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Histórias à Beira Rio, viagens e andanças com letras pelas aldeias da minha terra

"Afinal, a memória não é um acto de vontade. É uma coisa que acontece à revelia de nós próprios." Paul Auster

Histórias à Beira Rio, viagens e andanças com letras pelas aldeias da minha terra

"Afinal, a memória não é um acto de vontade. É uma coisa que acontece à revelia de nós próprios." Paul Auster

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A aldeia mostra fragilidades com o envelhecimento das pessoas, parece agastada. No Brunheirinho excetuando duas mulheres à entrada da mesma, olhando surpreendidas a passagem da biblioteca ambulante. Até ao momento, o merceeiro a buzinar a sua carrinha, não se fez ouvir. Talvez se tenha antecipado ou andará ainda por outros lugares próximos a negociar os produtos alimentares. Sem ele seria difícil a muitas destas pessoas deslocarem-se para adquirirem tudo o que serve para alimentar. O céu está desengraçado, sem o brilho para dinamizar, as poucas pessoas a saírem à rua principal da aldeia. Algumas ovelhas, e cavalos, deambulam nos pequenos pastos defronte das casas da aldeia. Param bruscamente, virando a cabeça no sentido do som estridente da buzina a aproximar-se do local onde estão. O merceeiro, afinal não tinha passado, a sua voz elevada, substituía agora a buzina, a chamar as mulheres à rua, para se apressarem. Ligeira, rumou a biblioteca ambulante até ao Cabrito, ao largo, onde as suas gentes e forasteiros recorrem depois do almoço, para encontrarem assuntos de conversa para o resto do dia, nos cafés que assinalam os limites do mesmo. Na hora de partirem, põem os automóveis em marcha, para saírem ao mesmo tempo no mesmo sentido, cria-se alguma confusão no arranque e parar logo de seguida. O largo não é assim tão largo para partirem juntos. Um de cada vez, incluindo a biblioteca ambulante, desaparecem deixando rastos de histórias, de fumo, de pneus no alcatrão, da saudade, até ao próximo encontro.

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Os prados verdes são as folhas onde os homens nas aldeias escrevem as páginas das suas vidas. Obras literárias que alimentam a imaginação daqueles que nunca saíram das grandes cidades. Lêem, saboreando com curiosidade cada palavra nas páginas, escritas pelos homens das aldeias da minha terra, nas folhas. Sentem a liberdade que não têm na cidade, sempre que as apreciam. Soltam-se os odores, fumegam no espaço das refeições, alegres, tristes, solitários, oriundos da leitura, da terra negra, das palavras cozinhadas, nos pratos, na mesa das pessoas da cidade. As histórias das aldeias da minha terra fervilham, intrigando os comensais. A tarde na aldeia, em S. Miguel do Rio Torto arrefece, com o sol apontado ao zénite, mais uma volta ao relógio e a noite instala-se.

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O orvalho não deixa espaço para o tapete verde mostrar toda a sua beleza na charneca. A terra finalmente transpira de cansaço por ter ultrapassado o calor dos meses anteriores. Terminaram os dias de suplício, regressaram os textos, as viagens e andanças pelas aldeias da minha terra, frias, rudes, como o coração dos homens, ausentes no progresso destas. As chaminés sempre a vomitarem fumo, os velhos aquecendo-se ao sol, no início dos dias, nos finais dos mesmos. Dias curtos, para cuidarem da terra, noites longas para imaginarem, ouvirem os gritos da escuridão, os que gostam, para lerem. O fogo a estourar nas lareiras, é o centro das atenções em cada uma das casas nas aldeias. Cuidam dele como se fosse um filho, nunca o deixam enfraquecer pela fome. Estão sempre a alimenta-lo com a lenha obtida, na poda das árvores, na remoção de sobras de outras, derrubadas pelo efeito do vento forte na floresta, transaccionada a dinheiro. O sol nos dias de pouca duração sabe melhor, influencia os dias na cor, o casario nas aldeias são retábulos de vidas dominadas pelo trabalho rural. Pela interioridade do território, e das consequências da situação geográfica do mesmo. Leva os leitores a dirigirem-se à biblioteca ambulante, quando brilha perto do meio-dia, com o almoço a ser aprontado no fogão, em lume brando. O período a seguir ao almoço é insuficiente, regressa-se ao fogão, vigia-se o fogo na lareira e pouco mais. A biblioteca ambulante continua a ser a chama que não deixa arrefecer as mentes sobranceiras aos poderes aparentes.

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Na aldeia da Amoreira as nuvens tiraram o sorriso que a manhã mostrou desde o seu início. A perda da expressão facial desta, não dificulta os seus habitantes de exporem à vista do bibliotecário da biblioteca ambulante, pessoalmente, o seu sorriso, a saudação, com um gesto da mão, ou erguendo um braço, ao passarem próximos das histórias. Não frequentam o espaço onde a criatividade está presente, de braços abertos, a quem queira conhece-la, ficar íntimo, ou mesmo abraça-la para o resto das suas vidas. Gostam de manifestar afinidade por quem visita a sua aldeia, sabem da necessidade dos leitores da aldeia, renovarem a leitura, com histórias diferentes. Da importância que estas têm no quotidiano, das pessoas, ocupando os períodos de lazer. Quando os afazeres nas hortas os libertam, no repouso, de uma longa observação ao tempo a passar. A rua é um traço preto onde o tempo continua a atravessar, as pessoas que o vêem vão-se revezando com a transição dos anos. A melancolia do lugar é duradoura, após o período do almoço, nos dias em que a luz do dia se apaga com facilidade. De vez em quando alguém percorre a rua de uma ponta à outra, um saco debaixo braço, transmite que se dirige à padaria, no sentido contrário, a fumar um cigarro, saiu do café após ter bebido uma bica. Outros exemplos poderiam ser mencionados, o menos comum, é trazerem nas mãos histórias. 

