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Histórias à Beira Rio, viagens e andanças com letras pelas aldeias da minha terra

"Afinal, a memória não é um acto de vontade. É uma coisa que acontece à revelia de nós próprios." Paul Auster

Histórias à Beira Rio, viagens e andanças com letras pelas aldeias da minha terra

"Afinal, a memória não é um acto de vontade. É uma coisa que acontece à revelia de nós próprios." Paul Auster

29 Out, 2024

O que é o comer?

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O que é o comer? Foi, é com menos frequência, a maneira de viver das gentes da aldeia do Pego. Através da comida conquistaram as pessoas do território das aldeias da minha terra, dos forasteiros que nunca deixaram de passar a língua regaladamente nos pratos, sem complicações de confeccionar. É um livro, para além de ser um receituário de sabores, é a história da alimentação, dos ofícios, das tradições, das pessoas da aldeia do Pego. Antes que a oralidade se esgote de vez, foi um haver se te avias, a comunicar com quem ainda tem os conhecimentos, as receitas destes tesouros gastronómicos. Após a reunião das jóias e utensílios preciosos, foi passar a texto escrito, melhorando a qualidade do trabalho com fotografias, a despertarem os paladares dos leitores. Já experimentei, foi uma viagem ao campo, ao passado, aos avôs, às aldeias. É uma comida de conforto, valoriza o trabalho agrícola, o sustento do outro tempo, o do nosso, continuam a plantar, a semear as suas hortas. Os próximos não sei, talvez, ao lerem este livro, no futuro, cheguem a casa após a escola, o trabalho, e questionam, o que é o comer?

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Anda uma abelha na biblioteca ambulante, de um lado para o outro a inspeccionar as histórias, iludida pelas cores das brochuras, julgando serem flores. Um jardim de histórias, de odores, e sabores, néctares aromatizados por óleos da escrita. Palavras ao vento numa pradaria de lembranças, de paixões, poeiras do tempo persistindo na relação com os leitores. Um ecossistema de ligações afectivas, de comportamentos, de capacidades de comunicação. Uma fonte de fascinação para os leitores, para quem o conhece pela primeira vez. Foi o que aconteceu com a abelha, perdida na grande planície, aprendendo, que não é o seu meio ambiente. O sol  queima o meu braço exposto aos seus raios, a manhã evolui na aldeia do Brunheirinho, com as mulheres a rodearem a carrinha do merceeiro. Uma delas passou próxima da biblioteca ambulante, olhando desconfiada, talvez, pelos sons dos personagens que pululam diariamente nas histórias. Mais adiante, noutra aldeia, em Vale de Horta, ao entrar no pequeno estabelecimento, afastando a cortina mosquiteiro, ouço uma voz a dizer, aí vêm os jornais para lermos. O café é o ponto de encontro dos homens da aldeia, estão reformados, ocupam o tempo nos terrenos cultivados com hortaliças e legumes, ou vêm ouvir-se uns aos outros, bebendo um copito de vinho. Foi com satisfação que recebi aquela voz vinda da profundidade do café, não são leitores no sentido da palavra, nunca entraram na biblioteca ambulante, mas, lêem o jornal que lhes deixo, gostam de saber as notícias do território das aldeias da minha terra. O largo do Cabrito continua a ser um lugar de passagem, de encontros e desencontros, de paragens, para conversas na esplanada em ambos os cafés que o limitam. A tarde soalheira permite que as esplanadas sejam um bom local para se estar, beber um café, fumar um cigarro, esgotando ao mesmo tempo que este, as novidades mais recentes do lugar. Assim se delongam os dias destas pessoas que já fizeram de tudo na vida. Resta-lhes serem leitores na biblioteca ambulante.

 

 

