo ao espaço. As histórias não conseguem causar o mesmo atrevimento às pessoas desta aldeia, ainda que, hajam leitores a entrarem na biblioteca ambulante uma vez por outra. São poucos para uma aldeia responsável  administrativamente por outras ao redor. Os dias, meses e anos, o tempo a passar ao compasso de cada um, com as histórias acompanhando o mesmo cenário com tudo incluído, na porção do tempo, sempre que permanece na aldeia.

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As nuvens ameaçam coisa nenhuma, não sei se virão leitores, o largo em Alferrarede permite a passagem de uma aragem amena, de pessoas alheadas sem perceberem a vibração das palavras, nas histórias da biblioteca ambulante. A libertação de emoções acumulada na camada espessa de páginas sem fim. Ou as explosões que ocorrem no interior dos leitores todas as vezes que as palavras atingem o hipocentro, a alma das pessoas. Caminham apressadas, com os olhos postos no chão, como se estes conseguissem farejar o odor do papel impresso com as palavras dos escritores. De cabeça erguida confrontariam a montanha  formada pela matéria expelida pelos aparos das canetas. Qual lava expulsa pelos vulcões, pensamentos expatriados, solidificados para sempre. Rochas desenvolvidas de conhecimento, são muitos aqueles que lêem. Uma clareira azul abriu-se no céu, por pouco tempo, as nuvens não permitiram tamanha veleidade ao sol. Fantasiar só é possível nas histórias, onde o sol aparece para tornar transparente as ideias, dar brilho aos leitores. Há no ar odor a terra molhada, pingos grossos espalharam-se no vidro grande da biblioteca ambulante, quando desaparecerem ficará o pó, um movimento de emoções oriundas do Norte de África.

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