O silêncio no vale ouve-se por toda a parte, não é estranho esta ausência de ruído, a vida animal colabora no momento, que se esconde à vista. Aquele ruído peculiar da cedência de uma página para a outra não existe, o silêncio das histórias é severo no vale. O silêncio das pessoas é preocupante, os velhos não conseguem fazer-se ouvir, os gritos da solidão não têm força, não há lugares com vista para o mar. Há janelas olhando o vento que lhes levou os filhos, (...)
Rostos apreensivos, a chuva quase a chegar, uns minutos para além da hora prevista, considerei imediatamente, calma, a biblioteca ambulante não atinge a velocidade do comboio anunciado ontem com grande aparato. Longe das terras junto ao mar, no fim do mundo, de apeadeiros desocupados, há veículos transformados em bibliotecas com rodas que levam livros às pessoas. Querem melhor, o tal comboio não é nada, comparado com o respeito e apoio prestado às pessoas das aldeias do interior (...)
Quem diria que o grande plátano na sua sobrançaria tem a dignidade de abrigar histórias na aldeia do Vale Zebrinho. Árvore que viu, e ouviu histórias do passado da sua aldeia, continua acolhendo as do presente, conseguindo ainda abrigar as histórias dos outros. Aqueles que não estão presentes no momento, mas que regressam sempre na biblioteca ambulante. Esta, incansável tem pois no plátano o cais, pelo qual as histórias do universo saem. Assim quem por aqui atravessar pode (...)
A manhã está resmungona em Alferrarede Velha. A Maria aproximou-se com ambas as mãos segurando sacos cheios, massas, enlatados e pão foram os que se deixaram ver. Disse que ia a casa e já regressava para devolver as histórias. Olhei, a Maria balanceava a sua pequena estrutura enquanto caminhava na direcção das histórias, trazia outro saco preso numa das mãos, continha as histórias lidas que seriam comentadas logo que entrasse na biblioteca ambulante. Gostei desta, esta não (...)
A história espreita a tarde a tentar alcançar quem atravesse a rua. Mas só o vento está na aldeia, traz histórias dos lugares por onde passou. Pôs as árvores a dançar no vale, os ramos rodopiam de um lado para o outro, como as saias das bailarinas. O vento dançarino dança com todas as árvores ao mesmo tempo, sussurando com uma, com outra, elas ficam tontas com o que lhes diz, mas também do fandango improvisado ficam sem tino. O vento está enamorado, as folhas das (...)
A pastora grita com as ovelhas que não lhe obedecem, impropérios ecoam pelo vale adiante, esbarrando na charneca. O gado encontrou pouco depois de ter transposto a estrada a erva tenra, estacando logo aí, em vez de continuar a correria para o pasto. Berrando alto e a bom som, manejando o cajado numa das mãos de um lado para o outro, a pastora só conseguia fazer-se ouvir pelo viajante das viagens e andanças, que no princípio se assustou com tamanha ofensa aos animais. Estes não (...)
A primavera e a poesia nem sempre têm harmonia, renascer nos resíduos do inverno, reunir palavras segundo certas regras, das cinzas do tempo actual, também acontece. Fixar árvores, raízes brancas, pretas, amarelas é uma atitude para a qual se devia ter a percepção na existência da diferença e iguais no viver, o que na inconsciência de alguns continua a ser inflexível. Um dia de viagens e andanças marcado pela esperança, de não perdermos a vontade de termos um lugar melhor (...)
A biblioteca ambulante mais parece o aparo de uma caneta a escorregar nas folhas de papel. Serpenteando a estrada que atravessa a charneca, a caneta não se cansa de enfeitar com palavras as folhas, deixando um rasto de histórias para trás. Continuando sem parar de preencher com tinta, folhas que se vão sobrepondo umas às outras, com margens ilustradas por rebanhos que se alimentam da erva fresca. Não há nada melhor para reduzir as tensões do que ser personagem nestas folhas (...)
Corre uma aragem que estimula as pessoas, surgem na biblioteca ambulante sorridentes, determinados a pesquisar em histórias que os transportarão em viagens intermináveis, aventuras de encher a barriga, de gastronomias diversas, paladares e odores que os deixarão ocupados de curiosidade enquanto não provarem. Na boleia da brisa as viagens e andanças continuaram, no período da tarde houve surpresa, a inclusão de um novo leitor, foi um imprevisto saudável na aldeia do Vale Zebrinho. (...)
" Vou-te levar nas palavras, a máquina não para ", são letras de uma composição musical, que vestem na perfeição a biblioteca ambulante. Nesta errância por estradas que atravessam aldeias e lugares, é o que trago e levo diariamente das pessoas distantes do aglomerado populacional, que é a cidade e o seu limite urbano. Palavras resignadas, de alegrias, de tristezas, do cansaço de uma vida a trabalhar no campo. Para mim são esperança, ouvindo-os, sei que eles continuam a (...)