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O tempo anda apressado, talvez seja o presente a  perder robustez, apesar da continua passagem dos dias, nas viagens e andanças. A aldeia do Tubaral é uma daquelas que deixou de ter tempo para os leitores se aproximarem da biblioteca ambulante. Perde população, não há esforço para leituras, será causalidade, sempre que as histórias a visitam, a aldeia desmaia. O ânimo, as mulheres que aguardavam a carrinha da padeira, desapareceu para sempre. O largo perdeu alegria, as vozes elevadas, as gargalhadas, os sussurros dos mexericos, voaram para longe, onde os deuses ouvem agora. A laranjeira onde se abrigavam nas manhãs soalheiras, continua cheia de fruta, não perdeu vigor, as histórias amarguradas com o vazio instalado, pela falta de leitores, não sabem como voltar ao ponto de partida. Se as mulheres fossem como a laranjeira ainda cá estavam, firmes, nas conversas umas com as outras, com o viajante das viagens e andanças, a lerem as histórias. A padeira pararia a carrinha para vender o pão, o largo choraria de contentamento, as pessoas voltariam a atravessá-lo a pé, em vez de o ultrapassarem apressadas no interior dos automóveis.

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As cores outonais nas folhas das árvores destacam-se na manhã cinzenta, nas viagens e andanças. Assim também sobressai a biblioteca ambulante na cor da sua carroçaria, ao percorrer as aldeias da minha terra. Notabiliza-se pela carga que transporta, não é uma folha igual às outras, mas consegue voar como elas de uma ponta à outra do território à beira rio. É uma folha capaz de captar pessoas para a leitura, faz trocas de histórias com leitores. Um processo cheio de possibilidades de conhecimento, de imaginação, desejo, de viajar. O vento, adicionado à vontade do viajante das viagens e andanças, levam-na por estradas sinuosas, rectas infinitas, a traçar um rasto de esclarecimento. A lançar um perfume de informação, naqueles que o absorvem, colhidos pela curiosidade, da folha a rodopiar diante dos seus olhos. 

IMG_20241118_152317.jpgA neblina dissipou-se, abrindo o caminho aos raios solares para entrarem no território das aldeias da minha terra, através das portas da biblioteca ambulante às histórias. Esclarecendo os transeuntes, os leitores sobre o espaço que têm ao dispor, da possibilidade de encontrarem caminhos novos. Explorarem léguas de páginas,  conhecendo os alicerces da imaginação, montes e vales de palavras proferidas por personagens desejosos de serem encontrados pelos leitores. Perceberem a importância das viagens, serem membros de uma tripulação, argonautas percorrendo grandes distâncias na demanda de histórias novas. À semelhança do esforço  do viajante das viagens para encontrar novos leitores, um lugar onde todos lêem sem limites. Um local mágico cheio de histórias, onde, para sobreviverem, as pessoas desse sítio lêem todos os dias. Atingem a sabedoria para serem educados, iguais, com apreço uns pelos outros nas comunidades. Lugares assim, são difíceis de descobrir, não há modelos sociais perfeitos, há consciência que podiam ser melhores, há resiliência para continuar a caminhar na leitura da história até ao fim. Evitando os pântanos, ir pelos atalhos, caminhando nos terrenos seguros, sob a protecção das sombras, a espreitarem mais cedo nestes dias de pouca duração. Já se caminhou na Lua, concebeu-se um personagem perdido em Marte, porque não, um sítio onde a leitura é algo que todos absorvam para viver. São clarões inesperados na mente de alguns que proporcionam as histórias que lemos, aquilo que poderá acontecer nos dias vindouros.

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As nuvens instalam-se a pouco e pouco na aldeia de Martinchel, a tarde perdeu o calor. Na rua as pessoas que se deixam ver passam apressadas, cobertas com roupas próprias para o momento sem paixão. Os leitores não vêm, fogem das histórias como se estas fossem ar frio. Não sabem que também são fogo, lendo-as podem elevar a sua espiritualidade a outros patamares. Na aldeia o único movimento são os veículos transitando na estrada que nunca dorme, a velocidade diminui ao aproximarem-se do sítio onde está estacionada a biblioteca ambulante. Não é por esta que aliviam o acelerador, mas porque existe uma passadeira para peões de considerável elevação na estrada.  Assim têm tempo para se admirarem, ficarem boquiabertos com a beleza da biblioteca ambulante. No meio da instabilidade, as árvores continuam de pé, com as folhas cheias de cores quentes, prestes a terminarem mais um capítulo, à semelhança das histórias na biblioteca ambulante. Vejo ainda rasgos de céu azul, a abóbada celeste teimosamente resiste às trevas dos próximos tempos. Oportunidades, um tudo ou nada, para se lerem histórias no conforto dos lares, onde melhor se encontrarem, na biblioteca ambulante.