Saltar para: Post [1], Comentários [2], Pesquisa e Arquivos [3]

Histórias à Beira Rio, viagens e andanças com letras pelas aldeias da minha terra

"Afinal, a memória não é um acto de vontade. É uma coisa que acontece à revelia de nós próprios." Paul Auster

Histórias à Beira Rio, viagens e andanças com letras pelas aldeias da minha terra

"Afinal, a memória não é um acto de vontade. É uma coisa que acontece à revelia de nós próprios." Paul Auster

 

 

O som da música que crescia do rádio aos meus ouvidos, trouxe-me de volta, ao fundo a obscuridade da sala ainda permitia visualizar um azul desmaiado, tingido na parede fria. Até ali chegar percorri corredores indiferentes, deitado numa maca empurrado por alguém, onde só a cabeça e ombros se destacavam aos meus olhos. Vultos trajando vestimentas inteiriças da cor da parede, trazendo ao pescoço estetoscópios, não se cansavam de andar para lá e para cá. Mais consciente, pressuponho o cochicho de vozes femininas atrás da minha cabeça, fico a perceber que comentam as notícias de uma revista onde os assuntos destacados são as vidas de outras pessoas. Não estava assim tão ruim, para estarem assim relaxadas, abro os olhos, fechando-os rapidamente de seguida. O feixe de luz intensivo proveniente de um lampadário feriu-me a vista de tal maneira que não me atrevi abri-los de novo. Mas uma coisa não determinada chamou-me a atenção, vi o meu corpo nu, reflectido no quebra-luz, ali estava exposto, se tivesse intenção de escapar, não podia fazer nada, não sentia as pernas, tinha o tronco cheio de ventosas às quais se uniam fios, no braço entrava um líquido através dum tubo de plástico. Ao meu redor de cara tapada, homens e mulheres usando uma toca na cabeça e luvas nas mãos que seguravam objectos cortantes. Não era o matadouro, mas cortavam a minha carne, sentia o bisturi a rasgar, mas não tinha dor. É que isso de médicos, nunca fiando, acabei por expressar a minha dúvida. O espanto generalizou-se à equipa, prontamente resolvido com a abertura da pequena torneira presa ao tubo de plástico. Voltei ao torpor inicial, sem deixar de os ouvir, alguns impropérios eram proferidos quando algo não corria como queriam. Novamente os meus olhos se fixaram no quebra-luz, mexiam, puxavam, tornavam a cortar mais abaixo, a carne era de um vermelho rosado, não conseguia desviar os olhos. Só quando o som semelhante ao de agrafos a espetarem-se na carne é que desisti de olhar. Aquele som metálico torturava-me um pouco, tive de o suportar umas quantas vezes ainda. No final deram-me os parabéns, a intervenção tinha corrido bem, colocaram-me na maca que me trouxe, ficaram preparados para o próximo. Eu permaneci expectante que as minhas pernas voltassem a ter vida outra vez. É que isso de médicos, nunca fiando!

9 comentários

Comentar post