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Histórias à Beira Rio, viagens e andanças com letras pelas aldeias da minha terra

"Afinal, a memória não é um acto de vontade. É uma coisa que acontece à revelia de nós próprios." Paul Auster

Histórias à Beira Rio, viagens e andanças com letras pelas aldeias da minha terra

"Afinal, a memória não é um acto de vontade. É uma coisa que acontece à revelia de nós próprios." Paul Auster

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Na Aldeia do Mato as ruas apresentam ainda as cicatrizes originadas pelas pás das escavadoras, manobradas por operários, cirurgiões, dando formas a projectos na construção civil, que desventraram o subsolo da aldeia. Trocaram, melhoraram, e estenderam as entranhas, nas quais a água corre ao encontro das torneiras, quando é precisa nas casas dos aldeões. Como se fosse uma aparição, o padre, apesar das demasiadas paróquias a seu cargo, isto anda mau para todos, surgiu, segurando em ambas as mãos uma caixa contendo garrafões para se abastecer de água no fontanário. Talvez para matar a sede, depois do sermão aos fiéis, para acalmar a garganta cansada de mencionar a palavra de Deus, ou renovar a água da pia baptismal. Não creio que seja o destino desta para estas  intenções, mas, na criação da escrita tudo pode ser possível. Sem intromissão do Divino, a conversa com o viajante das viagens e andanças, prologou-se um pouco, a falarmos disto e daquilo. Não estivesse o padre próximo da biblioteca ambulante, mais ninguém teria aparecido de manhã, até os leitores se negaram a virem escolher histórias. A tarde em Martinchel não trouxe nada de novo, até ao momento, o barbeiro está na entrada do seu estabelecimento a ver passar os automóveis na estrada que nunca dorme. Ele, e a biblioteca ambulante, não têm pessoas para cortar o cabelo, se barbearem, seleccionarem histórias. Casualmente podia acontecer um leitor estar na biblioteca ambulante, levar uma história, atravessar a estrada na passadeira, esta termina do outro lado, mesmo em frente da porta da barbearia. Entrar, sentar-se na cadeira, escolher o corte de cabelo. Ao mesmo tempo, o barbeiro realizava o corte, e o leitor, iniciava a leitura nas primeiras páginas da história. O primeiro capítulo é decifrado, comentado por ambos, envolver terceiros, sentados no salão, esperando pela sua vez, de colocarem a jeito, das mãos do barbeiro, o cabelo ou o rosto, na tesoura, no pincel e navalha, ferramentas habituais nesta profissão. Imediatamente gerava-se um clube de leitura, a barbearia podia ser o local onde as pessoas da aldeia, iam ler e discutir enredos. Cortar o cabelo, ou escanhoar a barba, passarão para segundo plano. Outra vez, a imaginação a desafiar a escrita. Abandono o local, acenando com a mão ao barbeiro, respondeu com gesto semelhante. Na estrada em direcção à última aldeia do dia, no sentido contrário, vejo aproximar-se um automóvel com a cor imaculadamente branca, a conduzi-lo, uma freira. Ainda dizem que não há coincidências.