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Histórias à Beira Rio, viagens e andanças com letras pelas aldeias da minha terra

"Afinal, a memória não é um acto de vontade. É uma coisa que acontece à revelia de nós próprios." Paul Auster

Histórias à Beira Rio, viagens e andanças com letras pelas aldeias da minha terra

"Afinal, a memória não é um acto de vontade. É uma coisa que acontece à revelia de nós próprios." Paul Auster

 

 

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O rádio não se cala de tocar músicas de Natal, os cantores e as suas vozes barulhentas esgotaram os meus ouvidos. A partir do momento em que liguei o aparelho da biblioteca ambulante, continuamente, uns atrás dos outros, desfilam sem parar. Cansado desliguei-o, parti o fio que me ligava à emissora. Passei a ouvir o som harmonioso do motor, aquele que me transporta diariamente às aldeias da minha terra, levando histórias. Habituado à sinfonia do aço com a termodinâmica a gerar rendimento ao motor, consigo captar o som do vento. O assobio do ar em movimento quebrou o silêncio na charneca, algures na estrada que conduz as histórias aos leitores, um sussurro estranho capturou-nos, nunca tinha ouvido algo assim, até o vento se calou. Uma ventania súbita e violenta, agitou de tal maneira as histórias, sacudindo as folhas onde as palavras se acomodam. Nesse instante, uma sombra, como se a escuridão se instalasse inoportunamente, envolveu a biblioteca ambulante, travei, cheio de curiosidade. Saí receoso, e o que vi deixou-me fascinado. Livros impulsionados pelo abrir e fechar das suas enormes lombadas a puxarem um Atlas de grande dimensão. Em cima deste livro de mapas, de acontecimentos, o Pai Natal sentado a dirigir o destino das letras que se separavam, sacudidas pelo movimento instável das folhas. Fui apanhado no turbilhão, não percebi se estava num tempo ou espaço, de fantasia ou realidade, foi tudo tão rápido. O que vi, ou julguei ser testemunha não tem explicação, implicado no fenómeno que contraria a leis naturais, deixei-me encantar pelo natal. A charneca  lá em baixo com as árvores minúsculas, os telhados das casas agora pequenos pontos alaranjados. Os fumos fugindo das chaminés enrolavam-se formando novelos, acabando por se  dissiparem pouco depois em linhas tecedoras de enredos.  A biblioteca ambulante a trabalhar como uma  agulha enfiando-se e desenfiando, um instrumento a tecer histórias, garantido a durabilidade e a continuidade destas. O Pai Natal pilotava o estranho veículo com destreza, olhando atentamente lá para baixo, preocupado por haver pessoas com dificuldade em juntar as letras, perfilavam-nas, desfaziam-nas, voltavam a compor, ficavam felizes quando as entendiam. Alinhavam as letras,  estendiam pontes para agarrarem outras, evitando assim afogarem-se nos cursos de água que correm em direcção ao rio. Sem saberem os habitantes das aldeias redigem as histórias que sempre ouviram pela transmissão oral, escapando de geração em geração ao desaparecimento. O Pai Natal oriundo não sei de onde, sobrevoa as comunidade rurais, os lugares isolados, afastados dos centros urbanos, libertando letras, esclarecendo as populações de que é possível terem Natal. E neste ambiente despovoado, absorvido pelo que aconteceu ou não, a tentar perceber se foi magia ou realidade, no meio da estrada, no exterior da biblioteca ambulante, com o rádio novamente a tocar músicas de Natal, voltei a ouvir o vento. Vejo as pessoas a estarem incluídas, activas na leitura, a confiarem na biblioteca ambulante.

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