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Na estrada, no destino das viagens e andanças com letras pelas aldeias da minha terra, não conseguia ver um palmo adiante do nariz. O nevoeiro denso não deixou ver a paisagem de um lado e outro da faixa de alcatrão, a rasgar a planície encaixada no vale espaçoso. Após ter ultrapassado a vasta depressão alongada, e ter transposto a charneca, plantada na elevação, é que o sol se deixou observar. A aldeia de S. Facundo manifesta indiferença ao que se passa lá em baixo, as suas casas expostas ao sol, aquecem naturalmente os espaços interiores, é possível que alguns dos seus habitantes tenham alguma lenha a ser consumida pelo fogo. As fontes de calor começam a ser importantes, agora que o outono se instalou, com os dias soalheiros e as noites frias. Um período em que os leitores não abundam na biblioteca ambulante, motivados pela colheita da azeitona, não têm tempo para leituras, perdem-se nas folhas da oliveira. As azeitonas são letras pretas, que eles sabem decifrar muito bem, desde tenra idade que as lêem. Sabem a história de cor e salteado, espremem as palavras, chegam ao ponto de ruptura, libertando-as do óleo. O sumo preferido, a parte final da leitura, o requinte no prato dos leitores. Foi no intervalo de um capítulo, que a Aida chegou apressada com histórias para devolver, pediu ajuda na escolha de outra, está a meio da história, da oliveira, não pode perder muito tempo na biblioteca ambulante, as letras pretas, penduradas nos ramos, têm de ser lidas, não se pode perder o fio do óleo no enredo das folhas da história. O sol no período da tarde é um aperta-livros, mantém-me sentado no banco, direito, olhando as histórias levantadas, com sorte, algum leitor surgirá para destabilizar este equilíbrio todo.

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As nuvens são vagas no céu, a rebentarem nos meus olhos, o mar está agitado, as histórias a areia onde os leitores molham a curiosidade. O pior já passou, foram momentos de muita ventania com chuva e vento à mistura nos últimos dias. A temperatura obriga-nos a vestir roupa de verão, as portas abertas na biblioteca ambulante permitem que a escassa corrente de ar penetre, que os leitores avistem as palavras espreitando por detrás das brochuras. Com muita vontade de embeberem a curiosidade dos leitores. Que as páginas das histórias nunca se fechem, tal e qual, como se fecha a porta de uma casa. É difícil desfazer os copos, os pratos, os talheres, as travessas onde abundou a comida, a mesa, onde se disseram verdades, onde se disseram mentiras, onde as histórias correram atrás umas das outras. Falta pouco para terminar a história, o último capítulo, o mais difícil para mim, nesta história, está cheio de incertezas, um pouco como as nuvens, a fragmentarem-se violentamente na minha pessoa. Quando fechar a porta da história, não voltarei a sentir as emoções desta reunião de folhas de papel. Nunca mais lerei as histórias onde cresci a gostar das pessoas a ser o que sou hoje. Irão para a biblioteca das memórias, onde os mares, no tempo, as trarão e levarão, para evitar que se esvaziem, naqueles que virão.

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As nuvens continuam persistentes nos céus das aldeias da minha terra, há leitores como elas, têm uma relação constante com as histórias. Passam como as nuvens, pela extensa área onde estão as palavras ao vento, uma seara onde transformam as espigas em emoções. Não se cansam deste alimento, transformado pelo engenho mental. Hajam muitos mais a servirem-se dele, continuando a ceifar as  palavras, nos campos semeados de letras. A biblioteca ambulante, espalhará o resto, como faz o vento, soprando nas viagens e andanças. Searas de palavras, histórias sem fim, leitores personalizando moleiros a transformarem os grãos, a história das pessoas.

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O sol continua oculto sob a camada impenetrável de nuvens cinzentas, manifestando a intenção a qualquer momento de não susterem a água acumulada. A primeira hora no segundo período do dia, trouxe mais brilho, o som estrondoso de uma porta a bater, sobressaltando os personagens das histórias, e o viajante das viagens e andanças. A mulher saiu disparada, de acordo com o movimento desajeitado do andamento, falando sozinha. Sei lá o que irá proferindo com os botões da bata que traz vestida, presumo que o seu homem esteja no café a jogar às cartas. Sem querer saber das contas domésticas para saldar, mais preocupado com o dinheiro na carteira, se chegará para os copos de vinho, que terá de pagar aos adversários no jogo, todas as vezes que perde. Vejo-a a caminhar, até desaparecer ao fundo da rua, na porta de outra casa. A filha recebe-a com aflição, quando a vê entrar com os olhos cheios de água, capazes de despejarem as lágrimas logo ali, no ombro da descendente. Desabafar sobre o comportamento do pai, dos outros como ele, a esgotarem o tempo que lhes resta no café, diariamente, comentando as suas vidas de escassas oportunidades. Consumindo algum álcool, para lhes acelerar o decurso dos dias, deixarem fugir as memórias, passarem aos outros as responsabilidades. O consolo da filha não lhe resolve a angústia, acalma-a momentaneamente, trás-lhe paz. No café consigo ouvir o som das mãos a baterem na mesa, segurando a carta vitoriosa, a que promoverá mais uns copos de vinho. Umas farripas de água vão caindo de vez enquanto, não chegam para cobrir o vidro grande da biblioteca ambulante. Uma leitora veio devolver umas histórias, deambulou pelo exíguo espaço, grande no imaginário dos leitores. De um lado para o outro, para trás e para a frente, retirando um livro de cada vez para coloca-lo novamente no lugar, após uma passagem rápida pelas badanas e contra-capa. Finalmente recolhe três histórias, as suas mãos abriga-as como uma mãe segura um filho no ventre. Afasta-se da biblioteca ambulante movendo-se determinantemente para iniciar um longo ciclo de leitura. O regresso da mulher da casa da filha, continua a ser pesaroso e delongado, quer adiar o reencontro, a conversa violenta que terá de enfrentar com o seu homem. No café os sons diluem-se no entardecer precoce, ao qual não estão isentas as nuvens espessas. 

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A biblioteca ambulante foi recebida na aldeia dos Casais de Revelhos por gotas de chuva miúdas.  Sempre cheguei à aldeia nos dias assinalados no calendário das viagens e andanças, nunca fui recebido como aconteceu hoje. Não há ninguém aguardando as histórias, a comparecer no sítio onde se encontram os conhecimentos acerca das diversas áreas do saber. Foi com a vontade da ex-presidente do município, natural desta aldeia, que esta biblioteca ambulante se fez à estrada. Nem assim os naturais da aldeia consideram o gesto da conterrânea, agradecendo-o com a presença assídua, a levar histórias. A manhã foi diferente, outra aldeia, Sentieiras, onde há sempre gente, não são leitores, ou podem sê-los, com sorrisos a receberem a biblioteca ambulante. Misturam o que compram no mercadinho com as histórias. Abrem as suas vidas umas às outras, ao viajante das viagens e andanças, recolhem a vida dos outros nos sacos, no meio da fruta, entalada entre um pacote de arroz,  e um naco de carne. A refeição completa para o almoço, após o café digerem o romance, um uísque sem gelo, para beber até ao fim. As gostas de água miúda, ficaram adultas e grandes de um momento para o outro, tornaram-se violentas, estão a molhar tudo. Saí da aldeia com a chuva ausente, a estrada com água não impede os automóveis de acelerarem, ultrapassarem a biblioteca ambulante. A velocidade não é importante na leitura, embora haja leitores sem travar quando estão perante uma boa história. Não derrapam na tinta derramada, as letras não são obstáculos, as palavras ensinaram-lhes a dirigir o saber, a cuidarem da mente. São bons condutores, as viagens para eles não têm fim.

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O céu esta manhã parece um vidro fosco, deixando passar a luz, sem permitir distinguir a cor azul. A sombra da árvore na parede faz-me lembrar o cabelo desguedelhado de um leitor a chegar apressado, esquecendo, por pouco, da presença da biblioteca ambulante no seu bairro. Não está frio apesar das nuvens insistirem em tapar o sol nas viagens e andanças. Poucas são as pessoas a passearem em volta do espaço verde, a dirigirem-se a qualquer lado. A área é sobrelotada por grandes superfícies comerciais, marcas que não deixam indiferente quem queira abastecer-se de víveres. No meio deste dinamismo estão as histórias, parentes pobres no consumo. As palavras pouco apetecíveis para as pessoas do bairro, sentadas na esplanada do café, olhando divertidas para a biblioteca ambulante. Sem arriscarem, engordarem a mente nos géneros literários, continuam ali com os traseiros assentados, olhando umas para as outras, fumando cigarros atrás de cigarros, sem largarem os telemóveis, com as páginas das histórias à vista. Alimentos frescos nos escaparates, prateleiras com alternativas, para todos os gostos. Não percebo o desinteresse relativamente ao uso das palavras como forma de alimento, não têm sabor, apresentam melhor, emoções, promovem a curiosidade de procurar mais e melhor alimento. A esta hora o bairro tem a maioria dos habitantes a trabalharem, exceptuando alguns no café, ou na mercearia que serve a população mais intima. De vez em quando um automóvel, outro veículo qualquer, transitam devagar na rua, no meio do silêncio dos prédios, abrandando a marcha quando deparam com a biblioteca ambulante estacionada. Não sei se viram o jovem com a sua mãe a confiar os seus dados pessoais às histórias. A partir de hoje são confidentes, as histórias depositarão os assuntos, apenas conhecidos na leitura, ao contrário o jovem imaginará aventuras sem fim percorrendo as páginas, saltado as linhas perigosas, voltando outra vez a ler, querendo fixar nomes. Dos lugares, dos personagens, dos futuros heróis, que o chamarão, sempre que haja uma impressão nova, outra aventura.